Data: 05 de março de 2019
O que estava em jogo: uma vaga nas quartas de final da Liga dos Campeões da UEFA de 2018-2019.
Local: Estádio Santiago Bernabéu, Madri, Espanha.
Juiz: Felix Brych (ALE)
Público: 77.013 pessoas
Os Times:
Real Madrid Club de Fútbol: Courtois; Carvajal, Varane, Nacho e Reguilón; Casemiro (Valverde, aos 42’ do 2º T), Kroos e Modric; Lucas Vázquez (Bale, aos 29’ do 1º T), Benzema e Vinícius Júnior (Asensio, aos 35’ do 1º T). Técnico: Santiago Solari.
Amsterdamsche Football Club Ajax: Onana; Mazraoui (Veltman, aos 35’ do 2º T), De Ligt, Blind e Tagliafico; Schöne (De Wit, aos 28’ do 2º T), Van de Beek (Magallán, aos 45’ do 2º T) e De Jong; Ziyech, Tadic e David Neres (Dolberg, aos 29’ do 2º T). Técnico: Erik ten Hag.
Placar: Real Madrid 1×4 Ajax (Gols: Ziyech-AJX, aos 7’, e David Neres-AJX, aos 18’ do 1º T; Tadic-AJX, aos 17’, Asensio-RMD, aos 25’, e Schöne-AJX, aos 27’ do 2º T).
“TOTALmente magnífico”
Por Guilherme Diniz
Desde a temporada 2015-2016 que a cena se repetia na maior competição de clubes do mundo. O Real Madrid superava seus adversários nas oitavas, quartas e semifinais, e, na final, derrotava quem aparecia pela frente. Uma. Duas. Três vezes. Acabou com a escrita de um clube não vencer por duas vezes a competição desde o Milan de Arrigo Sacchi, em 1989 e 1990. E consolidou um histórico tricampeonato consecutivo que não era visto desde o Bayern de Beckenbauer, em 1974, 1975 e 1976. Corria 2019 e lá estavam os merengues em um mata-mata da Liga dos Campeões. O adversário da vez era o Ajax e seus jovens. No primeiro jogo, em Amsterdã, vitória dos espanhóis por 2 a 1. Pronto. Mais uma vítima para a coleção. Com a volta em Madri, qual a chance de eles serem eliminados? Nenhuma, pensavam quase todos. Ainda mais pela falta de experiência daquela “molecada” holandesa e também cosmopolita. Só que algo de diferente aconteceu no dia 05 de março de 2019.
Aqueles garotos incorporaram toda uma história e filosofia enraizadas na camisa do AFC Ajax. Toda a mística presente naquele manto tetracampeão europeu e que simbolizou o Futebol Total dos anos 1970 fez-se presente aos mais de 77 mil torcedores no Santiago Bernabéu. Velocidade. Talento. Toques envolventes. Pressão na saída de bola. Autoridade. Golaços. Teve tudo isso. E, minuto a minuto, o Ajax reverteu o placar adverso e o transformou em um inapelável 4 a 1. Deu ao Real Madrid sua maior surra em casa em competições europeias na história. E consolidou uma das maiores apresentações do clube holandês em todos os tempos. Foi totalmente magnífico. Totalmente inesquecível. E, depois de três longas temporadas, o Real Madrid foi totalmente eliminado. É hora de relembrar.
Pré-jogo
Após o tricampeonato, o Real Madrid começou a se enfraquecer já no final da temporada 2017-2018 ao perder o técnico Zinédine Zidane e o astro Cristiano Ronaldo, que acertou sua ida à Juventus-ITA. Sem a dupla, o clube merengue não repetiu as boas atuações de antes e foi vice-campeão da Supercopa da UEFA, além de não emendar uma boa sequência no Campeonato Espanhol. Mesmo com um novo título Mundial, o futebol praticado pelos madrilenos era burocrático, grandes nomes como Kroos e Modric não repetiam as atuações de antes e a ausência de CR7 no ataque criava uma lacuna considerável no time.
