Por Guilherme Diniz
Este é o 2º maior clássico do mundo de uma lista especial do Imortais. Confira a relação completa no link ao final deste texto!
A rixa: ambos nasceram no bairro de La Boca, na área portuária de Buenos Aires e com raízes genovesas. O River começou suas atividades em 1901 das mãos de Leopoldo Bard (primeiro presidente) e oriundo da fusão dos clubes Santa Rosa e Los Rosales. Já o Boca iniciou sua história em 1905, fruto da ideia de adolescentes filhos de italianos. Com origens parecidas e divididos por quarteirões, a rivalidade cresceu naturalmente. Mas começou a ganhar proporções fora do controle a partir dos anos 20, quando o River se mudou para a Recoleta e passou a jogar no estádio Alvear y Tagle. Até que, nos anos 30, o clube se mudou em definitivo para Núñez, bairro nobre da cidade, e inaugurou o estádio Monumental.
Com um ar de superioridade, o River construiu uma imagem elitista, em contraste à faceta popular e simplória do Boca, enraizado em seu querido bairro. Mesmo tão distante, o River jamais se esqueceu do antigo irmão. Assim como os xeneizes. Ambos passaram a colecionar títulos no futebol argentino, mais e mais torcedores e a alimentar uma rivalidade épica, que para a Argentina e move paixões incondicionais que contagia até mesmo os jogadores. Um duelo entre Boca e River nunca é um clássico. É um Superclásico.
Quando começou: algumas fontes citam o duelo do dia 02 de agosto de 1908, na vitória do Boca sobre o River por 2 a 1, em Dársena Sud. Mas a primeira partida oficial foi no dia 24 de agosto de 1913, com vitória do River Plate por 2 a 1, com o Boca como mandante, mas no estádio do Racing.
Maior Artilheiro: Ángel Labruna-ARG (River Plate): 16 gols
Quem mais venceu: Boca Juniors – 92 vitórias (até abril / 2024). O River venceu 86. Foram 84 empates.
Maiores goleadas: Boca Juniors 6×0 River Plate, 23 de dezembro de 1928
River Plate 0x4 Boca Juniors, 12 de março de 1972
River Plate 5×1 Boca Juniors, 19 de outubro de 1941
River Plate 4×0 Boca Juniors, 19 de julho de 1942
Os nascimentos daquelas duas instituições foram sob mesmo berço, mesma origem, mesmo bairro. Porém, um deles não se sentia bem por ali. Parecia que todo aquele ambiente não lhe fazia bem. Era mais afável aos de azul e amarelo. Com isso, eles se mandaram dali. Foram para a área nobre da cidade. De herança, apenas a camisa com as cores da bandeira genovesa em branco e vermelho. E uma rivalidade ácida, recheada de capítulos eletrizantes, outros trágicos, muitos polêmicos e com craques da mais alta estirpe do futebol. Pensar em futebol argentino é pensar em Boca e River, o maior duelo das Américas. Um dos maiores do mundo. E uma rivalidade que transcende a razão. Para um boquense, é insuportável perder para um antigo vizinho que abdicou de suas raízes, que sempre causou estranheza e ira. Para um millonario, ser derrotado pelos bosteros é a maior das dores, é a ferida máxima no orgulho.
Esses sentimentos são apenas alguns de um clássico que é movido exatamente por isso: sentir. Viver um Superclásico é a síntese de todas as características presentes em um jogo portenho: manchetes provocativas antes do jogo, delírio da torcida no pré-jogo, jogadas ríspidas em campo, passes precisos, gols bonitos (ora polêmicos), fintas, dribles, jogadas ensaiadas, quase sempre uma expulsão (ou duas, três…), falatórias contra a arbitragem, e, claro, muita gozação dos vencedores aos vencidos por semanas, até meses, quiçá anos.
As origens
Após a origem dos dois clubes em La Boca, na ânsia de repetir a trajetória de sucesso do decano do futebol argentino, o Alumni Athletic Club, Boca e River dividiam seus cotidianos no bairro genovês naquele começo de século XX e fizeram seus primeiros embates entre os anos de 1908 e 1913, com jogos anuais posteriormente até um hiato de quase dez anos, que começou em 1919 e só foi terminar em 1927, quando o Boca reencontrou o rival e venceu por 1 a 0. Em 1928, o Boca goleou o River por 6 a 0 e decretou a maior goleada da história do clássico, comprovando a ótima fase vivida pelos xeneizes na época, que fizeram inclusive uma excursão pela Europa que terminou com 19 jogos, 15 vitórias, um empate e apenas três derrotas. Foi então que, em 20 de setembro de 1931, um fatídico duelo chamado “Superescândalo” decretou a grande rivalidade entre ambos. Após abrir o placar, o River viu o árbitro marcar um pênalti para o Boca, aos 28’. Na cobrança, Francisco Varallo bateu e o goleiro Iribarren defendeu. No rebote, Varallo chutou e outra vez o porteiro do River evitou o gol.
