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Técnico Imortal – Bill Shankly

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Nascimento: 02 de setembro de 1913, em Glenbuck, Escócia. Faleceu em 29 de setembro de 1981, em Liverpool, Inglaterra.

Times que treinou: Carlisle United-ING (1949-1951), Grimsby Town-ING (1951-1954), Workington-ING (1954-1955), Huddersfield Town-ING (1956-1959) e Liverpool-ING (1959-1974).

Principais títulos por clube: 1 Copa da UEFA (1972-1973), 3 Campeonatos Ingleses (1963-1964, 1965-1966 e 1972-1973), 2 Copas da Inglaterra (1964-1965 e 1973-1974), 3 Supercopas da Inglaterra (1964, 1965 e 1966) e 1 Campeonato Inglês da Segunda Divisão (1962-1963) pelo Liverpool.

Principais títulos individuais:

Eleito o técnico do ano na Inglaterra: 1972-1973

Ordem do Império Britânico: 1974

Eleito um dos 1000 maiores esportistas do século XX pelo jornal The Sunday Times

Eleito para o Hall da Fama do Futebol Inglês: 2002

Eleito para o Hall da Fama do Futebol Escocês: 2004

“A alma de Anfield Road”

Por Guilherme Diniz

Com paixão, fibra e conhecimento pleno de tudo o que envolve o futebol, ele tirou um clube do limbo e o catapultou para o estrelato. Para os títulos. Para façanhas homéricas. Para a imortalidade. Ele criou um mito. Uma filosofia. Uma religião em vermelho. No túnel que dá acesso ao gramado de Anfield Road, ele pediu para que se colocasse a frase “This is Anfield” (Aqui é Anfield!) só para aterrorizar os adversários e entusiasmar qualquer jogador vestido com o manto do Liverpool Football Club. Embora tenha se aposentado cedo demais, ele fez muito e tudo o que nenhum homem jamais fez por um time de futebol. Willian Shankly, mais conhecido como Bill Shankly, comandou o Liverpool durante 15 anos, mas seu legado e trabalho à frente do tradicionalíssimo clube inglês permanece até hoje como inigualável e fundamental para a existência e o crescimento da instituição no futebol mundial.

Shankly conduziu jogadores, diretores e torcida com mãos fervorosas e uma devoção incondicional que cativou qualquer um em Merseyside. Zombar o rival, Everton, também foi uma de suas paixões e frases como “se o Everton estivesse jogando no meu quintal, fecharia as cortinas” arrancaram gargalhadas de muita gente (menos dos azuis da cidade, claro). Shankly pensou em tudo, da estrutura de treinamento até os uniformes, e plantou a semente para que após sua estadia em Anfield o Liverpool conquistasse quatro Ligas dos Campeões da UEFA, inúmeros Campeonatos Ingleses e vários outros títulos em apenas uma década. Não é a toa que uma imponente estátua sua seja admirada na parte externa do estádio. E que os portões que levam a frase “You I´ll Never Walk Alone” (você nunca andará sozinho), o mantra de qualquer torcedor do Liverpool, levem o nome de Shankly Gates. É hora de relembrar.

 

Carvão e futebol

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Bill Shankly nasceu na pequena vila de Glenbuck, em East Ayrshire, Escócia. Ao lado dos irmãos (os Shankly eram cinco homens e cinco mulheres), o jovem cresceu sem mordomias, passou fome principalmente nas épocas de inverno rigoroso e largou os estudos aos 14 anos para trabalhar nas tradicionais minas de carvão da região. Nos pequenos horários de intervalo, costumava jogar futebol com os companheiros e pegou gosto pela coisa. Rapidamente, decidiu largar o trabalho árduo e se arriscar no esporte, decisão seguida por todos os seus irmãos homens. Em 1932, Shankly começou a jogar no Carlisle United, onde ficou durante três temporadas.

