Grandes feitos: Bicampeão do Campeonato Espanhol (1982-1983 e 1983-1984), Campeão da Copa do Rei (1983-1984) e Campeão da Supercopa da Espanha (1984). Encerrou um jejum de 27 anos sem títulos do clube em La Liga.
Time-base: Zubizarreta; Urkiaga, Goikoetxea, Liceranzu e Luis De la Fuente (José María Núñez); Miguel De Andrés, José Ramón Gallego (Miguel Sola) e Ismael Urtubi (Patxi Salinas); Dani (Noriega), Manu Sarabia (Guarrotxena) e Argote. Técnico: Javier Clemente.
“La Gabarra”
Por Leandro Stein
“Gabarra” é um tipo de embarcação comum no País Basco. Simples e totalmente plana, como uma balsa, serve para fazer o transporte de itens pesados através dos rios. É bastante usada por pescadores, mas também auxilia a escoar itens da indústria pesada e da mineração. Em Bilbao, porém, La Gabarra tem outro significado: é o sinônimo de uma das maiores festas que a Espanha já vivenciou. A gabarra era a embarcação que levava os sonhos. Era o veículo utilizado pelos jogadores do Athletic Bilbao, recém-proclamados campeões de La Liga após um hiato de 27 anos, para saudar mais de um milhão de pessoas, após uma alucinante conquista que desbancou o Real Madrid na rodada final. De certa maneira, a gabarra simbolizava como os jogadores estavam próximos dos pescadores, dos operários, da gente mais humilde – e todos eles eram bascos, afinal, dentro da política tradicional dos Leones em relação ao seu elenco. Aquela gabarra adornada com a ikurriña, a bandeira basca, mexe com o coração dos bilbaínos – especialmente num 3 de maio, data que marca os festejos do Athletic que faturou o Campeonato Espanhol de 1982/83. Uma taça vencida com muito trabalho, anedoticamente, num 1° de maio.
O contexto daquele sucesso extrapola bastante o futebol. O desabafo não era apenas pelo troféu que o Athletic Bilbao não erguia desde 1955/56. A ditadura de Francisco Franco tinha caído anos antes e, à medida que os bascos podiam manifestar seu orgulho nacionalista, esperavam que os Leones, um dos grandes símbolos locais, voltassem ao topo. Apesar da liberdade gradativa, eram também tempos duros. De crises amplas em diferentes âmbitos, com fábricas fechadas e taxas altas de desemprego. De atentados e mortes frequentes, num período bastante ativo do terrorismo separatista do ETA, o que gerava cisões mesmo na sociedade local. O Athletic conduzia a esperança, que se contrapunha ao preconceito vigente de que “todos os bascos eram terroristas”. Era uma maneira de retribuir a fé de sua gente, de reagrupar comunidades fragmentadas. Não à toa, todos seguiram a gabarra – crianças e idosos, ricos e pobres, separatistas e unionistas. A festa unia a todos.
E aquele time do Athletic Bilbao carregava uma essência muito sua. Era um grupo de rapazes bascos, de amigos, que conseguiu superar os prognósticos e os adversários badalados, cheios de estrangeiros renomados. O coletivo se sobrepunha à individualidade. Apesar da fama de “violenta” que a equipe rojiblanca ganharia com o passar do tempo, não dá para limitá-la apenas ao defensivismo. Era um time que marcava duro e tinha força nas bolas paradas, mas oferecia voracidade na frente. Uma prova disso é que teve o melhor ataque de 1982/83. Fazia jus ao apelido de “Leones”, com um futebol bastante direto e de potência física, que arrebentava os adversários sobretudo em San Mamés. Jogavam com fome e força, graças a um treinador capaz de extrair o melhor.
Javier Clemente é a grande face daquele Athletic Bilbao campeão espanhol. Um técnico extremamente jovem, com seus 30 e poucos anos, e cheio de confiança. O projeto de craque que teve a carreira dilacerada muito cedo, por um carrinho violento e uma fratura dupla na perna, virou um treinador que extraía ao máximo de um time competitivo. E contava com talentos, praticamente todos vindos das categorias de base de Lezama. Zubizarreta precisou de pouco tempo para ganhar um status gigantesco no gol, Urkiaga era incansável na lateral, Goikoetxea intimidava qualquer um na zaga. De Andrés ditava o ritmo na cabeça de área, Urtubi explodia a dinamite na ligação, Argote presenteava os gols pela ponta. E a linha de frente contava com uma parceria fantástica. Dani, o capitão, era o atacante que farejava os gols. Manolo Sarabia agraciava a torcida com seus estalos de genialidade. Juntos, fizeram 35 dos 71 tentos do time, 18 para um e 17 para outro, numa divisão bastante democrática.
A consagração daquele Athletic Bilbao campeão, no entanto, seria dramática. Não era o time mais cotado antes que La Liga começasse, mas, a cada rodada, se consolidou na briga pelo título com regularidade e força em casa. Sem que os favoritos se provassem, os Leones sustentavam a briga. Chegaram a ser líderes por um tempo, mas perderam a dianteira para o Real Madrid após o confronto direto da reta final. Na última rodada, só uma derrota dos merengues e uma vitória dos leones promoveria a reviravolta na tabela. Aconteceu, com goleada dos bascos contra Las Palmas e um favorzaço do Valencia diante dos madrilenos. Por um ponto, em tempos de dois pontos por vitória, o Athletic botava a faixa no peito. E ainda mantinha uma hegemonia basca em La Liga, depois dos dois troféus anteriores ficarem com a vizinha Real Sociedad. Era um domínio também emblemático nos tempos de uma Espanha que se reabria à democracia e à autonomia de suas regiões.
Abaixo, reconstruímos a trajetória daquele Athletic Bilbao em um contexto amplo, até alcançar o título de La Liga de 1982/83 – que marcou o fim da espera e, hoje, é visto com saudosismo pelo distanciamento dos tempos dourados. A gabarra, afinal, não parte em viagem com os jogadores desde o bicampeonato em 1983/84. Não se abriu exceção nem mesmo nas massivas comemorações das Supercopas de 2015 e 2021, por serem “troféus menores”. O desejo é retomar uma tradição que nasceu há 41 anos com La Liga e que, para infelicidade dos bilbaínos, não se repetiu além de um par de vezes.
De protagonista…
A história do Athletic Bilbao o coloca como um gigante por excelência na primeira metade do Século XX. O País Basco, como potência industrial da Espanha, logo despontou como um dos berços do futebol no país, ao lado de Madri e de Barcelona. Os Leones eram os grandes representantes dessa força, presentes desde a constituição inicial das competições nacionais. Basta ver o impacto que os bilbaínos tiveram nos primórdios da Copa do Rei, quando influenciaram até a criação de uma filial na capital – um tal de Atlético de Madrid. O troféu inaugural da Copa da Coroação de 1902 foi conquistado pelo Bizcaya, um combinado entre Athletic e Bilbao Football Club, este logo depois absorvido pelos próprios rojiblancos. Logo em seguida, os dois primeiros troféus da reformulada Copa do Rei também ficaram com os Leones. O sucesso se sustentaria por um bom tempo.
De 1903 a 1923, o Athletic Bilbao conquistou nove edições da Copa do Rei (sem contar aquela taça como Bizcaya) e ainda somou nove vices. O artilheiro Pichichi se transformou na década de 1910 em uma das maiores lendas do país. O time chegou a passar seis anos sem troféus nacionais, mas voltou ao topo da Espanha durante a década de 1930, no momento em que também surgia La Liga. De 1931 a 1936, os bilbaínos conquistaram quatro troféus do Campeonato Espanhol e outros quatro (em sequência) da Copa do Rei. Eram tempos da chamada “delantera histórica”, composta pelo quinteto Lafuente, Iraragorri, Bata, Chirri II e Gorostiza. A Guerra Civil Espanhola, contudo, teve um claro impacto em San Mamés. Os bascos lutaram do lado republicano contra o franquismo e sofreram as consequências do conflito, inclusive dentro do Athletic. Muitos dos destaques se engajaram na luta, com a formação de um time do País Basco para representar a causa em amistosos ao redor do mundo, e parte deles demorou a voltar. O número de sócios caiu a menos de 20%, enquanto a perseguição aos sentimentos regionais suprimiu os rojiblancos.
A partir da década de 1940, o Athletic iniciou sua reconstrução. Não podia mais exibir seus símbolos do País Basco, teve seu nome alterado para “Atlético” pela supressão aos estrangeirismos e também ficou proibido de contar com estrangeiros no elenco – algo comum desde seus primórdios, com a fundação ligada aos ingleses. Foi quando o clube se fechou na ideia de contar apenas com atletas locais (de início, da região de Viscaia) e colheu seus frutos. Formou-se a “segunda delantera histórica”, com uma série de jovens talentos. O quinteto alinhado por Iriondo, Venancio, Zarra, Panizo e Gaínza conquistou quatro títulos da Copa do Rei (rebatizada para Copa do Generalíssimo) entre 1943 e 1950, bem como uma edição de La Liga. Naquele momento em que o século chegava à sua metade, o Athletic era o maior vencedor das duas principais competições da Espanha. Tinha cinco taças de La Liga, uma a mais que o Barcelona e três a mais que o Real Madrid, e 17 da Copa do Rei, muito distante das nove de Barça e Real.
… A mero coadjuvante
A década de 1950 tornou o cenário mais duro para o Athletic Bilbao. Craques estrangeiros começaram a pintar em La Liga e potencializaram os concorrentes. O Atlético de Madrid se projetou primeiro, com o talento de Larbi Ben Barek. Depois, o Barcelona chegou ao topo na base do talento de László Kubala. Por fim, o Real Madrid conseguiu seu salto especialmente após a adição de Alfredo Di Stéfano. O número de astros aumentou na sequência da década, passando ainda por nomes como Raymond Kopa, Evaristo de Macedo, Ferenc Puskás e Sándor Kocsis. O Athletic se manteve apegado à filosofia que o limitava aos jogadores bascos, embora contasse com treinadores de fora. Nesse processo, foi importante a chegada de Ferdinand Daucik, cunhado de Kubala. Os Leones se despediam dos veteranos da segunda delantera histórica, mas formavam o time conhecido como “Os 11 Aldeãos”. De 1955 a 1958, aquele grupo conquistou de volta uma edição de La Liga e três da Copa do Rei, além de protagonizar uma marcante campanha na Copa dos Campeões, em que eliminou o Honved às vésperas do desmanche do esquadrão húngaro e caiu em grande embate contra os Busby Babes do Manchester United.
A década de 1960, entretanto, viu as dificuldades do Athletic Bilbao aumentarem em sua busca por novos troféus. A repressão do franquismo ao nacionalismo basco continuava e, mesmo que alguns ídolos pintassem em San Mamés, como o lendário goleiro José Ángel Iribar, a competitividade dos bilbaínos não era a mesma. O time não passou da quinta colocação em La Liga de 1961 a 1969. O jejum de títulos se estendeu por 11 anos, até que a conquista da Copa do Rei de 1968/69 colocasse um ponto final nesse hiato. Entre os talentos daquele time dos Leones estava um meia de 19 anos, que primava pelas doses de habilidade e qualidade nos passes, misturada com a garra a cada disputa. Seu nome? Javier Clemente.