Na terceira tentativa, enfim, Varallo fez o gol. Acontece que ele cometeu falta clara no lance, algo confirmado pelo próprio atacante xeneize. O árbitro fez vista grossa e causou a ira dos jogadores do River. O juiz expulsou três jogadores do River por reclamação. O time millonario ameaçou retirar-se de campo. E, sem condições para prosseguir com a partida, o árbitro encerrou o duelo. A tensão em campo acabou refletindo na torcida e originando conflitos nas tribunas e do lado de fora do estádio. O Boca ganhou os pontos do jogo, acabou campeão naquele ano e nunca mais um duelo entre ambos foi amigável. Isso porque era apenas o décimo jogo entre a dupla na história…
Após aquele episódio, o River começou sua emancipação no futebol argentino e impressionou a todos quando contratou grandes nomes do esporte na época: Carlos Peucelle (por 10 mil pesos, em 1931) e Bernabé Ferreyra (por 35 mil, em 1932), extravagâncias que originaram o famoso apelido millonarios do clube. E, já em 1932, levantou o título nacional que impediu um bicampeonato seguido do rival Boca. Em 1938, inaugurou seu estádio, o Monumental, que se transformou no grande símbolo de sua imponência e grandeza no futebol argentino, a ponto de ser o habitat preferido da Seleção Argentina. Na inauguração, o River convidou o Peñarol para fazer a partida de estreia e nem sequer deu bola para o rival. Dois anos depois, em 1940, o Boca respondeu inaugurando La Bombonera, que igualmente se transformou no símbolo da paixão do Boca pelo seu bairro e por sua torcida. A estreia foi contra o San Lorenzo e não com o rival agora residindo em Núñez.
Rivais ainda maiores
Na década de 40, a rivalidade esquentou com a força dos dois times no futebol argentino e o nascimento da inesquecível “Máquina” do River, multicampeã e com craques como Pedernera, Moreno, Loustau e Labruna, artilheiro que só não fazia chover nos superclássicos. Ele anotou 16 gols em jogos contra o Boca e foi um dos maiores símbolos da aversão millonaria ao rival. Labruna chegou a dizer que, se fosse técnico do Boca, “faria questão de perder todos os jogos só para rebaixar o rival”. Além disso, Labruna costumava tapar o nariz quando ia jogar em La Bombonera para provocar o rival. Motivo? O apelido de bosteros que o clube ganhou da torcida do River, em alusão ao forte odor quando aconteciam as famosas inundações na região de La Boca.
Outra explicação para o apelido é por causa do odor de uma fábrica de tijolos próxima ao clube, que usava excrementos de animais como matéria-prima. Em 1942, o River deu sua primeira volta olímpica como campeão argentino em plena La Bombonera, após empate em 2 a 2 com o rival, feito que se repetiria em 1955 e na temporada 1985-1986. O Boca só deu uma volta olímpica no Monumental diante do River: em 1969, também após empate em 2 a 2 que sacramentou o título xeneize no Nacional daquele ano.
Após o grande período do River nos anos 40 e equilíbrio entre a dupla nos anos 50 e 60, o clássico ganhou as manchetes do país por causa de uma tragédia. No dia 23 de junho de 1968, após um empate sem gols no Monumental, os torcedores, que sofreram não só por causa do placar insosso, mas também pelo frio, queriam deixar o estádio abarrotado de gente o quanto antes. Mas, quando os torcedores do Boca se dirigiram ao portão 12, que ficava num túnel escuro e hostil abaixo das enormes escadas que compunham a arquibancada dos visitantes, deram de cara com ele fechado.
Com isso, o grande fluxo de pessoas e o empurra-empurra de cima para baixo provocou uma verdadeira avalanche que matou 71 pessoas, por asfixia e pelos golpes das quedas, na chamada “Tragédia de la puerta 12”. Houve ainda mais de 60 feridos. Dizem que a própria polícia (do governo ditatorial de Juan Carlos Onganía) fechou o portão em represália aos torcedores, que jogaram copos com urina e excrementos nos oficiais que estavam nas ruas do lado de fora do estádio. Foi a maior catástrofe da história do futebol argentino. E nunca os culpados foram encontrados nem acusados. Inacreditavelmente, os clubes pouco se importaram com o ocorrido e a fatalidade caiu no esquecimento.