Depois de atuar mais pelo setor esquerdo do meio de campo, o jogador encontrou seu verdadeiro espaço como um “right half” pela direita, onde se especializou em roubar bolas dos adversários e ajudar a iniciar contra-ataques. Vigoroso e muito competitivo, Shankly foi para o Preston North End, em 1933, e viveu bons momentos, sendo o principal deles em 1938, quando venceu a Copa da Inglaterra sobre o Huddersfield Town. Suas atuações lhe renderam 12 convocações para a Seleção da Escócia, mas a II Guerra Mundial abreviou a melhor fase de sua carreira, aos 26 anos, quando teve que servir às forças armadas e disputar partidas amistosas em diversos campeonatos de guerra. Quando o conflito acabou, Shankly teve apenas mais alguns anos como jogador profissional e se aposentou, em 1949, aos 35 anos. Era hora de começar a trabalho que ele planejava há anos: ser técnico de futebol.

 

Lapidando um estilo

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Depois de anos percebendo os estilos de cada treinador que teve e os diferentes macetes utilizados por eles, Shankly mostrou-se pronto para exercer pela primeira vez a função de técnico de futebol. Seu primeiro desafio foi no Carlisle United (clube que ele defendeu como jogador), em 1949. Naquela época, o time vivia tempos difíceis, frequentava a terceira divisão e não atraía nem torcedores, muito menos novos jogadores, que não estavam dispostos a viajar vários quilômetros e jogar em um lugar geograficamente isolado e pouco atrativo.

O novo técnico começou a enfatizar um trabalho mais profissional no dia-a-dia do clube e a trabalhar o lado psicológico com seus jogadores, dizendo que os adversários “chegariam cansados para jogar em Carlisle e isso deveria ser aproveitado”, além de chamar a torcida para comparecer em peso e apoiar seus atletas. A tática funcionou várias vezes e o progresso foi visível: 15º lugar na temporada 1948-1949, 9º lugar na temporada 1949-1950 e 3º lugar na temporada 1950-1951. Sem conseguir o acesso, Shankly decidiu deixar o clube nortista e assinou com o Grimsby Town, em 1951.

Por lá, quase o mesmo cenário: time em queda livre, jogadores com moral baixo e público escasso. O técnico repetiu o trabalho de antes e fez com que o público médio dos jogos locais do Grimsby fosse de 20 mil torcedores. Na temporada 1951-1952, Shankly conduziu o time ao vice-campeonato da terceira divisão com 29 vitórias, oito empates e nove derrotas em 46 jogos, totalizando 66 pontos (na época as vitórias valiam dois pontos), apenas três a menos que o campeão, o Lincoln City. Como apenas o primeiro colocado subia de divisão, o Grimsby ficou mesmo na terceirona.

Mesmo com a não promoção, Shankly se mostrou orgulhoso do time e da torcida e chegou a dizer que o Grimsby tinha o “melhor futebol da Inglaterra desde o fim da guerra”, com jogadas bem trabalhadas, bonitos gols e muita disposição. Claro que a fala de Shankly soava exagerada, mas era uma maneira de ele elevar o moral dos atletas e mostrar que eles podiam enfrentar qualquer adversário. Na temporada seguinte, o quinto lugar decepcionou muita gente, e Shankly deixou o comando do Grimsby em janeiro de 1954.

Shankly (no topo, à esq.) acompanha a chegada do promissor atacante Denis Law ao Huddersfield.
Shankly (no topo, à esq.) acompanha a chegada do promissor atacante Denis Law ao Huddersfield.

 

Em seus trabalhos seguintes, Shankly manteve a mesma pegada transformista e entusiasmada, mas não conseguiu refletir isso em títulos ou acessos. No Workington, o problema maior foi ter que dividir o campo com o time de rugby da cidade, o que devastou o gramado e prejudicou demais o rendimento do time nos jogos da terceira divisão. Mesmo assim, ele levou o clube de um 18º lugar em 1953-1954 para a 8ª posição na temporada seguinte. Sem perspectivas financeiras, o Workington não conseguiu manter Shankly, que assinou com o Huddersfield Town em dezembro de 1955.

Por lá, o treinador viu nascer o notável atacante escocês Denis Law, que faria história no Manchester United, mas ficou irado quando percebeu a falta de ambição da diretoria do clube, que vendia os principais jogadores e era incapaz de trazer peças de reposição. Sem conseguir o acesso, Shankly estava bastante desiludido naquele final de anos 50 quando, em novembro de 1959, o treinador recebeu um contato de Tom Williams, do Liverpool, que lhe perguntou se ele não queria comandar o “melhor clube do país”. Shankly foi seco e respondeu “por quê?”, para depois pensar bem a respeito e ver que aquela era a chance que ele tanto precisava e ansiava. No adeus ao Hudderfield, Shankly foi profético:

“Vou para um lugar onde eles vivem, comem, dormem e bebem futebol. E lá é o meu lugar”.