Na época, Clemente já tinha recebido o apelido de “Bobby Charlton” da torcida – pelo estilo classudo e pelos cabelos loiros. Miguel Múñoz, célebre técnico do Real Madrid, dizia que era “o jogador mais inteligente e de maior qualidade que surgiu na Espanha em 25 anos”. Todavia, o meia nunca cumpriu as expectativas: teve sua carreira interrompida meses depois do título da Copa do Rei, quando uma entrada violenta num jogo de La Liga contra o Sabadell provocou uma fratura dupla na perna, justo num momento em que sua chuteira ficara presa no barro do campo. Ainda teria algumas tentativas de retorno, mas a fissura na tíbia não foi resolvida, o que criou um nódulo e o impediu de seguir jogando. Mal passava dos 20 anos de idade.
Apesar do lamento, o Athletic Bilbao começou a década de 1970 em melhores condições. O time terminou com o vice-campeonato de La Liga em 1969/70, só um ponto atrás do Atlético de Madrid, e recuperou a Copa do Rei em 1973. Outra temporada especial viria em 1976/77, quando o clube ficou na terceira posição do Espanhol, além de ter sido vice da Copa do Rei e também da Copa da UEFA, em campanha na qual despachou Milan e Barcelona até a queda na decisão contra a Juventus. A equipe ainda teria mais uma terceira colocação na liga em 1977/78. Seria a antepenúltima temporada de Iribar na meta de San Mamés, com a aposentadoria do recordista de jogos em 1980. Àquela altura, de qualquer maneira, um novo símbolo dos Leones já começava a se aprimorar nas equipes de base – porém, agora na casamata.
Javier Clemente ainda passou três anos em sua luta por retomar a carreira como jogador, com cinco cirurgias, até que jogasse a toalha e admitisse que não teria mais condições de seguir nos gramados. Contudo, ainda no início da década de 1970, o ex-meia iniciou seus estudos para se tornar treinador, alternando com o trabalho como representante de vendas da Adidas. Sua primeira experiência aconteceu à frente do Arenas, de Getxo, clube tradicional do País Basco que vivia suas agruras na quarta divisão do Campeonato Espanhol. Clemente conseguiu o acesso para a terceirona em 1976. Logo depois, seria convidado para assumir o Basconia, clube historicamente ligado ao Athletic. Já seu retorno a San Mamés ocorreu em 1978, a princípio para dirigir os times juvenis, passando depois pela filial, o Bilbao Athletic. Estava claro que os Leones preparavam seu comandante para um futuro próximo, especialmente num momento em que vários ídolos passavam pela casamata dos bilbaínos – a exemplo de Piru Gaínza, Rafael Iriondo, Koldo Aguirre e Iñaki Sáez.
“Clementino”
As ideias de futebol de Javier Clemente faziam sentido ao Athletic Bilbao nesse momento. Apesar do estilo classudo como jogador, o treinador prezava por uma postura impetuosa de seus jogadores. Era a “fúria” que pregava velocidade no ataque e pegada na defesa – algo até mais condizente com as condições dos gramados enlameados no País Basco. Além da capacidade para aprimorar talentos e encaixar o coletivo, Clemente também possuía um discurso muito forte, capaz de elevar a níveis altíssimos a confiança e a autoestima de seus comandados. Chegavam a dizer que a “clementina é a melhor medicina” para explicar a maneira como os Leones eram convencidos por seu técnico. Existiam até certos ares messiânicos sobre a ascensão de Clemente, uma parte por sua história como jogador, de quem acabou marcado pela entrada desleal que encerrou sua carreira – mesmo que não culpasse o responsável pela falta, e sim os árbitros pela permissividade. Mas não só isso, sua personalidade também influenciava essa visão profética sobre o jovem comandante.
Embora filho de migrantes de outras regiões da Espanha, que cresceu sem falar a língua basca, Javier Clemente cresceu bastante influenciado pelo nacionalismo suprimido nos tempos da ditadura franquista. O garoto nascido em Barakaldo, na Grande Bilbao, estava inserido no seio de uma família proletária e fervorosamente católica. Era como também um símbolo da identidade local para muitos torcedores. Clemente chegou a pintar a ikurriña, a proibida bandeira basca, nos tempos de escola e foi punido por isso, uma história que rememorava com orgulho. Tinha em sua casa um busto de Sabino Arana, pioneiro do nacionalismo basco, mesmo que fosse uma figura controversa e de posições supremacistas. O próprio discurso do treinador não fugia disso às vezes, ao tratar os bascos como uma “raça especial”. Não existia consenso sobre Clemente, visto por muita gente como reacionário e por outros tantos como exemplo. Fato é que sua figura fazia sentido, sobretudo pelo momento histórico em que o franquismo caía e o orgulho regional voltava a ser exibido sem medo em diferentes cantos da Espanha. Num ato de coragem, a ikurriña já tinha reaparecido em campo pelas mãos de Iribar ainda em 1976, em célebre clássico contra a Real Sociedad.
A virada dos anos 1970 para os 1980 não era boa para o Athletic Bilbao dentro de campo. O time passou a frequentar o meio da tabela de La Liga depois das campanhas marcantes dos anos anteriores. Variou entre a sétima e a nona colocação entre as temporadas 1978/79 e 1980/81. A derrota por 7 a 1 para o Real Madrid em setembro de 1980 é um marco negativo. Mas não que o período também fosse favorável para o País Basco, longe disso. Vivia-se uma crise ampla na região, na chamada “reconversão industrial”. A recessão dos anos 1970 e a transformação da economia levou ao fechamento de fábricas, assim como custou postos de trabalho, com taxas de desemprego que chegavam a 30%. As condições de vida, obviamente, pioravam. Existia um ranço em relação ao centro do poder, também pelos tantos anos de supressão dos sentimentos regionais. A fragmentação se refletia através do ETA, o grupo paramilitar que, através da violência, tinha sido central para forçar o fim da ditadura, mas que não cessou sua radicalização com a democracia e seguia provocando dezenas de mortes a cada ano – foram 98 somente em 1980. Havia também uma chamada “guerra suja”, com esquadrões da morte que, depois se descobriria, haviam sido fomentados pelo novo governo pós-franquista.
Neste contexto, Javier Clemente ascendeu como treinador do Athletic Bilbao em junho de 1981. A antiga promessa do clube havia passado por uma guinada na carreira de técnico, mas ainda assim chegava muito jovem ao posto principal, com 31 anos. Tinha inclusive contemporâneos que continuavam no elenco, como o atacante Txetxu Rojo – lenda bilbaína que conquistara a Copa do Rei em 1969, em ótima parceria com Clemente pelo lado esquerdo do ataque. O intuito do comandante, de qualquer maneira, seria olhar mais para as categorias de base. Desde a década de 1970, o Athletic intensificou seu trabalho na formação de jogadores. Como não havia como competir com os reforços estrangeiros dos oponentes, dentro da política dos Leones de ainda preservar uma formação concentrada nos bascos, o jeito era investir no aprimoramento de garotos. Um passo decisivo para isso foi a construção do centro de treinamentos de Lezama, em 1971, coração da base rojiblanca. O novo treinador, que conhecia tão bem os corredores do local, ampliaria esse vínculo.
A chegada de Javier Clemente ao comando do Athletic Bilbao tinha logo de cara um discurso eloquente. O novo comandante prometia fazer os Leones campeões, mesmo com um jejum de qualquer taça que se estendia por quase uma década e, particularmente em La Liga, por quase três décadas. O espírito de Clemente também vinha renovado por um intercâmbio que realizara nos meses anteriores, na Inglaterra. Passou algumas semanas com o Ipswich Town, então dirigido por Sir Bobby Robson, que chegou a ser cotado como técnico do Athletic em 1979 – as negociações, com participação do próprio Clemente, esbarraram no contrato longo do comandante com os Tractor Boys. Dois anos depois, o jovem treinador basco retornou à Inglaterra para o estágio. Absorveu ensinamentos e aprendeu com um técnico visto como parte da vanguarda – tanto que, após conquistar a Copa da UEFA naquele mesmo 1981, assumiria o comando da Inglaterra na sequência da Copa do Mundo de 1982.
“Eu fiquei impressionado com o tratamento que recebi no Ipswich, e Robson me dedicou todo o tempo que pôde, apesar de ser um homem muito ocupado. Ele fazia quase tudo no clube e era incrível a quantidade de horas que trabalhava. Lá, além de se ocupar do elenco, o treinador controla toda a administração. Mas o mais importante é que ali vi um sistema de jogo diferente, que gostei. Tive tempo para estudar e discutir com Robson as vantagens e desvantagens. Fundamentalmente, este é o esquema de jogo que comecei a aplicar no Athletic. Foi uma experiência decisiva”, declarou Clemente, em 1983, ao jornal El País.
“No Ipswich, o que mais me chamou atenção foi o esquema defensivo. Basicamente, se trata do manejo eficaz da defesa dentro de um estilo de jogo ofensivo, buscando sempre a maneira mais efetiva para iniciar e apoiar o ataque. Se teve um efeito bastante positivo conosco é porque se trata de um estilo que vai bem em meus homens. Não creio que seja um sistema para ser adotado por muitos clubes espanhóis, porque depende das características dos jogadores”.
Já em sua apresentação, Clemente deixava clara a mentalidade que desejava: “Vamos sair a cada domingo para morrer em campo, para ganhar todas as partidas. Não entendo isso de sair para empatar ou perder pelo mínimo. O Athletic deve ressuscitar, deve recuperar sua identidade e voltar a ser temido. Esses são os meus propósitos. Creio que perdemos nossa identidade. O Athletic buscou aqui e acolá, copiou uns e outros, trouxe treinadores de fora e acabou por perder seu próprio estilo. Agora, não somos mais o que éramos, mas isso é porque não defendemos nossa identidade. Isso é o que quero recuperar. O Athletic sai em La Liga por tudo. Não me fixo no objetivo de uma boa classificação, mas do título. E não vamos sair para empatar em nenhum campo, nem no Bernabéu ou no Camp Nou. Não vamos condicionar nosso jogo ao que faz o outro. Quero fúria e garra, a garra do passado”.
Clemente inclusive falava sobre a imagem preconceituosa que os bascos carregavam na época: “Passamos de ser a equipe mais querida e respeitada da Espanha para sermos insultados em qualquer estádio. Aonde vamos nos chamam de terroristas. Isso não acontece com a Real Sociedad, porque não se identifica tanto com os bascos quanto nós. Pessoas de toda a Espanha têm uma ideia equivocada do que somos nós, bascos, e isso dói. Somos um povo que quer conservar sua identidade. Se no futebol surgisse uma regra na qual as equipes não poderiam mais contar com gente fora de sua região, só sobrariam nós e a Real”.
O time
Um dos trunfos de Javier Clemente naquele time do Athletic Bilbao em 1981/82 era contar com uma base bastante jovem e alguns conhecidos das categorias de base ou da filial. Dos 16 jogadores que disputaram pelo menos dez partidas em La Liga, nada menos que 12 não passavam dos 25 anos. O treinador teve papel importante em aproveitar os pratas da casa e inclusive dar espaço a alguns nomes que pediam passagem. Valorizava Lezama, como era um pedido interno dos Leones.