Sucesso xeneixe e troco millonario
Nos anos 70, o Superclásico recomeçou a sua história de alegrias com jogos decisivos. Primeiro, em 1972, um alucinante River 5×4 Boca, no estádio do Vélez, se transformou em um dos jogos mais incríveis da história do duelo e também no com maior número de gols – superando os 5 a 3 do River em 1938. No mesmo ano, o River eliminou o rival do Campeonato Nacional na semifinal com uma vitória por 3 a 2, mas o título ficou com o San Lorenzo. O troco veio em 1976, na primeira final nacional entre a dupla em toda a história do futebol argentino. No Nacional daquele ano, Boca e River decidiram o título no estádio El Cilindro e deu Boca: 1 a 0, gol de Suñé, um título que embalou o clube xeneize rumo às conquistas de suas primeiras Copas Libertadores, em 1977 e 1978. Antes disso, em 1974, uma goleada do Boca de 5 a 2 pra cima do River consagrou Carlos García Cambón, autor de quatro gols – recorde até hoje inigualado no Superclásico.
Mesmo com o Boca vivendo um grande momento a nível continental, o River judiou do rival em solo nacional. Primeiro, em 1977, em um jogo decisivo pelo Campeonato Argentino, a equipe conseguiu virar um jogo para 2 a 1 nos minutos finais com um belo gol de Pedro González e praticamente carimbou seu título em plena Bombonera. No ano seguinte, um clássico no Monumental terminou com vitória do River por 1 a 0 com o gol marcado por Labruna… Mas o filho! E ainda com o pai como técnico! Imagine o quanto doeu no orgulho boquense levar um gol de outro Labruna na história?!
Na década de 80, foi a vez do River reverter os tempos de ouro do Boca e tomar para si o protagonismo no superclássico. Em março de 1980, o time millonario enfiou 5 a 2 no Boca em plena Bombonera. Em setembro de 1981, outra vitória na cancha boquense: 3 a 2, com gols de Kempes, Passarella e García – naquele ano, Maradona estreou pelo Boca em um superclásico disputado em abril e marcou um dos gols da goleada de 3 a 0 dos xeneizes. Mais tarde, em 1986, o River abrilhantou um ano inesquecível ao dar uma volta olímpica antes mesmo do jogo em plena Bombonera para celebrar o título nacional daquele ano, conquistado quase um mês antes do duelo. Para evitar conflitos, eles deram a volta longe das tribunas e arquibancadas com os barrabravas do Boca. A festa foi ainda maior pelo fato de o time vencer o rival por 2 a 0, com dois gols do ídolo Norberto Alonso. Naquele ano, o River ainda venceu sua primeira Libertadores e o Mundial Interclubes com um esquadrão memorável. Para o Boca, restou a amargura de uma seca de títulos nacionais que durou de 1981 até 1992.
Nos anos 90, altos e baixos de ambos marcaram o duelo. Primeiro, o River aplicou um 3 a 0 (gols de Francescoli, Gallardo e Ortega) no rival em plena Bombonera, em 1994, ano do título invicto dos millonarios no campeonato nacional, e faturou outra Libertadores, em 1996. Mesmo com um grande time, o River venceu apenas dois dos 14 jogos entre outubro de 1992 e maio de 1999 em duelos nacionais disputados contra o Boca, que venceu nove – foram três empates. Um deles foi a goleada de 4 a 1 sobre o River com os famosos três gols de Caniggia, no dia 14 de julho de 1996, dias depois do título continental do River. Nesse jogo, Maradona ainda chutou um pênalti na trave, mas foi salvo por Caniggia, que consertou para o companheiro.
Explosão de brigas e a final eterna
No final da década, o Boca iniciou uma leva de duelos históricos com o rival pela Copa Libertadores. Sob o comando de Bianchi, os xeneizes eliminaram o River da competição nas quartas de final de 2000 com uma goleada de 3 a 0 no duelo de volta, no lendário retorno de Palermo após contusão, que entrou no segundo tempo e fez o gol da vitória, calando o técnico Américo Gallego, do River, que disse antes do jogo que se o Boca colocasse Palermo, ele colocaria Enzo Francescoli, já aposentado na época e insinuando que o atacante boquense não tinha condição alguma de entrar em campo. No fim, deu no que deu…
Mas o grande momento do superclásico na Libertadores aconteceu em 2004. Era semifinal. O River tinha a chance de acabar de vez com a hegemonia boquense na competição – eles haviam vencido três títulos entre 2000 e 2003. Primeiro, em La Bombonera, o Boca venceu por 1 a 0. Com torcida única – algo que seria a tona dos clássicos neste século XXI, para evitar confrontos de torcidas – a briga acabou sendo dentro de campo, com discussões, agressões, unhadas (!) e nervos à flor da pele. No duelo da volta, no Monumental, o River venceu por 2 a 1, mas não antes de Tévez, do Boca, marcar seu gol e imitar uma galinha para provocar a massa millonaria, apelido jocoso que o clube ostenta desde 1966 por causa desse jogo aqui. Na disputa de pênaltis, o Boca venceu e se garantiu em mais uma final. Foi um jogo tão histórico, tão emocionante, que ele tem um capítulo aqui no Imortais. Leia clicando aqui!