E como seria…

 

A transformação de um clube

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Em termos de popularidade, o Liverpool era infinitas vezes maior que todas as outras equipes comandadas por Shankly juntas, mas a fase do clube naquele ano de 1959 era a pior possível. Cinco vezes campeão inglês, o time não sabia o que era um título desde 1947, estava na segunda divisão do Campeonato Inglês há cinco anos e ostentava apenas as exatas cinco ligas nacionais no currículo. Nada de copas. Nada de Ligas dos Campeões. Para piorar, o estádio Anfield Road estava cheio de problemas estruturais, o campo de treinamento de Melwood era horrível, diretores davam palpites constantemente nas preleções e reforços para o elenco eram escassos, bem como o dinheiro. E tinha mais: o Everton, rival local, tinha mais títulos que os Reds! Shankly viu tudo aquilo e arregaçou as mangas para começar o maior trabalho de sua carreira – e de sua vida.

Antes de tudo, o técnico estreitou o relacionamento com membros da área técnica como Bob Paisley, Joe Fagan, Reuben Bennet e Tom Saunders, que sentiram em Shankly o espírito de paixão pelo trabalho e pelo futebol que tanto o Liverpool precisava. Em pouco tempo, essa turma criou o ritual de se reunir na sala onde o clube guardava as chuteiras dos jogadores, que ficaria mundialmente conhecida como “The Boot Room”. Lá, eles papeavam, bebiam uísque e pensavam na parte tática que seria utilizada nos próximos jogos do time. Mal sabiam os torcedores que daquela sala sairiam as receitas para nada mais nada menos que 33 títulos até 1984.

Depois de fazer as amizades na parte técnica, Shankly se voltou ao clube em si. O Liverpool precisava voltar à elite do futebol inglês e precisava investir em material humano. Shankly não se cansou de argumentar e se reunir com a direção para que eles contratassem goleiros, meio-campistas e dessem mais atenção para o ambiente de trabalho e os gramados onde os atletas iriam treinar. O técnico dispensou 24 jogadores que não seriam utilizados, passou à diretoria listas e listas de novos nomes, pincelou jovens das categorias de base e ganhou alguns reforços como Ron Yeats e Ian St. John. Era pouco, mas foi o que ele teve para iniciar o trabalho em sua primeira temporada e ver o que seria necessário para subir de divisão. Na temporada 1960-1961, o Liverpool acabou na terceira posição, mas na seguinte, Shankly conduziu os Reds ao título e à promoção, com oito pontos de vantagem sobre o vice-campeão. Roger Hunt, que seria titular da Seleção Inglesa na Copa de 1966, foi o grande destaque da equipe ao anotar 41 gols.

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Os frutos começavam a ser colhidos e o trabalho de Shankly era cada vez mais elogiado e apreciado. Em Melwood, que já tinha a devida atenção da diretoria, os treinos eram intensos e com foco total na preparação física, bem como na precisão dos arremates e dos chutes, com alvos espalhados por muros ou paredes a fim de ser acertados pelos jogadores. Mais do que isso, o coletivo era sempre ressaltado, bem como o passe preciso de pé em pé. Todos treinavam a exaustão, mas o resultado era recompensador e perceptível em campo: o Liverpool fez 99 gols em 42 jogos na campanha do título da segunda divisão de 1961-1962, o melhor ataque de todo o torneio. Na temporada 1962-1963, a primeira de Shankly na elite do futebol inglês, o Liverpool terminou em uma modesta 8ª posição, mas o ano terminou com sabor amargo pelo fato de o rival Everton ter sido o campeão inglês. Mas os azuis veriam a taça do campeonato novamente apenas em 1970, pois os ventos laureados da cidade mudariam para o lado vermelho.