Entre os jogadores promovidos por Javier Clemente estava seu goleiro, Andoni Zubizarreta. O jovem de 20 anos nascera em Vitoria-Gasteiz e começara sua trajetória no Alavés, mas foi levado ao Athletic na temporada 1980/81, quando já fazia parte das seleções de base. O treinador logo identificou um arqueiro acima da média e o promoveu junto para o time principal. Zubi seria um dos esteios daquela formação dos Leones, com sobriedade e um senso de liderança precoce. Acabou deixando no banco Andoni Cedrún, outro jovem que ascendia e que tinha até certa expectativa ao seu redor – seu pai, Carmelo, era exatamente o titular na meta dos bilbaínos durante a conquista de La Liga em 1955/56.
Zubizarreta era um raríssimo caso de jogador no elenco que não iniciou sua trajetória profissional no Athletic Bilbao. Ao todo, 14 dos 16 futebolistas dentre os mais utilizados tinham raízes desde o início de suas trajetórias em San Mamés. Desse grupo, oito tinham sido dirigidos por Javier Clemente na filial do Bilbao Athletic. A defesa ganhava a ascensão do lateral esquerdo Luis de la Fuente, versátil e técnico, hoje reconhecido por ser o treinador da seleção espanhola. Já no miolo de zaga, a principal adição seria o beque Jesús Liceranzu, que se firmaria como uma bandeira daqueles anos, pela importância de seus gols e pela dureza que rendeu o apelido de “Rocky”. Outra figura relevante, que se estabeleceu como volante titular antes mesmo da promoção de Clemente, foi Miguel De Andrés, jogador que combinava qualidades táticas na proteção e precisão na construção. Além dele, o meio-campo também dispunha de José Ramón Gallego e Miguel Ángel Sola, com destaque para o dinamismo do primeiro e para a qualidade ofensiva que o segundo aportava.
Javier Clemente aproveitou esses reforços pontuais da base para potencializar alguns bons nomes que já estavam na equipe principal. E, logicamente, tinha muita gente boa para se formar o time campeão. Outro destaque na defesa era o lateral direito Santiago Urkiaga, figura incansável no apoio que, aos 23 anos, já estava em sua terceira temporada como titular. Mais tarimbado era o lateral esquerdo José María Núñez, que começou na base e passou um tempo no Sporting de Gijón, até se firmar como uma das opções principais para a lateral esquerda, aos 29 anos. Já no miolo de zaga, Andoni Goikoetxea acumulava oito temporadas com o time principal, mesmo aos 25 anos. O beque durão e agressivo (tantas vezes exageradamente) viraria sinônimo dos Leones naqueles tempos, muito embora também possuísse qualidade acima da fama ruim – essencial também pelas ligações diretas com o ataque.
Mais à frente, Javier Clemente se valia de boa rodagem. O mais veterano do grupo, em sua última temporada como atleta e ainda titular, era Txetxu Rojo. O ponta esquerda de 34 anos era um símbolo de dedicação ao Athletic, com uma carreira iniciada ainda na base e com menos partidas apenas que Iribar no total. Jogador de seleção, era quem conhecia o caminho das pedras das últimas glórias dos Leones na Copa do Rei. O atacante Dani não estava naquelas celebrações, mas já fazia parte do time principal do Athletic desde 1974 e, aos 30 anos, superava a marca dos 100 gols por La Liga. Decisivo na área mesmo sem ser tão alto, tinha feito parte inclusive da seleção da Espanha na Euro 1980.
Mais jovem, aos 24 anos, Manuel Sarabia era outro que podia entrar como referência no ataque ou em qualquer outra função que quisesse, porque seu talento permitia. Era capaz de lances geniais, com ótimos dribles e qualidade nas duas pernas. Estreara ainda em 1976/77. Já a ponta direita estava bem ocupada por Estanislao Argote, de 25 anos, mais uma cria da base que jogava no time principal desde 1977 e era dono de uma canhota mágica. Ainda merece a menção José María Noriega, centroavante reserva que entregava gols sempre que possível.
Um dos diferenciais daquele Athletic Bilbao, além do mais, era a convivência positiva dentro dos vestiários. Os jogadores tinham verdadeiros laços de amizade, nutridos desde a filial. Era comum, inclusive, que eles se apresentassem na concentração antes do dia determinado pelo clube, apenas para que pudessem curtir a preparação juntos e confraternizar um pouco mais. Tal espírito solidário se refletia também em campo. Muitas vezes, os jogadores se sacrificavam e priorizavam o coletivo, dentro de uma união que não se limitava às quatro linhas.
Tomando forma
Àquela altura, de qualquer forma, o potencial do Athletic Bilbao não estava tão claro. E a equipe levou um tempo para engrenar em La Liga 1981/82. Os Leones venceram apenas uma partida nas primeiras cinco rodadas. Foram quatro derrotas, incluindo um 4 a 0 para o Valencia que gerava preocupação. A resposta se tornaria contundente, com os triunfos se tornando mais comuns na metade final do primeiro turno. Os bascos perderam para o Real Madrid e empataram com o Barcelona, assim como ficaram no 1 a 1 com a campeã Real Sociedad. A sexta colocação naquele momento não era ideal para as promessas de Javier Clemente, mas indicava a recuperação de quem havia passado até pela vice-lanterna. A crescente se manteve no segundo turno e rendeu resultados mais expressivos, como a vitória sobre o Atlético de Madrid, além dos empates fora de casa contra Real Madrid e Barcelona. Já na rodada final, o Athletic perdeu para a Real Sociedad em San Sebastián, no resultado que ratificou o bicampeonato dos rivais.
Com a quarta colocação, seu melhor desempenho em quatro anos, o Athletic Bilbao preservou o mesmo projeto para a temporada 1982/83. Javier Clemente era visto como o homem certo para manter os brios dos Leones, com uma equipe de muita capacidade física e voracidade em seus avanços para o ataque. Além disso, o elenco se baseava no amadurecimento dos jogadores. Txetxu Rojo foi o único a se despedir dos gramados – logo se tornando assistente de Clemente, numa comissão técnica que já tinha Iribar como treinador de goleiros. Já a única adição significativa entre os titulares era o meio-campista Ismael Urtubi, de 21 anos. Era um camisa 10 que chegava com potência ao ataque e logo se tornaria uma revelação. Outro velho conhecido de Clemente na filial, o jovem tinha passado a temporada anterior emprestado ao Mallorca e voltava para ganhar mais minutos na faixa central em San Mamés. De resto, a espinha dorsal já estava formada.
O time-base do Athletic Bilbao para a temporada 1982/83 contava com Zubizarreta ganhando rodagem no gol. Urkiaga vinha em alta na lateral direita, único do clube presente na Copa do Mundo de 1982. Goikoetxea ganhava a companhia fixa de Liceranzu no miolo de zaga, com Núñez sendo o principal nome pelo lado esquerdo. Luis de la Fuente também era uma figura frequente, diante das necessidades e por sua versatilidade. O meio-campo bilbaíno começava com a proteção de De Andrés, além de Gallego comandando a construção e Urtubi ou Sola se mandando mais à frente. Já no ataque, Argote dava o apoio pelo flanco, com as combinações entre Dani e Sarabia servindo de principal trunfo, com o segundo mais centralizado. Noriega era um reserva muito útil, a partir do banco. E isso sem contar os garotos da base que começavam a ganhar chances pontuais, como os irmãos Patxi e Julio Salinas, um zagueiro e outro atacante. Este grupo enxuto, com apenas 14 jogadores que passaram dos 450 minutos em campo nas 34 rodadas, foi suficiente para levar os Leones às cabeças de La Liga.
La Liga 1982-1983 e os concorrentes
Era uma edição do Campeonato Espanhol com sua dose de ressaca, após a realização da Copa do Mundo no país, sem que a seleção da casa fizesse tanto jus à ocasião dentro de campo. Mas, até pela visibilidade, La Liga estava num momento valorizado, de concorrentes fortes. O time a ser batido era a Real Sociedad dirigida por Alberto Ormaetxea, que vinha do bicampeonato nacional. A base principal se mantinha com nomes como Luis Miguel Arconada, Ignacio Kortabarría, Pedro Uralde, Jesús Zamora, Jesús Satrústegui e Roberto López Ufarte – apesar da saída de Perico Alonso para o Barcelona. Entretanto, os txuri-urdin não reproduziriam a mesma força em La Liga, só na Champions.
Os dois gigantes da Espanha não podiam ser descartados. O Real Madrid era outra equipe respeitável, que se reencontrava com Alfredo Di Stéfano. A Flecha Loira assumia como técnico, após levar a Recopa Europeia pelo Valencia. O time contava com símbolos merengues, a exemplo de Juanito e Santillana, bem como Uli Stielike como principal referência no meio. Já o Barcelona vinha muito badalado, especialmente por garantir a contratação de Diego Armando Maradona logo depois da Copa do Mundo. Os blaugranas estavam sob as ordens do alemão Udo Lattek e contavam com as cátedras de Bernd Schuster e Allan Simonsen. Era uma equipe ainda de bons valores locais, como Victor Múñoz, Marcos Alonso, Perico Alonso e Alexanco, este antigo jogador do Athletic. O investimento nos meses recentes havia sido altíssimo.
O Atlético de Madrid contava com o retorno de Luis Aragonés à casamata. O elenco apostava no jovem Hugo Sánchez, em sua segunda temporada no Vicente Calderón. Foi um mercado movimentado dos colchoneros, que também compraram o alemão Mirko Votava e o francês Jean-François Larios, dois jogadores de seleção – apesar da perda de Dirceu para o Verona. Mesmo outros clubes de meio de tabela tinham seus bons valores.
O Sevilla reunia Paco Buyo e Carlos Alberto Pintinho. O Zaragoza de Leo Beenhakker trazia uma legião sul-americana com Jorge Valdano, Juan Alberto Barbas e Raúl Amarilla. O Sporting de Gijón era comandado por Vujadin Boskov, com três jogadores da Espanha no Mundial – Antonio Maceda, Manuel Jiménez e Joaquín. O Espanyol era outro bem servido de estrangeiros, entre eles o camaronês Thomas N’Kono (contratado após o sucesso na Copa) e o dinamarquês John Lauridsen. O Betis do húngaro Antal Dunai reunia José Ramón Esnaola, Rafael Gordillo e Peter Barnes à disposição. E isso sem ignorar o Valencia, de Mario Kempes no ataque e Miguel Tendillo na defesa.
Durante a pré-temporada, Javier Clemente não parecia muito preocupado com os astros adversários. Confiava no potencial do Athletic, mesmo que Maradona desembarcasse no Camp Nou: “Vamos fazer o impossível para ganhar, jogue quem jogar. Me dá igual se joga Maradona, Schuster ou Simonsen, ou os três juntos. O Barcelona pagou tão caro por Maradona porque tem muitos milhões. O que me interessa é que essa temporada seja a da nossa consolidação. Nosso objetivo é ganhar o máximo de partidas”. O treinador ainda comparava o crescimento dos Leones com o ciclo vitorioso da rival Real Sociedad:
“Cuidamos da base tanto ou mais que a Real Sociedad. O que se passa é que não tivemos tanta sorte como eles. É muito difícil que apareçam de uma só vez cinco jogadores tão bons, como ocorreu com a Real. O Athletic ganha a cada ano um ou dois, no máximo. De todo modo, acabam se convertendo em peças importantes, com a ajuda do tempo”.