Na década de 2010, o River amargou o fundo do poço com o rebaixamento para a série B do futebol argentino, fazendo com que os boquenses mudassem o nome do rival para RiBer Plate. Os millonarios deram a volta por cima e, em 2014, eliminaram o histórico rival nas semifinais da Copa Sul-Americana após empate sem gols em La Bombonera e vitória no Monumental por 1 a 0 – o River terminou campeão. Em 2015, outra vez o River despachou o rival, dessa vez nas oitavas de final da Copa Libertadores. E com novos episódios polêmicos. Após vencer a ida por 1 a 0, em casa, o River foi à Bombonera com a vantagem do empate. Após um primeiro tempo sem gols, quando voltavam para a segunda etapa, os jogadores millonarios foram atacados com gás de pimenta caseiro feito pelos torcedores xeneizes, que lançaram a mistura no túnel de acesso ao gramado.
Quatro jogadores do River foram severamente afetados nos olhos e na pele pelo gás. Após mais de uma hora de espera, o árbitro decidiu cancelar o jogo e o Boca foi eliminado por razões óbvias pela Conmebol. O clube ainda levou uma multa de 200 mil dólares e a pena de jogar seus próximos quatro jogos em competições da entidade com portões fechados. Uma punição bem branda pela selvageria causada naquela noite. No fim, quem riu foi o River: ele foi campeão daquela Libertadores, com Gallardo, um dos protagonistas de muitos embates nos anos 90 e 2000 em seus tempos de jogador, como técnico.
Em 2017, os dois times fizeram a segunda final nacional da história do Superclásico: a Supercopa Argentina, que reuniu o campeão do Campeonato Argentino (Boca) e da Copa da Argentina (River). O jogo foi disputado em Mendoza e o River venceu por 2 a 0, dando o troco no revés lá de 1976. Em 2018, o maior capítulo da história do Superclásico foi escrito: a decisão da Copa Libertadores entre ambos. No primeiro jogo, em La Bombonera, empate em 2 a 2. No segundo, que era para ter ocorrido no Monumental, uma série de problemas, com torcedores do River atacando o ônibus do Boca e falta de organização e segurança fizeram com que a partida fosse cancelada e remarcada para outro local, bem longe de Buenos Aires: Madrid, Espanha, no estádio Santiago Bernabéu. E, no atípico local, deu River: 3 a 1, de virada, resultado que coroou o time millonario na maior final de todas, confirmou sua esplendorosa fase diante do rival e um dado curioso: nos 18 embates eliminatórios ou decisivos entre ambos na história, o River venceu 13, contra apenas cinco triunfos do Boca.
O último episódio que marcou o Superclásico foi em 07 de maio de 2023, válido pelo Campeonato Argentino e o primeiro no Monumental de Núñez após a reforma que ampliou sua capacidade para mais de 84 mil pessoas. Em um ambiente mágico, com provocação da torcida millonaria em alusão ao título da Libertadores de 2018, o jogo foi quente até o fim, mas nada de gol. Até que, nos acréscimos do segundo tempo, o River teve um pênalti a seu favor e fez 1 a 0, com Borja. Durante a comemoração, Palavecino provocou os zagueiros boquenses, em especial Nicolás Figal, que antes do duelo disse que “iria buscar um bom resultado no galinheiro”. Foi o estopim para uma confusão generalizada que acabou com seis expulsões (três de cada lado) e ainda o técnico do Boca, Almirón, fatos que paralisaram o jogo por vários minutos. Só depois que o árbitro deu mais dois minutos e a partida, enfim, acabou.
Desde então, o duelo entre os gigantes da Argentina segue intacto em rivalidade, provocações e polêmicas. Com as torcidas únicas tanto no Monumental quanto em La Bombonera, as brigas e duelos extra-campo diminuíram, mas tal ferocidade é vista com mais frequência dentro de campo. Os jogadores, quando vestem aquelas camisas, incorporam uma história centenária, a aura de grandes heróis e toda a mística que envolve os antigos irmãos que simplesmente se odeiam. Mas que, no fundo, lá no fundo, não teriam razão para existir sem o outro.
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