No entanto, o clube espanhol avançou sem complicações em primeiro lugar no Grupo G da Liga dos Campeões com quatro vitórias e duas derrotas em seis jogos, ficando à frente de Roma-ITA, Viktoria Plzen-RCH e CSKA-RUS. Após o sorteio dos duelos nas oitavas de final, o rival definido para os merengues foi o Ajax, que se classificou invicto, com três vitórias e três empates, deixando Benfica-POR e AEK-GRE para trás e brigando de igual para igual com o Bayern-ALE, primeiro colocado do Grupo E – nos duelos entre ambos, empates tanto na Alemanha (1 a 1) quanto em Amsterdã (3 a 3).
Embora tivesse uma camisa pesadíssima, o clube holandês não era favorito. Longe disso. A aura construída pelo Real nos últimos anos dava a ele um status gigantesco. Mesmo sem os nomes e o futebol de antes, a camisa merengue em competições europeias parecia jogar sozinha. Prova disso eram os mais diversos percalços que eles superaram na própria campanha do tricampeonato, incluindo uma ajudinha providencial do goleiro rival na decisão de 2018 (sem contar o golpe baixo de Sergio Ramos em Salah…). Enfim, era o tridecacampeão (!) contra o tetracampeão. Absurdos 13 títulos contra 4. E tal condição ficou clara no duelo de ida, em Amsterdã. Mesmo sem ser brilhante e levando muito sufoco, o Real Madrid venceu por 2 a 1 e viajou para a Espanha com a vantagem do empate. O capitão Sergio Ramos, extremamente confiante na classificação, até forçou o terceiro cartão amarelo para ficar de fora do jogo de volta e entrar na fase seguinte “zerado”. Mas será que os madrilenos poderiam esbanjar tanta soberba assim?
Primeiro tempo – Intensidade holandesa
O técnico Erik ten Hag colocou o que tinha de melhor em campo. Armou sua equipe num clássico 4-3-3, com o tridente Ziyech, Tadic e David Neres na frente. Seu time precisava atacar e atacar. Mas, quando a bola rolou, quem conseguiu a primeira grande chance de gol foi o Real, que mandou uma bola no travessão, aos 3’, após Varane receber um cruzamento de Lucas Vázquez. Só que a resposta holandesa veio rápida. Ziyech roubou a bola de Kroos na direita e tocou para Tadic. O sérvio esperou a aproximação do mesmo Ziyech e tocou para o marroquino fazer 1 a 0. Gol da esperteza. Do sufocamento. Da precisão.
Aos 12’, David Neres tomou a bola de Carvajal no campo de defesa, deu uma quase letra em bela jogada na linha de fundo e quase conseguiu cruzar, em lance que deixou os madrilenos perplexos. O time da casa tentou responder com Vinícius Júnior e Kroos, mas sem perigo. Sem qualquer precisão, o Real Madrid tinha dificuldades para sair de seu campo de defesa. E, aos 18’, o Ajax deu o segundo golpe com toques de magia. Tadic recebeu no meio, pouco depois do meio de campo, e deu um giro que desgovernou o volante Casemiro. Tal giro fez o sérvio escapar de três marcadores. Nas arquibancadas, o torcedor merengue recordou Zidane. Suspirou com a lembrança de um lance tão característico do francês. Mas logo em seguida veio o arrepio na espinha. Pois o lance era do Ajax. De Tadic, que avançou e tocou para David Neres. Como uma flecha, o brasileiro invadiu a área, escapou de Modric, de Courtois, e marcou. Que golaço! Que show! 2 a 0.
O resultado dava a classificação ao Ajax. O Real Madrid precisava de um gol para levar o jogo para a prorrogação. Só que era mais fácil o time holandês fazer outro. Minutos depois, David Neres recebeu de novo na esquerda, ganhou na corrida e quase fez o terceiro após chutar por cima de Courtois, mas a bola caprichosamente foi para fora. Aos 23’, Vázquez tentou o contragolpe, mas Onana espalmou. Tadic, aos 24’, chutou forte e Courtois defendeu. O Ajax sobrava no Santiago Bernabéu. Com sérias falhas na marcação e muitos espaços, o Real se perdia nas próprias pernas e erros. Para piorar, os jogadores demonstravam um inédito nervosismo, algo que não se via no clube merengue nas últimas três temporadas. Eles experimentavam naquela noite um sabor diferente. A proximidade da eliminação. Enfrentavam um rival feroz, rápido, que parecia não ter limites.