Preparativos e início
O Athletic Bilbao aproveitou bastante a preparação da temporada, com uma série de amistosos ao longo de agosto. Seriam cinco vitórias e dois empates em nove duelos, alguns expressivos. Os Leones chegaram a bater o Nottingham Forest de Brian Clough, bicampeão europeu dois anos antes, por 3 a 1. Haveria também uma revanche, em que os ingleses devolveram o placar com o triunfo por 3 a 1. O Athletic mediu forças com o Atlético Mineiro de Reinaldo, Éder, Cerezo, Nelinho, Luisinho e João Leite. As duas equipes empataram por 0 a 0 em San Mamés, numa atuação espetacular de Zubizarreta, mas o Galo venceu nos pênaltis e levou o troféu oferecido pelos bilbaínos na ocasião. A equipe de Javier Clemente ainda viajou à Itália, onde empatou por 1 a 1 com o Torino.
A empreitada do Athletic Bilbao em La Liga começou mesmo em setembro. E o time enfrentou seus percalços iniciais. Logo na estreia, os Leones tropeçaram. Encararam o Osasuna no Estádio El Sadar e empataram por 2 a 2, numa partida alucinante. Os navarros começaram com mais gás e abriram o placar, mas Dani buscou empate de pênalti antes do intervalo. A trave salvou os bilbaínos duas vezes, até que a virada saísse num contra-ataque puxado por Dani e concluído por Sarabia. Todavia, nos acréscimos, os rojillos voltaram a deixar tudo igual. Um sinal mais claro da força do Athletic pintou na segunda rodada, em San Mamés, com a vitória por 2 a 1 sobre o Valencia. Sarabia abriu o placar de cabeça já no segundo tempo e Roberto empatou aos valencianos, mas o triunfo se confirmou com uma paulada de De Andrés aos 41’ da segunda etapa.
A quarta colocação de La Liga 1981/82 ainda colocou o Athletic Bilbao na Copa da UEFA. A equipe tinha uma parada dura, com o duelo diante do Ferencváros estrelado por Tibor Nyilasi. E os húngaros ganharam a primeira, no Nepstadion, por 2 a 1. Tão ruim quanto a derrota era a quantidade de desfalques do time, com três virtuais titulares lesionados, entre eles Goikoetxea. Ao menos, os problemas não atrapalharam a sequência de vitórias em La Liga. Pela terceira rodada, o Athletic aproveitou os contra-ataques e derrotou o Valladolid no José Zorrilla por 2 a 0, com gols de Sarabia e Argote. Logo depois, viria o triunfo por 2 a 1 sobre o Sevilla em San Mamés. Os Leones fizeram um bom primeiro tempo, com gols de Argote e Sola, por mais que os andaluzes tenham descontado e dado pressão na segunda etapa. Com sete pontos em oito possíveis, o Athletic aparecia na segunda colocação do Campeonato Espanhol, emparelhado com o líder Real Madrid.
A esta altura, as expectativas sobre o que poderia fazer o Athletic Bilbao começavam a se elevar. Como escreveu o Mundo Deportivo: “Quanto ao Athletic Bilbao, que poucos incluem entre os superfavoritos (o Barcelona e os dois ‘Reais’) é preciso seguir com grande atenção. Pelas mãos de Javier Clemente, tão temperamental como excelente técnico, o clube de San Mamés armou um conjunto notável, tosco se você quiser assim, mas de enorme poder físico e disciplina prussiana. Seu grupo de ases é muito mais reduzido que o do Real Madrid, mas, em contrapartida, conta no ataque com a picardia de Dani e a genialidade de Sarabia, um dos escassos talentos autóctonos de La Liga”. Nem mesmo a eliminação precoce na Copa da UEFA, com o empate por 1 a 1 diante do Ferencváros em San Mamés, não atrapalhou tal noção.
Outubro seria um mês mais duro para o Athletic Bilbao. A equipe se distanciou da briga pela liderança, muito por conta da derrota na visita ao Zaragoza durante a segunda rodada. Em La Romareda, os aragoneses venceram por 2 a 1. Depois de sair atrás do placar, o Athletic até empatou com Goikoetxea no primeiro tempo, mas Liceranzu foi expulso e Valdano decretou a derrota. Ao menos, a resposta dos Leones seria em forma de goleada. O Atlético de Madrid foi engolido em San Mamés com a goleada por 4 a 1. A reta final do primeiro tempo foi animada. Os bilbaínos saíram em vantagem com Sola, Arteche empatou ao Atleti e Dani retomou a vantagem para os anfitriões. Já na segunda etapa, Liceranzu e Noriega fecharam a contagem. Nem mesmo a expulsão de Goikoetxea no segundo tempo atrapalhou, ainda mais depois que Hugo Sánchez perdeu um pênalti.
Uma séria dificuldade do Athletic Bilbao neste início de La Liga era encontrar um equilíbrio entre os jogos em casa e os jogos fora. Os Leones tinham dificuldades de prevalecer longe de San Mamés, algo reforçado pela derrota por 3 a 2 para o Espanyol no Sarrià, pela sétima rodada. Os bilbaínos tomaram os três primeiros gols e descontaram no meio do segundo tempo, com Sarabia e Urtubi, mas as expulsões de Liceranzu e Sarabia no final impediram que a reação fosse além. A quantidade de cartões recebidos pelo time no início da campanha, aliás, era motivo de críticas na imprensa basca. Reforçava-se os rótulos de uma equipe violenta, que exagerava na força. Ao menos, as respostas viriam em campo, para consolidar o melhor momento da equipe durante o primeiro turno.
A recuperação começou tímida, com a vitória por 1 a 0 sobre o Sestao, da terceira divisão, na estreia pela Copa do Rei. Mais animador foi o 3 a 2 sobre o Málaga, na oitava rodada do Espanhol. Apesar do gol contra de Goikoetxea que abriu o placar aos andaluzes, a virada saiu com Sarabia e Noriega. Os visitantes empataram novamente em San Mamés com Juan Carlos, mas Urtubi provou o espírito de luta dos Leones e decretou o triunfo a cinco minutos do fim, numa cobrança de falta. No compromisso seguinte, a equipe empatou por 1 a 1 contra o Sporting em Gijón. Sarabia inaugurou a contagem no primeiro minuto, mas Abel Díez empatou e Dani perdeu a chance da vitória num pênalti. Também seria um empate por 0 a 0, em Bilbao, que classificou o Athletic diante do Sestao na Copa do Rei.
O ritmo intenso da temporada naquele momento gerava problemas físicos e desfalques constantes para o Athletic Bilbao. Ainda assim, a equipe preservava sua série invicta e somava pontos na tabela. A décima rodada teve a visita do Racing de Santander a San Mamés, com o triunfo bilbaíno por 2 a 0. Goikoetxea abriu a contagem cedo e Sarabia manteve sua ótima sequência com mais um gol. A segunda vitória fora de casa na campanha aconteceu depois, com o 1 a 0 sobre o Salamanca, gol de Argote aos oito minutos. No fim, os bilbaínos perderam outro pênalti, num jogo em que a arbitragem deixou o estádio escoltada por seus erros.
A volta a San Mamés ofereceu uma dose cavalar de emoção, diante do Betis. Foi uma vitória heroica do Athletic Bilbao por 3 a 2. Os beticos estiveram duas vezes à frente no placar durante o primeiro tempo, com gols de Hipólito Rincón, mas Sarabia e Dani buscaram a igualdade ambas as vezes. No início do segundo tempo, a explusão de Dani atrapalhava os bascos. Por isso mesmo, o gol de Noriega a dez minutos do fim, num rebote do goleiro Esnaola, seria tão comemorado. Javier Clemente tinha méritos por botar o atacante pouco antes, no lugar de um meio-campista. O Athletic aproveitou o embalo para vencer o primeiro duelo com o Linares pela Copa do Rei, gol de Urtubi. Já a quinta vitória consecutiva do time, no nono jogo de invencibilidade, ocorreu outra vez como visitante. Foi um triunfo magro por 1 a 0 sobre o Celta, em Balaídos, no qual Noriega substituiu o suspenso Dani e anotou o gol mais uma vez. Não era que o time de Javier Clemente apresentasse um bom futebol, por vezes contando com a sorte, mas a empolgação era clara.
Enfrentando os titãs
O Athletic Bilbao se transformou no time do momento de La Liga. Com 20 pontos, os bascos tomavam a segunda colocação e se emparelhavam ao líder Real Madrid. Os merengues também somavam 20 pontos e, na rodada anterior, perderam sua invencibilidade na temporada com a derrota no clássico para o Barcelona, dois pontos atrás, dentro do Bernabéu. Era o ambiente perfeito para incendiar o Athletic Bilbao x Real Madrid marcado para o San Mamés na rodada 14. O duelo teria recorde de arrecadação e bilheterias esgotadas. Javier Clemente, porém, tratava de botar panos quentes: “Que ninguém fique maluco. Não vamos jogar uma final contra o Real Madrid e nem devemos nos comportar com mentalidade de líder”. Era sua tentativa de manter os pés no chão contra o quadro de Alfredo Di Stéfano.
O Real Madrid se vingaria da derrota para o Barcelona contra o Atheltic Bilbao. Os Leones perderam os 100% de aproveitamento em San Mamés, com uma contundente vitória por 4 a 2 dos merengues. Os madridistas abriram o placar no primeiro tempo, num momento em que tomavam sufoco, graças a uma roubada de bola que culminou no tento de Isidro Díaz. O empate não demorou, antes do intervalo, graças ao oportunismo de Sarabia na cabeçada. Todavia, os visitantes desenharam a goleada na volta da segunda etapa, em meio aos erros bascos e aos contra-ataques fatais. Ricardo Gallego aproveitou mais um cochilo no segundo, enquanto José Antonio Salguero tocou na saída de Zubizarreta para o terceiro. O quarto foi obra de Isidro, que fechou a conta num rebote. Somente depois disso é que Dani cruzou para Noriega reduzir o estrago. O Real Madrid reafirmava a freguesia do Athletic nos duelos recentes e abria vantagem na dianteira.
Neste momento, o Athletic via o Barcelona também alcançar os 20 pontos na tabela, numa disputa pela vice-liderança. E seria exatamente o desafio seguinte dos Leones, em pleno Camp Nou. Antes de realmente pegar o Barça, o Athletic tratou o Linares como um sparring em San Mamés. Ganhou por 6 a 0 o jogo de volta pela Copa do Rei, com dois de Dani e dois do garoto Julio Salinas, em sua primeira temporada como profissional, além de mais um de Urtubi e outro de Noriega. Os olhares ficavam mesmo para o confronto direto na Catalunha. Maradona, que se recuperava de lesão, era o desfalque mais sentido. Enquanto isso, no centro das atenções estavam Schuster e Goikoetxea. Na temporada anterior, uma entrada do apelidado “Açougueiro de Bilbao” lesionou gravemente o alemão, que perdeu a Copa do Mundo. Existia um clima de revanche à espera no Camp Nou. Mas não com um discurso de “futebol bonito” contra “botinudos”. Pelo contrário, o Athletic chegava como o melhor ataque e o Barça tinha justamente uma das melhores defesas.
“Vamos jogar da mesma maneira que jogaríamos se Maradona estivesse em campo. Não penso em mudar os nomes, mas talvez algo no estilo de jogo. Vamos sair ao Camp Nou com a intenção de ganhar. O Athletic Bilbao sabe ignorar o ambiente das arquibancadas e se dedicar exclusivamente ao seu jogo em campo”, declarava Javier Clemente, sem querer polemizar sobre Goikoetxea.