 

Os primeiros títulos e o nascimento do “todo vermelho”

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Apenas dois anos após subir de divisão, o Liverpool mostrou que estava diferente quando venceu o título do Campeonato Inglês da temporada 1963-1964. A equipe ficou quatro pontos a frente do Manchester United e fez uma campanha exemplar: 26 vitórias, cinco empates, 11 derrotas, 92 gols marcados e 45 gols sofridos (melhor defesa) em 42 jogos. A campanha foi encerrada com uma acachapante goleada de 5 a 0 sobre o Arsenal, em casa, para delírio da torcida que não celebrava um título desde os anos 40. A equipe mostrou uma força notável jogando em seus domínios e se impôs perante os adversários com a mesma energia transmitida por Shankly no banco de reservas.

Após o título, o treinador decidiu continuar sua mudança no clube ao definir a nova cor do calção do uniforme titular da equipe: vermelho (antes, o Liverpool jogava de camisas vermelhas, calções brancos e meias vermelhas). Certo dia, antes de um jogo contra o Anderlecht-BEL, pela Liga dos Campeões da UEFA de 1964-1965, Shankly pediu para Ronnie Yeats vestir um calção vermelho. Quando o jogador se perfilou todo em rubro, Shankly se maravilhou instantaneamente e fez com que a diretoria passasse a usar daquele dia em diante um uniforme totalmente vermelho, para mostrar “perigo e poder” aos adversários, outra atitude com total lado psicológico que tanto Shankly gostava.

Contra o Anderlecht, em 25 de novembro de 1964, o Liverpool estreou sua vestimenta “totally red” e goleou os belgas por 3 a 0, gols de St. John, Hunt e Yeats. Pronto. A mística do clube havia nascido. Shankly foi perfeito nas palavras ao se referir sobre aquele dia:

“Nosso jogo contra o Anderlecht em Anfield foi uma noite marcante. Vestimos o uniforme totalmente vermelho pela primeira vez. Cristo, os jogadores pareciam gigantes! E nós jogamos como gigantes.”Bill Shankly.

Depois de passar pelos belgas, o Liverpool eliminou o Köln-ALE, nas quartas de final, mas caiu diante da Internazionale-ITA de Helenio Herrera, na semifinal, e abreviou o sonho de seu primeiro título continental. Mas foi naquela temporada que a equipe de Anfield venceu sua primeira Copa da Inglaterra, na decisão contra o Leeds United de Alan Peacock, Jack Charlton e Johnny Giles. Com mais de 100 mil pessoas em Wembley, Shankly inflou seus jogadores e o Liverpool venceu o jogo por 2 a 1, na prorrogação, com gols de Hunt e St. John.

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Na temporada seguinte, o Liverpool de Shankly disputou pela primeira vez a Recopa da UEFA e fez uma campanha brilhante: eliminou Juventus-ITA, Standard Liège-BEL, Budapest Honvéd-HUN e o poderoso Celtic-ESC, sempre fazendo o resultado em casa e com a força de sua fanática torcida que sempre lotava o Anfield Road. Na decisão, no gigante Hampden Park tomado pela chuva, o time inglês sentiu a falta de sua torcida e perdeu para o Borussia Dortmund-ALE por 2 a 1, resultado que fez do time alemão o primeiro de seu país a vencer um torneio continental.

Mas Shankly não passou em branco aquela temporada. Na Inglaterra, ele levou o Liverpool a mais um título nacional, com seis pontos de vantagem sobre o Leeds United. O time teve novamente a melhor defesa (34 gols sofridos em 42 jogos) e ainda fez a alegria da torcida ao golear o Everton por 5 a 0, em Anfield. Sempre brincalhão, Shankly começou a se acostumar com o rival passando por maus bocados e costumava dizer que “sempre abria o jornal de domingo e olhava para a parte de baixo da tabela do campeonato para ver em qual posição o Everton estava”.

 

Hora de reconstruir

Bill Shankly at his testimonial, April 1975.

Depois de dois campeonatos nacionais, uma copa nacional e boas participações em competições continentais, o esquadrão do Liverpool necessitava de novas peças de reposição e Bill Shankly abriu os olhos para os talentos disponíveis. Na temporada 1966-1967, ele viu enorme potencial no goleiro Ray Clemence e no defensor/meio-campista Emlyn Hughes, e fez a diretoria vermelha contratar ambos por cerca de 83 mil libras. Mesmo com os reforços, o Liverpool não venceu mais títulos no final da década e Shankly percebeu que era hora de montar um novo esquadrão.