Nos minutos seguintes, a bruxa se soltou de vez do lado madrileno. Vázquez, com dores, teve que sair para a entrada de Bale. E Vinícius Júnior, após uma tentativa pela esquerda, também se lesionou e saiu para a entrada de Asensio. Nesse meio tempo, David Neres ainda ganhou uma bola de Bale e tocou para Ziyech, que chutou de fora da área e exigiu outra grande defesa de Courtois, aos 33’. Só aos 41’ que o Real chegou de maneira mais incisiva com Bale, pela esquerda, mas o chute do galês bateu na trave de Onana. A sorte estava, de fato, com os alvirrubros. Ao apito do árbitro, o Real foi para o vestiário atordoado. O placar não refletia um jogo em que o Ajax poderia ter feito mais uns dois, três gols.
Segundo tempo – Espetáculo total
Precisando de pelo menos um gol, o Real Madrid foi pra cima desde o início da segunda etapa. Primeiro, Asensio aproveitou sobra de bola perto da área e chutou cruzado. Depois, Benzema fez boa jogada, girou e bateu com perigo. Mais participativo, Modric tentava organizar as jogadas de ataque e aparecia bem mais do que o companheiro de meio de campo Kroos, em péssima fase. Só que a falta de pontaria prejudicava bastante o Real. Do outro lado, o Ajax não deixava de atacar e continuava pressionando a saída de bola madrilena até David Neres tomar a bola de Nacho e tocar para Tadic. O sérvio tocou para Van de Beek, que chutou cruzado para a boa defesa de Courtois. Minutos depois, Benzema fez linda jogada pela esquerda, deixou Ziyech no chão e chutou colocado. A bola passou por todo o gol do goleiro Onana e quase entrou!
Após várias chances e nenhum gol, o Real foi punido. Aos 17’, Mazraoui brigou pela bola na lateral com Reguilón, evitou a saída e acionou um ataque para o Ajax. Van de Beek recebeu e tocou para Tadic. O maestro, na entrada da área, dominou, ajeitou e bateu colocado de perna esquerda, marcando um golaço no Bernabéu: 3 a 0. O árbitro ainda checou o lance com o VAR para ver se a bola de Mazraoui tinha saído ou não, mas prevaleceu o gol (foi um lance bem polêmico e em determinado ângulo dá a impressão de que a redonda saiu).
O Ajax vencia por 4 a 2 no agregado. Ao Real, restava buscar o empate. Três gols. Os madrilenos foram para o tudo ou nada. Oito minutos depois, Asensio recebeu na área e chutou no cantinho de Onana para diminuir: 3 a 1. Com pouco mais de 20 minutos de jogo, os merengues voltaram a acreditar na remontada. No dito de que “90 minutos no Bernabéu são muito longos”, que ficou tão em voga na época do lendário time dos anos 1980, conhecido como “La Quinta del Buitre”. Só que o Ajax respondeu exatamente dois minutos depois.
Com uma falta a seu favor pela lateral, o time holandês podia aproveitar a altura do zagueiro De Ligt em uma jogada ensaiada pelo alto. Ou arriscar direto. Schöne olhou para a área e decidiu mandar uma bola colocada. Ele chutou e a redonda foi parar no ângulo do goleiro Courtois. Outro golaço! Dos quatro anotados pelo Ajax, três foram verdadeiras obras-primas. Goleada alvirrubra no Bernabéu. Estava consolidada a maior goleada sofrida pelo Real em sua casa na história da UCL.