“Asseguro a vocês que o Athletic Bilbao não sai a campo pensando em dar pancadas. Saímos para jogar futebol e, logicamente, ao longo da partida se produzem entradas mais fortes que outras”.
De fato, sem se intimidar com o ambiente, o Athletic Bilbao conquistou uma de suas maiores vitórias naquela campanha. Derrotou o Barcelona por 1 a 0 no Camp Nou. Os Leones se apresentaram com mais organização para o jogo, o que foi suficiente para anular um Barça pouco inspirado tecnicamente. E o mais irônico viria em forma de gol: Goikoetxea, justamente ele, saiu como herói no início do segundo tempo. Argote cruzou e Goiko soltou uma cabeçada firme, que valeu o resultado. A marcação dos bilbaínos, depois, conteve qualquer tipo de reação. Os torcedores blaugranas vaiaram a vitória dos bascos, ao mesmo tempo em que agitaram panos brancos ao seu time. “Sem Maradona não há Barça” era a manchete do Mundo Deportivo no dia seguinte.
Depois da partida, Goikoetxea falava do seu protagonismo: “O que mais me satisfaz é esse 1 a 0 que conseguimos, independentemente de que tenha feito o gol. Penso, além disso, que jogamos muito bem e poderíamos obter uma vantagem maior. Dentro de mim, não havia medo e nem ressentimento. Nunca tive isso e hoje não ia ser uma exceção. Tudo ocorreu normalmente e só me entristece o cartão que tomei sem compreender”. Já Clemente festejava:
“Antes de pensar em título, me conformo neste momento em saber que minha mentalização depois da derrota para o Real Madrid surtiu efeito. Nós, em potencialidade, não podemos competir com os grandes que se permitem o luxo de ter estrangeiros de qualidade em seus elencos. Nossa missão é formar um conjunto de casa e que represente com decoro a todo um povo. Enquanto conseguirmos isso, me dou por feliz, embora não renunciamos a nada. Isso está claro”.
Pontos valiosos
A sequência duríssima do Athletic Bilbao no final do turno ainda teve a visita à Real Sociedad em Atotxa. Os bicampeões não faziam uma temporada tão confiável, cinco pontos atrás dos Leones. E o empate por 1 a 1 em San Sebastián saiu como lucro aos bilbaínos, com o auxílio da arbitragem. A Real, superior do princípio ao fim, abriu o placar aos 15 do segundo tempo com uma cabeçada de Uralde. A situação piorou para o Athletic quatro minutos depois, quando De Andrés recebeu o vermelho direto por uma pancada no próprio Uralde. O empate, arrancado aos 41’, poderia até ganhar ares heroicos com o gol de Dani. O problema é que o atacante estava impedido e, mesmo com a infração assinalada pelo bandeira, o árbitro bancou a validação – para óbvia insatisfação dos anfitriões. Aquele foi o último compromisso do Athletic antes da pausa para as festas de fim de ano. Com 23 pontos, o time de Javier Clemente se estabelecia na vice-liderança e ficava a um ponto do líder, o Real Madrid de Di Stéfano.
O fechamento do primeiro turno foi o primeiro jogo do Athletic Bilbao em 1983. Era um compromisso acessível contra o Las Palmas, que os Leones não encontraram problemas para vencer por 3 a 0 em San Mamés. A mania de perder pênaltis se seguia, agora com um erro de Dani. Mas, no segundo tempo, Urtubi abriu o placar e Sarabia guardou dois. O primeiro gol de Sarabia, aliás, foi uma pintura na qual o atacante fez fila na marcação e terminou ovacionado pelas arquibancadas. Seria um momento para os bilbaínos ampliarem sua série invicta, como aconteceu já no embate contra o Osasuna. Outro jogo consecutivo em San Mamés, agora com goleada por 4 a 0. Dani foi o nome do show e produziu uma tripleta, com dois gols no primeiro tempo e outro no segundo. Sarabia também continuava voando baixo e fechou a conta. O futebol “implacável” dos rojiblancos era elogiado.
Outro triunfo de tremendo peso nessa sequência ocorreu na visita ao Mestalla. O Valencia fazia uma temporada muito abaixo da crítica, há quatro rodadas sem vencer e na lanterna do Campeonato Espanhol. O Athletic Bilbao, de cinco jogos de invencibilidade, abocanhou mais uma vitória excelente por 2 a 1. E foi com sua dose de drama, apesar de tudo. Os valencianos abriram a contagem aos 15’ do segundo tempo, numa cabeçada de Roberto. O Athletic precisou insistir até os 43’, quando finalmente empatou. Sola pegou uma sobra de bola e cravou no barbante. Já o tento decisivo, nos acréscimos, seria também carregado de polêmica. O árbitro não deu um impedimento de Noriega e depois assinalou um pênalti equivocado. Urtubi converteu e deu o triunfo aos Leones, enquanto a saída de campo teve revolta dos Ches e acusações pesadas contra a comissão de arbitragem. O juiz Soriano Aladrén saiu de camburão do Mestalla, por proteção.
Deslizes
O Athletic Bilbao terminava a rodada 19 outra vez igualado em pontos com o líder Real Madrid, após um empate com o Sevilla. Mas, no momento em que os Leones poderiam tomar de assalto a liderança, sofreram deslizes. Primeiro veio num empate em casa com o Valladolid, por 1 a 1. Os violetas abriram o placar no início e tiveram um jogador expulso, com o gol de Sarabia garantido apenas na reta final. A saída de campo ainda seria quente. Javier Clemente deu declarações menosprezando os pucelanos antes do duelo e, depois do empate, José Luis García Traid, comandante do Valladolid, foi tirar satisfação. Os dois quase saíram na mão diante das câmeras. Era um destempero que não ajudava o Athletic, derrotado pelo Sevilla por 2 a 1 na visita ao Nervión logo depois. Goikoetxea marcou primeiro para os bascos, mas os andaluzes viraram com Jorge López e um gol contra de Núñez. Foi um duelo quente, de duas expulsões para cada lado – entre os bilbaínos, Goiko e De Andrés. Embora tenha tomado decisões corretas, o árbitro era José María Enríquez Negreira – que, anos depois, se tornaria vice-presidente da comissão de arbitragem e protagonizaria escândalo recente envolvendo o Barcelona.
A vitória por 1 a 0 sobre o Zaragoza, em San Mamés, dava um respiro ao Athletic Bilbao. O gol solitário veio num pênalti convertido por Dani, enquanto Amarilla desperdiçou um penal para os maños a três minutos do fim. De fato, já não era o melhor momento do time. A começar pelo empate por 0 a 0 na visita ao Deportivo de La Coruña (então na segundona), pelas oitavas de final da Copa do Rei. Já na rodada 23, o Athletic visitou o Atlético de Madrid e empatou por 0 a 0. Seria uma partida fraca tecnicamente, em que os bilbaínos se trancafiaram na defesa e mal produziram no ataque. Era o primeiro jogo da campanha em que os Leones não marcavam gols.
Não era só o Athletic Bilbao que perdia fôlego nas partidas recentes, ao menos, mas também o Real Madrid. Não à toa, aquela rodada derrubou os dois times uma posição na tabela e permitiu a ascensão de um novo líder: o Barcelona, que tinha enfiado 3 a 0 no dérbi contra o Espanyol. Era uma disputa bastante parelha, com os três times somando 33 pontos. Todos venceram seus compromissos seguintes, inclusive o Athletic, de volta a San Mamés. A seca de gols acabou com sonoros 5 a 2 sobre o Espanyol, e de virada. Depois que os Pericos abriram o placar logo de cara, os Leones marcaram com De Andrés, Noriega e Urtubi antes dos 30 minutos. Já no segundo tempo, Noriega e De Andrés dobrariam suas contas pessoais. A maneira como os bascos correspondiam em meio à pressão era bastante importante. Outra boa notícia daquela semana ficou para a convocação inédita de Sanabria, premiado pela ótima fase como vice-artilheiro de La Liga.
A goleada não motivou o Athletic o suficiente e o time voltou a tropeçar na rodada seguinte. Em La Rosaleda, os bascos empataram por 0 a 0 com o Málaga. Não conseguiram abrir a retranca dos andaluzes. Num final de semana em que o Barcelona também tropeçou, o Real Madrid voltava a se isolar na dianteira com um ponto a mais. A pausa para a Copa do Rei teve a classificação do Athletic contra o Deportivo de La Coruña, com os 3 a 1 em San Mamés embalados por dois tentos de Noriega e um de Julio Salinas.
Rival enfraquecido
A rodada 26 seria uma das mais importantes daquela edição. Nem tanto pelos Leones, que passaram fácil pelo Sporting de Gijón com os 3 a 0 em Bilbao. Urtubi fez o primeiro, enquanto Dani guardou outros dois. Foi uma atuação que enfatizou a ótima forma física do time para a reta final da temporada. O detalhe era a crise do Barcelona, que perdeu em casa por 2 a 0 para o Racing de Santander e, muito pior, ficou sem treinador. Udo Lattek vinha em tensas negociações com o Barcelona para renovar seu contrato à próxima temporada. O alemão não teve problemas em vir à público e reclamar sobre a demora da diretoria, assim que os blaugranas tomaram a liderança Tal postura não agradou e, logo depois da derrota para o Racing, aconteceu uma reunião interna. O Barça decidiu colocar fim à relação de maneira turbulenta, com a rescisão do contrato independentemente do momento decisivo da temporada.
O que aumentava as tensões eram os rumores sobre o próximo comandante do Barcelona desde antes da saída do veterano. César Luis Menotti era tratado como o favorito para potencializar Maradona, pela relação de ambos na seleção argentina. Depois de três meses fora de ação, Diego voltaria ao elenco na reta final da temporada. E os catalães decidiram antecipar a contratação de Flaco Menotti. Restavam mais oito rodadas pela frente em La Liga. E as tabelas dos três principais candidatos ao título não eram muito diferentes. Os embates eram trançados de uma maneira que Real Madrid, Barcelona e Athletic Bilbao encarassem o mesmo adversário em rodadas consecutivas. Além do mais, os confrontos diretos se repetiriam todos.
O próximo oponente do Athletic era o mesmo Racing de Santander que tinha causado tumulto na Catalunha. Os bascos, contudo, saíram com os pontos da Cantábria. Vitória básica por 2 a 0, em que o voraz ataque funcionou novamente com os gols de Dani e Sarabia. A rodada como um todo favoreceu, com o empate do Real Madrid contra o Betis e do Barcelona contra o Salamanca. Os blaugranas viriam numa sequência de tropeços neste momento, incluindo a eliminação nas quartas de final da Recopa Europeia diante do Austria Viena. Ficavam três pontos atrás de Real e Athletic, novamente cabeça a cabeça no topo da tabela. “Esta é uma posição que muitos nem sonhavam antes de começar a liga. Se as coisas seguem assim, que ninguém estranhe uma marcha de 20 mil athléticos ao Bernabéu”, declarou Clemente.