Para que novos tempos de glórias chegassem, ele foi buscar mais reforços e trouxe um rápido e oportunista atacante do Scunthorpe United: Kevin Keegan, de 20 anos, contratado em 1971 e que seria a “inspiração do novo time”, segundo o próprio Shankly. Antes dele, o treinador trouxe o galês John Toshack, atacante com boa presença de área e nas jogadas aéreas, Alec Lindsay, defensor, e lapidou das categorias de base o ponta Steve Heighway (que passou rapidamente pelo Skelmersdale United) e o volante Brian Hall.

Não bastassem os novos e pontuais nomes, Shankly também trouxe para o clube Geoff Twentyman, seu colega dos tempos de Carlisle e que seria fundamental no trabalho de descobrimento de jovens promessas e na contratação de reforços sublimes para o clube, como Ian Rush, Alan Hansen, Phil Neal e outros que brilhariam na segunda metade dos anos 70 e boa parte dos anos 80.

 

Tudo vermelho de novo

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Mesmo com um time ainda se entrosando e jovem, o Liverpool chegou à final da Copa da Inglaterra de 1971 e deu muito trabalho para o Arsenal, que venceu por 2 a 1 apenas na prorrogação. Mas a torcida nem ligou para a perda do título. Afinal, antes daquele jogo, os Reds haviam eliminado o Everton na semifinal com uma vitória por 2 a 1, gols de Evans e Hall, triunfo que Shankly comemorou como se fosse um título. Na temporada seguinte, o Campeonato Inglês escapou por apenas um ponto, mas na seguinte o time voltou a sorrir em solo inglês.

A equipe foi campeã com três pontos de vantagem sobre o Arsenal e venceu 25 jogos, empatou 10 e perdeu sete em 42 partidas disputadas, com 72 gols marcados (melhor ataque) e 42 gols sofridos (melhor defesa). Aquele foi o título nacional mais celebrado por Shankly, como ele mesmo disse:

“Foi o dia mais feliz da minha vida. Eu nunca tinha passado por aquilo em minha carreira de técnico. Aquele título me deu um prazer maior que os outros dois porque aquele era fruto de um time reconstruído, com jogadores jovens há apenas duas, três temporada jogando na elite profissional e mostrando maturidade de veteranos. Eu queria muito aquele título. E por isso ele foi um alívio recompensador”.Bill Shankly.

Entrosados e jogando sempre com paixão e fervor, os jogadores do Liverpool eram cada vez mais o retrato de Bill Shankly em campo. A torcida amava seu técnico e se via representada por um homem que não se importava em passar horas respondendo cartas dos fãs ou mesmo telefonando para eles para saber a opinião sobre o trabalho e sobre o time em si. Anfield Road era cada vez mais o alçapão vermelho e dificilmente o time da casa perdia sob seus domínios.

"Aqui é Anfield", famosa placa colocada no túnel dos vestiários para amedrontar os adversários do Liverpool.
“Aqui é Anfield”, famosa placa colocada no túnel dos vestiários para amedrontar os adversários do Liverpool.

 

Foi naquele começo de anos 70 que Shankly mandou colocar na descida dos vestiários de Anfield a famosa placa com os dizeres “This is Anfield”, como forma de intimidação para os adversários. No primeiro jogo após a colocação do apetrecho, o Newcastle foi sonoramente goleado por 5 a 0. Culpa da placa, muitos disseram, mas também das piadas de Malcolm Macdonald, do Newcastle, sobre a placa antes da partida. Sempre ao lado de seus jogadores, Shankly continuava a reforçar o lado emocional e fazia com que cada atleta desse o melhor de si e tivesse a força para enfrentar qualquer adversário, mesmo que ele fosse mais forte ou mais técnico. Na mente de Shankly, aquele Liverpool podia jogar contra qualquer equipe do mundo e vencê-la. E era isso que todo dia ele passava para seus pupilos.

 

Enfim, a glória europeia

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Além do título nacional, a temporada 1972-1973 reservou uma glória inédita e marcante ao Liverpool de Shankly: a Copa da UEFA. Embora a competição não tivesse o peso de hoje, o time inglês valorizou o torneio e superou Eintracht Frankfurt-ALE, AEK-GRE, Berliner FC Dynamo-ALE, Dynamo Dresden-ALE e Tottenham Hotspur-ING até a decisão. Nela, os ingleses tiveram pela frente o poderoso Borussia Mönchengladbach-ALE de Netzer, Bonhof, Vogts, Jensen, Simonsen e Heynches, um timaço que colecionou títulos e mais títulos naquela década.