Logo após o gol, Schöne deixou o gramado para a entrada de De Wit. Foi como “vixe, deixa eu sair porque depois dessa…”. Foi um gol para ver e rever incontáveis vezes. Um golaço digno da maior competição de clubes do mundo e da grandeza de um clube que renascia, que provava a heresia dos que duvidaram de sua capacidade. Como desdenhar de um clube como aquele? Como fazer pouco caso de uma escola que ensinou a arte do Futebol Total, da função, do futebol rápido, da ofensividade? De um dos times mais prolíficos do planeta na história do futebol? Ali estava a prova. O Ajax destronava o então rei da Europa. Com autoridade. Em pleno Santiago Bernabéu. E com goleada, que poderia ser ainda maior após Tadic (de novo…) tocar para Ziyech e este perder um gol feito dentro da área.
Gritos de “olé” eram ouvidos no Bernabéu. O Real nada fez. Benzema ainda escorregou quando tentou chutar após receber de Modric, em bobeada de De Jong perto da área. Nos acréscimos, Nacho foi expulso por reclamação. A noite era mesmo do Ajax. Totalmente dele. E o Real estava totalmente eliminado. Fim da dinastia. Fim do sonho do tetracampeonato seguido, proeza restrita apenas ao esquadrão madrileno de Di Stéfano e Gento nos anos 1950. E classificação assegurada para os holandeses de Amsterdã, que proporcionaram um jogo histórico na histórica Liga dos Campeões da UEFA de 2018-2019, uma das mais fascinantes das últimas décadas, que reservava mais jogos incríveis na sequência do torneio (como você pode ler nos links ao final deste texto!).
Foi a vitória de um time ávido. Destemido. Que fazia questão de exibir suas virtudes longe de casa. Sua missão era levar o nome e a força do AFC Ajax às cidades europeias. Não era preciso exibir tudo aquilo em Amsterdã, seu berço, seu império. Era preciso resgatar uma história não contada desde 1995, ano do último título europeu daquele clube. E, pelo menos naquela noite, eles conseguiram isso. Para o orgulho de Cruyff. Michels. Kovács. E todos os que contribuíram para essa lenda lá dos anos 1970 ganhar o mundo e retornar por uma noite para o deleite dos que sentiam tanta falta dela. E para apresentar aos jovens que o futebol pode ser bonito demais.
Pós-jogo: o que aconteceu depois?
Real Madrid: o maior revés em casa na história da Liga dos Campeões provou de uma vez por todas que aquele Real não era mais o mesmo. Se muitos ainda achavam que o time conseguiria manter a hegemonia mesmo sem Zidane, CR7 e craques em má fase, conheceram a verdade nua e crua. Com o término de uma temporada decepcionante e medíocre, elenco rachado e resultados péssimos, a diretoria trouxe de volta Zidane para o comando técnico, além de abrir os cofres e contratar vários jogadores para retomar o caminho das glórias. O difícil é saber quando a equipe vai voltar ao topo da Europa…
Ajax: na fase seguinte, os holandeses enfrentaram a Juventus de Cristiano Ronaldo e, no primeiro jogo, em casa, apenas empataram em 1 a 1. Outra vez tinham que reverter o placar jogando fora de casa. E outra vez os jovens fizeram questão de mostrar a força do Ajax para quem desconhecia. Em Turim, CR7 abriu o placar para a Juve, mas o Ajax empatou com Van de Beek ainda no primeiro tempo. Na segunda etapa, De Ligt virou e classificou os alvirrubros para a semifinal. No último desafio antes da decisão, os holandeses enfrentaram o Tottenham, com o primeiro jogo em Londres. E, de novo, o Ajax venceu fora de casa: 1 a 0, gol de Van de Beek. Na volta, os alvirrubros abriram 2 a 0 em casa. Mas, no segundo tempo, foram penalizados pelo excesso de gols perdidos e pela noite iluminada de Lucas Moura. O brasileiro fez três gols e eliminou os holandeses. Mesmo com o doloroso revés, o Ajax encontrou forças para levantar o título do Campeonato Holandês e da Copa da Holanda, coroando uma temporada de renascimento de um gigante do futebol mundial.
Leia mais sobre o duelo entre Tottenham e Ajax clicando aqui.
Aquela UCL teve outro jogão também: a virada histórica do Liverpool sobre o Barcelona em Anfield. Leia mais clicando aqui.
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O Próximo poderia ser Manchester City 4-3 Tottenham, outro jogaço ein, parabéns pelo excelente trabalho