Desastre e a volta por cima
Antes de pegar o Real Madrid, o Athletic Bilbao tinha outros compromissos. Passou por cima do Salamanca na rodada 28, com goleada por 4 a 0 no San Mamés. Dani e Liceranzu deram tranquilidade no primeiro tempo, enquanto Argote e de novo Dani marcaram na volta do intervalo. Foi uma tarde de contundência dos rojiblancos, diante de 43 mil torcedores, embora as oportunidades que a zaga dava aos visitantes deixavam desconfianças. Paralelamente, o Madrid também cumpria sua parte com os 3 a 0 sobre o Celta. Só o Barcelona titubeava, com o 1 a 1 diante do Betis. E os verdiblancos, que fizeram seguidamente os gigantes tropeçarem, amassaria o Athletic no Benito Villamarín.
O momento mais amargo da temporada do Athletic Bilbao aconteceu na rodada 29. O Betis aplicou uma goleada por 5 a 1 na Andaluzia. Os Leones mal tiveram tempo de respirar. Um gol contra de Liceranzu e outro a favor de Julio Cardeñosa abriram dois de vantagem aos verdiblancos com 16 minutos. No segundo tempo, o artilheiro Rincón atormentaria os bascos com dois tentos e Antonio Parra também deixou o seu, enquanto só depois disso é que Noriega descontou. A conta poderia ser até maior, não fossem uns lances perdidos pelos beticos. Se o Real Madrid ao menos empatou com a Real Sociedad em Atotxa na rodada, o Barcelona se recuperou com goleada sobre o Celta. Com mais cinco rodadas pela frente, os três primeiros colocados estavam separados por três pontos. O discurso de Javier Clemente depois da hecatombe seria importante para segurar a pressão:
“Jogamos muito mal e o Betis muito bem, mas só se perdeu uma partida e seguimos disputando tudo. É a mesma coisa perder por 5 a 1 ou por 1 a 0, o importante é que os jogadores mantenham o moral. Somos os melhores e, num dia ruim, pode acontecer qualquer coisa. Eu já tinha dito que o Barcelona não estava descartado, embora, para mim, o Real Madrid é mais perigoso por sua regularidade… com exceção do Athletic”.
Não havia muito tempo para remoer a derrota, afinal. E o Athletic se reergueu em San Mamés, na rodada 30. Derrotou por 4 a 0 o Celta. Sola marcou o primeiro gol, enquanto a goleada tomou forma no segundo tempo com os tentos de Dani, Julio Salinas e De la Fuente. Os bilbaínos dominaram e nem precisaram desgastar tanto, pensando no que viria pela frente. Aquela também foi a rodada do Clássico no Camp Nou. Deu Barça, com o triunfo de virada por 2 a 1 em que Maradona e Perico Alonso balançaram as redes.
La Liga tinha novo líder isolado. Era o Athletic Bilbao, com 44 pontos. O clímax do campeonato chegava ao seu máximo, com o Real Madrid logo abaixo com 43 pontos e o Barcelona em terceiro com 42 pontos. Qualquer reviravolta parecia possível. Paralelamente, o Real Madrid ainda dividia atenções com as semifinais da Recopa Europeia diante do Austria Viena. Além disso, os três times estavam vivos nas quartas de final da Copa do Rei. O Real encarava o Sevilla. Barça e Athletic eram adversários. A primeira partida aconteceu neste momento, em San Mamés. Maradona estaria em campo e botava um pouco de pimenta no encontro. Diego dizia que Clemente “era um técnico inteligente que talvez fale demais” e disse “não ter medo” de sofrer em San Mamés uma lesão como a de Schuster.
Diante de 45 mil torcedores, o Athletic Bilbao cumpriu o esperado com a vitória por 1 a 0. A partida se manteve equilibrada, com o gol dos Leones anotado no segundo tempo, em pênalti sofrido por Sarabia que Dani mais uma vez converteu. Maradona não produziu muito, lesionado após uma pancada no tornozelo. Além disso, outro momento marcante aconteceu no início do segundo tempo, quando o Athletic colocou nos auto-falantes de San Mamés o novo hino do clube, cantado em basco. Era a primeira vez que a canção era executada, logo se tornando uma tradição que perdura há quatro décadas – e, naquele momento, num contexto de reforçar a identidade em meio às disputas com as outras regiões espanholas pelo domínio no futebol. A partir de então, era hora de virar a chavinha e pensar em La Liga. Viria pela frente a visita ao Real Madrid no Bernabéu, pela rodada 31.
Revés amargo
Aquela era a primeira vez desde 1978 que o Athletic Bilbao aparecia na liderança do Campeonato Espanhol. Já no segundo turno, o time não pintava no topo da tabela desde 1971. A chance do primeiro título desde 1956 era genuína e não surpreendeu que uma multidão de bascos pegasse a estrada rumo à capital. Eram estimados 25 mil presentes, mesmo que uma grande parcela sequer pudesse entrar no Bernabéu, para o jogo que teria tanto peso na disputa pelo título. A confiança também aumentava com as condições do time de Javier Clemente, completo. Enquanto isso, o Real Madrid precisaria se virar sem o lesionado Uli Stielike e o suspenso John Metgod.
A expectativa ao redor do Athletic Bilbao, todavia, se romperia com a derrota por 2 a 0 para o Real Madrid. Não seria uma boa atuação dos Leones no Bernabéu. O primeiro tempo foi nervoso. Os bascos praticavam um futebol especulativo e pouco agressivo, enquanto os madrilenos primavam mais pela vontade do que pela precisão. Já no segundo tempo, uma bola parada abriu o caminho do Madrid. Aos 11 minutos, Juanito cobrou falta e Francisco García Hernández definiu de cabeça. Javier Clemente tentou botar o Athletic para frente, mas deu espaço aos contra-ataques. Aos 35’, Francisco Bonet centrou para Francisco Pineda, que se desvencilhou da marcação e definiu por baixo de Zubizarreta.
“Devemos aceitar a derrota e os méritos do Real Madrid, que no segundo tempo marcou seus gols nos momentos precisos. Não há nada para contestar, até o árbitro foi bem. Os jogadores se dedicaram a jogar, que é o que precisam, sem saídas de tom. E o ambiente nas arquibancadas foi magnífico, digno de uma partida dessas. Agora a situação muda no campeonato. Antes desta partida, a vantagem era do Athletic, dependíamos de nós mesmos. Com esses 2 a 0, é o Real Madrid que tem nas mãos o título. A nós, nos resta seguir na brecha, tentando ganhar os seis pontos que restam. A ver o que fazem os blancos”, comentaria Javier Clemente, destacando como o espírito esportivo prevaleceu, sem violência entre os times. A rodada ainda teria a vitória da Real Sociedad por 1 a 0 sobre o Barcelona. Com isso, os blaugranas já ficavam três pontos atrás do Real Madrid e a dois do Athletic.
Triunfo gigante
A tabela de La Liga não concedia muita trégua. A rodada seguinte ofereceu exatamente o Athletic Bilbao x Barcelona em San Mamés. O tropeço anterior dos blaugranas era importante para tirar um pouco do ímpeto do time de Cesar Luis Menotti, mas ainda assim a ameaça era óbvia. Javier Clemente precisava lidar com um problema notável no ataque, com a lesão de Sarabia, que não estava 100% e começaria no banco. Apesar disso, o nível de concentração era alto, como reforçava Urkiaga: “O Athletic tem segurança para ganhar de qualquer um. Não se lembra da vitória no Camp Nou durante o primeiro turno? O que acontece é que num dia as coisas saem bem e em outras tudo vai contra. Ganhar essa partida seria um enorme impulso. O Athletic tem méritos indiscutíveis no campeonato. Mais que o Barcelona, na minha opinião. Eles perderam oito pontos em casa, um número proibido para um verdadeiro campeão”.
San Mamés testemunhou uma vitória fundamental para erigir o campeão. O Athletic Bilbao venceu o Barcelona por 3 a 2, num jogo no qual o placar engana um tanto. Os bascos abriram três gols de vantagem, com a pressão catalã só no final. Os Leones aproveitaram demais as circunstâncias e inauguraram o placar logo aos dois minutos, numa cobrança de falta. Argote bateu rápido e cruzou na cabeça do pequenino Dani, que fez mais um gol importantíssimo. O Barcelona tomou a iniciativa depois disso, mas o Athletic se defendia com competência. Zubizarreta faria defesas decisivas.
O segundo tempo ficou aberto à medida que os bilbaínos buscaram mais o ataque e voltaram a ameaçar. Contudo, Zubi seguia muito exigido e ainda deu sorte quando viu uma bola estalar seu travessão. Quem decidiu o jogo mesmo foi Sarabia. Entrou aos 30 e marcou o segundo gol do Athletic em sua primeira participação, a partir de outro cruzamento de Argote. Quatro minutos depois, o terceiro surgiu numa assistência de Sarabia, para Dani consolidar o resultado com um míssil da entrada da área. Urbano Ortega e Maradona, numa falta cobrada na gaveta, descontaram depois dos 40. Mas ficou tarde demais para a reação.
“A chave da partida é que jogamos com mais acerto e segurança do que no Bernabéu. Por isso, o Barcelona não teve opção”, avaliava Javier Clemente, antes de comentar a noite especial de Sarabia. “Não faço milagres e ele estava lesionado. Se Sarabia não entrou antes, é porque não podia. Eu o coloquei quando vi que Noriega estava esgotado por seu esforço contra a defesa do Barcelona. Eles avançavam e Sarabia é melhor no contragolpe. Vocês viram…”. Com a derrota, o Barcelona oficialmente dava adeus às chances de título, sem mais poder alcançar o líder Real Madrid. Os merengues continuavam um ponto à frente do Athletic, ao derrotarem o Las Palmas por 3 a 0.
Apenas três dias depois, Athletic Bilbao e Barcelona se reencontraram no Camp Nou pela Copa do Rei. Era a partida de volta, com os bascos mais relaxados, ainda mais depois da vitória na ida. Javier Clemente optou por uma formação mais defensiva, com descanso para Argote e Sarabia depois do final de semana. Os Leones amargaram a eliminação, com a vitória por 3 a 0 do Barça, embora a cabeça do time estivesse mesmo em La Liga. Desta vez os blaugranas marcaram no primeiro minuto e condicionaram a partida, numa jogada entre Maradona e Schuster que Francisco Carrasco definiu. No segundo tempo, Perico Alonso carimbou a trave e Maradona anotou no rebote. Diego estava inspirado e fechou a contagem ao seu estilo, com uma cobrança de falta que passou pela barreira e morreu com leveza nas redes. Os catalães tinham um alento, mas não que isso causasse tanta preocupação aos bascos. A mente já trabalhava mais à frente.
Foco total no título
A tabela de La Liga era inclemente com o Athletic Bilbao. O Dérbi Basco contra a Real Sociedad aconteceu na penúltima rodada, em San Mamés. Os txuri-urdin faziam uma temporada muito abaixo, a 12 pontos de distância dos rojiblancos a essa altura, e estavam mais preocupados com as semifinais da Copa dos Campeões contra o Hamburgo. O curioso é que, embora os dois clubes atravessassem uma fase muito competitiva e se sucedessem no topo da tabela, isso não resultou numa rivalidade exacerbada. Real e Athletic não chegaram a disputar o troféu entre si, embora se pegassem em momentos fundamentais na reta final. Apesar disso, existiam inclusive laços de amizade entre os dois elencos e os jogadores combinavam jantares em conjunto. Não que os txuri-urdin fossem facilitar, mas não é que quisessem ferrar os rojiblancos.