No primeiro jogo, em Anfield, Shankly colocou seu time todo no ataque, não deu a mínima para a fama do rival e viu seu Liverpool vencer por 3 a 0, com dois gols de Keegan e um de Lloyd. Na volta, na Alemanha, Shankly criou um sistema de marcação que assegurasse a vantagem, mas Heynches quase quebrou as táticas do treinador ao marcar dois gols no primeiro tempo. Mas, na segunda etapa, o Liverpool conseguiu manter o placar a seu favor e faturou o título. Foi a primeira vez que um clube inglês faturou, em uma mesma temporada, o título nacional e um torneio continental.

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A última glória

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Na temporada 1973-1974, o Liverpool de Shankly não conquistou o Campeonato Inglês e foi mal na Liga dos Campeões, mas na Copa da Inglaterra a equipe foi simplesmente irresistível. Os Reds eliminaram o Doncaster Rovers (2 a 0, após empate em 2 a 2), Carlisle United (2 a 0, após empate sem gols), Ipswich Town (2 a 0), Bristol City (1 a 0) e Leicester City (3 a 1, após empate sem gols) até chegar à final contra o Newcastle. O jogo não foi em Anfield, mas no Wembley. Não havia “This is Anfield” escrito no túnel dos vestiários. Mas o Liverpool se comportou como se estivesse em casa e como se os alvinegros tivessem zombado como haviam zombado anos atrás. Com uma atuação magistral que deixou a zaga do Newcastle “totalmente nua”, segundo o narrador da BBC na época, o Liverpool goleou por 3 a 0 (mas poderia ter sido 6, 7…), com dois gols de Keegan e um de Heighway, e faturou o título do tradicional torneio.

A partida foi praticamente de um time só e os comandados de Shankly colocaram o rival na roda, com passes precisos, lindas jogadas, ampla dominância e um futebol digno de aplausos. Era o auge de Shankly. E o auge do Liverpool, que precisava apenas encaixar alguns pontos para ampliar sua dominância para o continente. Mas, para o espanto geral, era também o último trabalho de Bill Shankly como técnico e mentor do clube de Anfield.

O Liverpool de 1974: time veloz, criativo e perito em roubar bolas dos adversários.
O Liverpool de 1974: time veloz, criativo e perito em roubar bolas dos adversários.

 

O choque da aposentadoria e os frutos do mestre

Hughes e Shankly com uma das muitas taças vencidas pelo Liverpool.
Hughes e Shankly com uma das muitas taças vencidas pelo Liverpool.

 

No verão de 1974, Bill Shankly pegou todos de surpresa quando anunciou que estava se aposentando do mundo futebolístico. Mesmo no auge, com vários títulos conquistados e após ter ressuscitado o Liverpool, Shankly deu adeus. Para Brian Hall, meio-campista do time na época, a notícia caiu como uma bomba para o elenco vermelho:

“Foi um daqueles momentos como quando Kennedy foi baleado. Foi um choque. Eu não podia acreditar porque ele era muito apaixonado pelo esporte, pelo Liverpool FC e pelos torcedores”.Brian Hall, em entrevista ao The Guardian, 18 de outubro de 2009.

A decisão do treinador se deu pelo excesso de cobrança que ele impunha em si, além do cansativo ambiente esportivo que já começava a lhe estressar dia após dia. Pesou, também, o fato de ele querer passar mais tempo com a família.