Diante de uma rival com problemas de lesão e sem foco em La Liga, o Athletic Bilbao ganhou da Real Sociedad por 2 a 0 sem dificuldades e fez a alegria de sua torcida. O único susto em San Mamés aconteceu quando o placar estava zerado e Txiki Begiristain perdeu uma chance imensa diante de Zubizarreta. Aos 26’, então, os Leones inauguraram o placar num cruzamento de Sola, que Dani bateu de primeira para as redes. Já no segundo tempo, Argote cruzou e a defesa txuri-urdin se enroscou, com o gol contra de Luis Sukia após a saída também ruim de Arconada no gol. Foi um resultado tranquilo e protocolar dos rojiblancos, contra um oponente que claramente atuou numa rotação mais baixa.
O Athletic Bilbao partia para a última rodada na mesma condição: um ponto atrás do Real Madrid. Em seu penúltimo compromisso na Liga, os merengues derrotaram o Osasuna por 2 a 1 no Bernabéu. E o clima era bastante positivo no clube. A equipe de Alfredo Di Stéfano somou sete vitórias e um empate após a derrota no clássico contra o Barcelona. Eliminou o Sevilla nas quartas de final da Copa do Rei e também o Austria Viena nas semifinais da Recopa Europeia. A chance de uma tríplice coroa estava vivíssima a essa altura, e existia um descanso importante, de 12 dias, até que a rodada final de La Liga acontecesse. O Madrid tinha a vantagem até do empate. Pelos critérios de desempate, o Athletic precisava vencer seu último jogo e também contar com uma derrota dos merengues.
Tanto Real Madrid quanto Athletic Bilbao atuariam fora de casa. Tanto Real Madrid quanto Athletic Bilbao pegavam times com risco de rebaixamento. O adversário dos merengues impunha mais respeito pela camisa, o Valencia. Porém, os Ches chegaram a ter o rebaixamento dado como certo na virada dos turnos, quando somavam míseros nove pontos em 19 rodadas. O rendimento até melhorou depois disso, mas o clube estava em seu terceiro técnico e seguia com a corda no pescoço. Do lado de fora, uma feliz coincidência agradava os torcedores do Athletic: o comandante dos valencianos àquela altura era Koldo Aguirre, antigo ídolo dos Leones e que dirigiu o próprio clube pouco antes, até 1979, finalista da Copa da UEFA de 1977.
O Las Palmas, oponente do Athletic Bilbao, fez o caminho contrário ao do Valencia. Os canários tinham tudo para se manter na elite e chegaram a ter o dobro de pontos dos valencianos no início do segundo turno. Contudo, a equipe desandou e só tinha duas vitórias nas 15 rodadas anteriores ao compromisso final. Foram oito derrotas nesse período, com direito a um 7 a 2 do Barcelona na penúltima rodada. A distância entre Valencia e Las Palmas caiu para apenas dois pontos, com vantagem no desempate aos Ches. O temor dos auriazuis era óbvio, especialmente porque o time vinha de uma sequência de 19 temporadas na primeira divisão, desde 1965. Numa disputa parelha contra o descenso que também envolvia Osasuna, Celta e Racing de Santander, a derrota dos canários talvez significasse para a salvação dos valencianos.
Um número expressivo de torcedores do Athletic Bilbao viajou até as Ilhas Canárias para a rodada final – cerca de cinco mil pessoas. Os relatos eram de um clima cordial com a torcida do Las Palmas, independentemente da importância da ocasião. Além disso, o ambiente também era calmo na concentração dos Leones. Javier Clemente preferiu economizar na preparação física, para deixar seus atletas mais à vontade e mais relaxados antes do duelo final. “Espero que o calor não maltrate. Se fosse para escolher, preferia jogar num temporal, mas isso é dificílimo. Só vale ganhar e o Real Madrid perder. É difícil, mas não impossível. A verdade é que esta Liga, por cima e por baixo, está muito viva. Talvez excessivamente…”, declarou o treinador.
A glória depois de 27 anos
O Athletic Bilbao entrou em campo na rodada final com o time praticamente completo. Goikoetxea era a ausência mais importante. De resto, todos os destaques da campanha: Zubizarreta, Urkiaga, De Andrés, Urtubi, Argote, Sarabia, Dani. Já o Real Madrid, paralelamente, não tinha conseguido recuperar Stielike e encarava o Valencia sem um dos seus melhores jogadores. Apesar disso, a missão dos merengues parecia mais acessível. Algo que se confirmou logo aos três minutos, a partir do apito inicial na rodada: um gol contra de De Andrés, desviando contra as próprias redes uma bola alçada na área, abriu o placar para o Las Palmas contra os Leones no Estádio Insular. O Athletic precisava agora da virada e torcer pelo Valencia. Os Ches começaram com duas boas chegadas antes dos cinco minutos, mas tinham mais vontade que capacidade. O Madrid administrava feito um amistoso.
A reação do Athletic Bilbao, pelo menos, não demorou a acontecer. O empate saiu aos dez minutos. A defesa do Las Palmas sofreu uma pane e permitiu que Sarabia marcasse com facilidade. E os Leones foram auxiliados também pelos canários, que passaram a ter uma crise de nervos. O temor dos anfitriões pelo rebaixamento era maior que qualquer ansiedade dos bilbaínos pelo título. Os rojiblancos aproveitaram isso. A virada aconteceu aos 41’, num cruzamento de Sarabia que o goleiro Manolo não segurou e Dani mandou para as redes. E o melhor não era apenas isso. Chegava também a notícia de que o Valencia tinha aberto o placar contra o Real Madrid aos 39’. Não era uma boa partida do ponto de vista técnico, mas Tendillo garantiu o gol. Depois da cobrança de escanteio desviada no primeiro poste, o jogador da seleção espanhola saltou com tudo para fuzilar de cabeça. As arquibancadas no Mestalla explodiam, diante da esperança de que os valencianos não caíssem.
Quando o segundo tempo começou no Estádio Insular, o Athletic Bilbao consolidou a vitória. O terceiro gol saiu logo cedo, aos 12 minutos. Sola fez o lançamento e, de novo com a permissividade coletiva da defesa do Las Palmas, Sarabia anotou mais um. A partir de então, o que se viu foi um passeio dos Leones. A equipe de Javier Clemente tinha total controle da partida e não via qualquer reação do Las Palmas. A goleada se ampliou pouco a pouco. Aos 24, Dani inverteu os papéis e fez o cruzamento para Argote deixar sua marca, com um balão no goleiro. Já aos 44’, Urtubi pegou a bola na intermediária, arrancou e mandou um tiro cruzado no fundo da meta de Manolo. O placar de 5 a 1 sobre o Las Palmas cumpria com êxito a tarefa do Athletic. O sucesso da empreitada ainda dependia do Valencia.
E o segundo tempo no Mestalla é que realmente decidiu aquele campeonato, sob enorme tensão. O Valencia quase anotou o segundo, quando Ricardo Arias acertou o travessão. De qualquer maneira, foi o Real Madrid que voltou com outra cara do intervalo, com uma postura muito mais agressiva, como deveria ser. Logo passaram a rondar o empate. Os merengues reclamariam de um pênalti sobre Juanito, em lance que resultou apenas numa falta fora da área. Depois, Metgod carimbou o travessão. E Santillana pararia no goleiro José Ramón Bermell, antes de cabecear para fora. O relógio não chegava aos 15 minutos e o abafa era temendo.
À medida que o tempo passou, o nervosismo aumentou. Era uma partida muito intensa, mas o Real Madrid não conseguia anotar o gol necessário. Di Stéfano tentou colocar seu time para o ataque, enquanto Koldo Aguirre fechava o Valencia na retranca. O desespero se escancarou nos minutos finais. Aos 41’, Santillana teve uma chance dupla. Carimbou Bermell e ainda ficou com o rebote, que mandou na trave. Não era mesmo o dia do Real Madrid. O Valencia ainda desperdiçou a chance de matar o jogo num contra-ataque, mas a blitz era toda dos merengues. Isso até que o apito final selasse os rumos daquele campeonato. O Valencia venceu por 1 a 0 e se salvou do rebaixamento, reservado a Las Palmas, Celta e Racing de Santander. O Real Madrid perdeu e viu um título que parecia nas mãos escapar. O Athletic Bilbao era campeão, depois de 27 anos. Em 34 jogos, foram 22 vitórias, seis empates, seis derrotas, 71 gols marcados (melhor ataque) e 36 gols sofridos. Dani, com 18 gols, e Sarabia, com 16 gols, foram os artilheiros do time na campanha vencedora.
Uma chuva de lágrimas de alegria tomou os jogadores do Athletic Bilbao no Estádio Insular, quando veio a confirmação do título. Antigo ídolo do clube e presente em campo nos dois troféus anteriores na Liga, em 1942/43 e em 1955/56, Piru Gaínza (que continuava coordenando o trabalho de base em Lezama) era um dos mais emotivos. A frase “rapazes, vocês não sabem o que fizeram”, dita pela lenda, se tornaria célebre. Mesmo o presidente Pedro Aurtenetxe não se conteve no choro. Já um personagem especial aos prantos era Sarabia, vice-artilheiro da campanha com 17 gols (só um a menos que Dani) e fundamental na rodada decisiva: “É tudo tão bonito… Ainda não posso acreditar que somos campeões. Sonhamos tanto!”.
Um dos mais calmos, curiosamente, era Javier Clemente: “Não chorei, mas em algum momento me saltaram as lágrimas. Agora é quando os nervos se desatam. Estava tranquilo no banco e só comecei a pensar em sermos campeões quando faltavam cinco minutos em Valência, com o Real Madrid ainda perdendo. O mérito é de todos, principalmente dos jogadores”. No Mestalla, o próprio Koldo Aguirre não escondia a alegria dupla à frente do Valencia: “Só eu acreditava nisso quando cheguei ao Valencia. É o dia mais feliz da minha vida. E como não… O Athletic também é campeão!”.
Já entre as mensagens de parabéns, havia uma de Bobby Robson, diante da maneira como Clemente seguia exaltando os conhecimentos absorvidos naquele estágio pelo Ipswich:
“Eu me alegro muito que Javier esteja tendo tanto êxito, ainda que me surpreenda. Ao todo, esteve conosco por três ou quatro semanas, e sempre se mostrou simpático, vivo e inteligente. Talvez dissesse por cortesia, mas parece que gostou do nosso estilo de jogo e me fazia em todas as aulas perguntas muito curiosas e pontuais sobre a mecânica do nosso futebol. O que me surpreendeu um pouco é que Javier conseguiu resultados positivos em pouquíssimo tempo.
Eu temia que nosso sistema não se adaptaria facilmente ao Campeonato Espanhol, e o adverti que um trabalho deste tipo poderia demorar até três anos para dar frutos. Se as coisas que Javier viu em Ipswich contribuíram realmente para o êxito da equipe, eu me sinto honrado em ter ajudado um pouquinho que um grande clube como o Athletic Bilbao esteja de novo entre os primeiros do Campeonato Espanhol”.
Uma festa espetacular
Enquanto isso, em Bilbao, a erupção nas ruas começou assim que a derrota do Real Madrid foi confirmada pelas emissoras de rádio. Uma multidão tomou a cidade. San Mamés abrigava inclusive um jogo naquele momento, do Bilbao Athletic, pela terceira divisão. A euforia foi tremenda. Já durante a noite, milhares e milhares de pessoas se dirigiram ao centro de Bilbao. Eram inúmeros veículos, com bandeiras e outros adereços rojiblancos. Era uma catarse. O povo visto como “terrorista” chegava ao topo da Espanha através da bola. As cisões políticas no País Basco e as mazelas das crises ficavam para trás por um momento. Era uma mistura de gente, das mais diferentes origens, como se aquele troféu oferecesse uma esperança. Dias melhores tinham chegado. Era a vitória de todo o povo bilbaíno, com um time formado em casa, que representava o orgulho local.
“A proeza do nosso Athletic, ao coroar tão brilhante e espetacularmente o campeonato nacional de Liga 1982/83, constitui um motivo de satisfação e entusiasmo, não só para a família athletica de San Mamés, mas também para todo o País Basco e para a inumerável torcida que goza em toda a Espanha o Athletic Bilbao”, descreveu o jornal El Correo. Já o Deia salientou: “O Athletic, uma vez mais, tomou de uma forma espontânea todos os corações bascos. O Athletic é algo mais, muito mais que um clube de futebol, e tem uma dimensão popular legitimamente basca. O Athletic, como a Real, é um símbolo basco vivo que aglutina as pessoas que amam profundamente essa terra”.
O verdadeiro “dia do título” aconteceu, enfim, em 3 de maio de 1983. Foi quando o Athletic Bilbao, depois de retornar das Ilhas Canárias, fez o seu desfile na célebre gabarra – copiando o gesto de um pequeno clube local, que festejara numa embarcação do tipo um título nas divisões de acesso em 1924. Mas não com a proporção dos Leones, claro. Centenas de milhares de pessoas abarrotaram o Rio Nervión e também as margens para aplaudir os heróis. As estimativas são de mais de um milhão de pessoas, sendo que a região metropolitana de Bilbao, na época, tinha 900 mil habitantes. Foram 14 quilômetros de travessia rodeados por gente e pela onipresente ikurriña, a bandeira basca.
Os relatos são insanos. Até idosos se arriscaram em varandas para cumprimentar os jogadores. Nas obras, operários todos estavam amontoados em andaimes. As pontes estavam abarrotadas, com gente se lançando no rio. Praticamente não existia pedaço de chão livre nos arredores da festa, assim como dezenas de embarcações acompanharam a gabarra principal. O elenco do Athletic visitou a Basílica de Nossa Senhora de Begoña e também a sede do governo local. Sempre ovacionados.
“Já esperava esse recebimento. Conheço nosso povo e sei o que significa este triunfo para todos. Nestes momentos tenho uma alegria indescritível, porque esta vitória é da equipe de todos, de uma equipe que, como fazem todos os conjuntos bascos, deu um exemplo extraordinário de como se trabalha em casa, com um time feito na base, à margem dos costumes mercantilistas de outros clubes”, comentou o presidente do Athletic, Pedro Aurtenetxe.
O curioso é que a temporada não tinha se encerrado ainda na Espanha. Na época, a Copa da Liga existia e acontecia em junho. O Athletic Bilbao até eliminou o Osasuna, mas caiu na segunda fase para o Atlético de Madrid. A decisão teve um Barcelona x Real Madrid, com o título dos blaugranas. Os merengues, aliás, engoliam a seco seu quinto vice na temporada. Começou com a derrota para a Real Sociedad na Supercopa da Espanha. Perderam a Copa do Rei também para o Barcelona. E nem a Recopa Europeia veio, com o triunfo do Aberdeen de Sir Alex Ferguson. De todas, porém, a derrocada mais dolorosa era mesmo a de La Liga. Parecia a mais certa de todas.
O bi e uma era inesquecível
Já para o Athletic Bilbao, os sonhos não se encerraram em 1982/83. Javier Clemente continuaria à frente de um elenco jovem e cheio de potencial para 1983/84. Os Leones não tiveram vida longa na Champions, eliminados por um fortíssimo Liverpool. Em compensação, fizeram a rapa nas competições nacionais. O bicampeonato de La Liga veio com mais uma campanha suada – terminaram com o mesmo número de pontos do Real Madrid e venceram graças ao confronto direto contra os merengues – vitória por 2 a 1 e empate sem gols.
Os rojiblancos completaram a dobradinha com uma Copa do Rei mais lembrada pela pancadaria ao apito final contra o Barcelona – o Athletic venceu por 1 a 0, gol de Endika Guarrotxena. Daquele grupo, 11 jogadores chegariam à seleção da Espanha, nove deles a partir do sucesso de 1982/83. E isso sem contar Javier Clemente, ele mesmo destinado a dirigir a Fúria em duas Copas do Mundo, em 1994 e 1998. São outras histórias, outros caminhos, outros detalhes. Porque, afinal, a gabarra não foi o ponto de chegada – ela se transformou em meio de partida a muito mais. Para os sonhos dos bascos, como um todo. Um esquadrão imortal.
Os personagens:
Zubizarreta: chegou ao Athletic em 1981 e rapidamente se destacou pelas notáveis defesas, grande senso de posicionamento e liderança. Foi titular absoluto do time de Bilbao até 1986, quando foi fazer história, também, pelo Barcelona. Disputou 239 jogos pelo Athletic, virou titular da seleção espanhola e se consagrou com um dos maiores goleiros espanhóis da história.
Urkiaga: lateral-direito muito técnico, com velocidade e vigor físico, era uma referência no setor defensivo do Athletic. Jogou de 1979 até 1987 nos bilbaínos e foi um exemplo de força de vontade ao se recuperar de uma lesão a tempo de disputar a Copa do Mundo de 1982.
Goikoetxea: foi um dos defensores mais implacáveis e ríspidos da história do futebol e ganhou o singelo e nada amistoso apelido de “Açougueiro de Bilbao” por causa de suas entradas nos adversários e estilo de marcação. Foi o responsável por causar a mais séria lesão da carreira de Maradona, quebrando o tornozelo do argentino, e também no alemão Schuster. Embora fosse temido no mano a mano, o zagueiro tinha suas virtudes ao ser essencial nas ligações diretas com o ataque e ainda aparecer lá na frente e marcar gols. Em 369 jogos pelo Athletic entre 1974 e 1987, Goikoetxea marcou 44 gols.
Liceranzu: formou ao lado de Goikoetxea uma das mais sólidas e temidas duplas de zaga da história do futebol nos anos 1980. Duro na marcação e também eficiente no jogo ofensivo, o Rocky foi essencial para o sucesso do Athletic naquela época.
Luis De la Fuente: outra cria das bases do Athletic, De la Fuente foi um dos principais laterais da equipe naquela época graças ao bom passe, grande visão de jogo e eficiência na marcação. Não costumava avançar muito como Urkiaga, mas ajudava na proteção do lado esquerdo da defesa. Após pendurar as chuteiras, virou treinador e conduziu a seleção da Espanha ao título da Liga das Nações de 2022-2023 e à medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020.
José María Núñez: o lateral-esquerdo não era tão eficiente no apoio ao ataque quanto Urkiaga, mas cumpria seu papel defensivo e no apoio ao meio de campo. Foram 258 jogos com a camisa dos Leones na carreira entre 1973 e 1976 e 1978 e 1986.
Miguel De Andrés: com grande visão de jogo e muito técnico, De Andrés era um dos craques do time e jogava de cabeça erguida no meio de campo. Embora gostasse de atuar como líbero, foi como primeiro volante que ele se destacou naquele Athletic. Combinava qualidades táticas na proteção e precisão na construção. Disputou mais de 200 jogos com a camisa rojiblanca na carreira.
Patxi Salinas: o jovem teve mais chances a partir de 1983-1984, quando ajudou a compor o meio de campo e até a zaga quando preciso. Jogou 10 anos no Athletic, teve uma passagem pelo Celta e virou treinador.
Ismael Urtubi: era um camisa 10 que chegava com potência ao ataque e logo se tornaria uma revelação. Além disso, tinha raça e o espírito que a torcida tanto admirava no time. Tinha um chutaço de perna esquerda e habilidade para passes em profundidade e lançamentos, além de marcar gols decisivos. Jogou nos Leones de 1980 até 1992, com breves passagens por empréstimo pelo Mallorca e Margaritense em 1981 e 1982.
José Ramón Gallego: muito dinâmico e forte no ataque, Gallego jogou de 1980 até 1991 pelos Leones e acumulou mais de 320 jogos pelo Athletic.
Miguel Sola: aparecia muito bem no ataque com sua velocidade e passes precisos, além de marcar gols. Costumava atuar mais pela direita do meio de campo, fazendo o elo com o ataque.
Dani: ídolo e 2º maior artilheiro da história do Athletic com 199 gols em 402 jogos, Dani foi o principal goleador do time naquela era de ouro. Atacante incisivo e que se sobressaía mesmo com a baixa estatura – tinha 1,67m de altura – anotou 18 gols em 32 jogos na campanha do caneco de 1982-1983. Embora tenha se lesionado na temporada 1983-1984, voltou a tempo para marcar um gol fundamental para o bicampeonato de La Liga: o da vitória por 2 a 1 sobre o Real Madrid, no returno, aos 87’.
Manu Sarabia: jogava mais centralizado no ataque e recebia preciosas bolas de Dani e Argote para balançar as redes rivais. Foram 16 gols em 33 jogos na temporada 1982-1983. Em 10 anos no clube, anotou 118 gols em 379 jogos.
Guarrotxena: com a lesão de Dani, o atacante teve mais chances na temporada 1983-1984 e deixou sua marca em jogos decisivos, entre eles a final da Copa do Rei de 1983-1984 vencida com um gol dele sobre o Barcelona.
Argote: um dos mais talentosos atacantes de seu tempo, que jogava no time principal desde 1977 e era dono de uma canhota mágica, Argote fazia jogadas marcantes pelo lado esquerdo do ataque do Athletic e foi um dos principais nomes do time na época. Garçom nato, presenteava os companheiros com bolas precisas graças à sua técnica acima da média. Só não teve mais chances na seleção por causa das lesões. É, sem dúvida, um dos maiores craques da história do Athletic e disputou 427 jogos com a camisa rojiblanca e, nos 65 jogos da campanha do bicampeonato de La Liga, Argote anotou 10 gols.
Javier Clemente (Técnico): apostando nos talentos das categorias de base com veteranos, Clemente formou um dos mais competitivos e históricos esquadrões do futebol espanhol nos anos 1980 e recolocou o Athletic na rota dos títulos. Ele armou um time muito forte no jogo físico, na entrega em campo e nos contra-ataques mortais que aplicava nos rivais. Entre 1981 e 1986, Clemente comandou o clube de Bilbao em 227 jogos, com 118 vitórias, 54 empates e 55 derrotas, acumulando quatro títulos lendários.
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Texto sensacional guilherme ja faz 30 anos que sou torcedor do bilbao e desde 84 os canecos sumiram mas nunca desisto e ontem nos classificamos para mais uma final de copa do rei.depois de dois vices seguidos chegou a hora e contra o mallorca eu acredito que vamos ganhar.falando do time de 83 destaques para zubizarreta que virou referencia tambem na furia com 4 copas do mundo jogadas e o simpatico goikoetchea que quebrava literalmente tudo naqueles tempos.o artilheiro dani outro imortal tambem.confesso que fiquei emocionado lendo esse texto e agradeco a voce pela satisfacao.preparem a gabarra.
Obrigado, Everton! 🙂