Muitos pensaram que o Liverpool não iria continuar no ritmo de antes, mas Bob Paisley, um dos companheiros de Shankly e membro do “The Boot Room”, assumiu o comando do time e manteve a pegada competitiva criada pelo mestre. O que o mundo viu dali em diante foi simplesmente mágico: sob o comando de Paisley, o Liverpool venceu, entre 1975 e 1983, seis Campeonatos Ingleses, três Copas da Liga Inglesa, seis Supercopas da Inglaterra, uma Copa da UEFA, uma Supercopa da UEFA e as cerejas do bolo: três Ligas dos Campeões da UEFA, em 1977, 1978 e 1981. Depois de Paisley, Joe Fagan, também do “The Boot Room”, venceu um Campeonato Inglês, uma Copa da Liga Inglesa e mais uma Liga dos Campeões da UEFA, esta em 1984. Todos esses títulos só foram possíveis graças ao trabalho iniciado lá em 1959, na segundona, por Bill Shankly, que seguiu acompanhando seu querido Liverpool com um arrependimento por ter abreviado tão precocemente sua carreira e chateado com algumas pessoas de dentro do clube que não o trataram como ele merecia, no final dos anos 70, nas vezes em que ele ia até Melwood para acompanhar os treinamentos.

 

Eternamente vermelho

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Depois da difícil tarefa de se desvencilhar do dia-a-dia do Liverpool, Shankly trabalhou em rádios e seguiu no meio esportivo até sofrer um ataque cardíaco em setembro de 1981 e falecer com apenas 68 anos. Assim como em sua despedida como técnico, sua ida eterna foi um novo e doloroso choque para a torcida do Liverpool, que ficava órfã de seu mais célebre e idolatrado mestre. Como homenagem, os portões de Anfield Road chamados “Shankly Gates” ganharam uma frase lapidada em bronze com os dizeres “You´ll Never Walk Alone” (Você nunca andará sozinho), uma linda homenagem ao homem que tanto caminhou por Anfield procurando maneiras de reerguer e reestruturar um clube nascido para fazer história na Inglaterra e no mundo. Anos depois, uma estátua do mestre foi erguida na parte externa do estádio, de braços abertos, como ele sempre fazia quando vencia um rival ou um troféu.

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Com um trabalho fenomenal e que jamais foi igualado por nenhum outro treinador, Bill Shankly personificou o Liverpool FC em si e ensinou como transformar um time em uma potência. Como transformar o barro em um gramado apto para a prática do futebol. Como mudar uma simples peça e fazer um uniforme clássico, único e inconfundível. Como amedrontar rivais com apenas uma frase. E como plantar sementes que renderam as mais fortes e plenas árvores frutíferas. Um técnico imortal.

Números de destaque:

Comandou o Liverpool em 783 jogos (recorde do clube), com 407 vitórias, 198 empates, 178 derrotas, 1307 gols marcados e 766 gols sofridos.

Frases marcantes:

Veja a seguir algumas frases emblemáticas de Bill Shankly (extraídas do site do Liverpool e do site da FIFA):

“Algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou morte. Fico muito decepcionado com essa atitude. Posso garantir que futebol é muito, muito mais importante.” – A frase mais famosa de Shankly, e muitas vezes citada erroneamente.

“O Liverpool foi feito para mim e eu fui feito para o Liverpool”.

“Pressão é trabalhar em mina. Pressão é ficar sem trabalhar. Pressão é tentar escapar do rebaixamento ganhando um salário de fome. Pressão não é a final da Copa da Europa, do Campeonato Inglês ou da Copa da Inglaterra. Isso é a recompensa.” – Sobre a “pressão” de treinar um clube grande.

“Se tiver três escoceses no seu time, você tem chance de ganhar alguma coisa. Mais do que isso, começa a ter problemas.” – Sobre seus compatriotas.

“Diziam que éramos previsíveis. Bom, na minha opinião qualquer um que seja imprevisível é uma perda de tempo. Joe Louis era previsível. Ele derrubava o oponente e tchau. Éramos previsíveis, mas os adversários não conseguiam parar a gente!” – Sobre o estilo de futebol do Liverpool.

“Boa parte do sucesso no futebol está na mente. Você precisa acreditar que é o melhor e jogar para que isso se confirme. Quando eu estava em Anfield, sempre dizíamos que tínhamos os dois melhores times de Merseyside: o Liverpool e os reservas do Liverpool.” – Sobre psicologia.

“Em um clube de futebol existe uma santíssima trindade: os jogadores, o técnico e os torcedores. Os diretores não entram. Eles só estão aí para assinar os cheques.”

“Se você é o primeiro, é o primeiro. Se é o segundo, não é nada.”

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Leia sobre o grande Liverpool que ganhou quase tudo nos anos 1970 e 1980 clicando aqui.

 

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