Por Leandro Stein
A maior tragédia vivida pela tradicional Juventus Football Club é uma ferida que, passados mais de trinta anos, permanece aberta. Mais do que isso: foi a maior tragédia em jogos de competições europeias, justamente em uma final de Liga dos Campeões da UEFA. O que deveria ser uma noite de coroação em Bruxelas, acabou como trauma. Feriu o orgulho da Juve e do Liverpool, além de marcar a escalada do hooliganismo.
Antes de chegar a Heysel, é preciso entender que o ano de 1985 vinha sendo extremamente crítico no futebol inglês. Os meses anteriores tinham sido marcados por dezenas de mortos e presos nos estádios do país. O primeiro incidente aconteceu em março, com a briga generalizada entre Luton e Millwall, que acabou com 81 feridos. A escalada se manteve e, em maio, um incêndio consumiu as arquibancadas do Estádio Valley Parade, acabando com 56 mortos. Para, no final do mês, a final da Liga dos Campeões da UEFA terminar de manchar o futebol de inglês. Campeão em 1984, o Liverpool já havia protagonizado cenas lamentáveis um ano antes, na final contra a Roma, quando houve dezenas de feridos. Mesmo assim, a prevenção foi nula.
O erro da UEFA começa na escolha do próprio palco da final, algo contestado desde o início por representantes dos dois clubes. O Estádio de Heysel, apesar de seu tamanho, não tinha condições para receber aquele jogo. A estrutura estava muitíssimo degradada, com paredes a ponto de ruir. Tanto que, antes do duelo, alguns torcedores abriam buracos no concreto para tentar entrar, resultando também em superlotação. Um estádio prestes a desmoronar ao menor rompimento de fúria. E a despreparada proteção de segurança culminou na tragédia.
As duas torcidas se dividiram em setores atrás dos gols, separadas por um amplo trecho neutro no meio do estádio. No entanto, havia uma parte ao lado da torcida do Liverpool destinada aos espectadores neutros da Bélgica. Parte que acabou ocupada por muitos juventinos da ampla comunidade italiana no país. A confusão começou cerca de uma hora antes do jogo, com objetos e pedras lançados entre ambas as partes. A aproximação dos ingleses do frágil alambrado que separava as torcidas, protegido por apenas cinco policiais, foi o estopim para o desastre. Muitos bianconeri eram espremidos contra um muro, enquanto outros tentavam escalá-lo. A estrutura não suportou, desabando sobre as pessoas. Fatal para 39 delas, a maioria italianas, enquanto a estimativa de feridos chega a 600.
Enquanto o atendimento se espalhava pelo próprio gramado, com corpos cobertos por bandeiras, a torcida da Juve se revoltava do outro lado e começou a pular o alambrado. Houve tempo ainda para uma batalha campal entre os italianos e os policiais que tentavam evitar que eles chegassem até os ingleses. Mas nem isso e nem as mortes atrapalharam o começo do jogo. Em outra decisão muitíssimo contestável da UEFA, o apito inicial aconteceu quando o pau ainda comia nas arquibancadas, e os jogadores não tinham real dimensão do que havia acontecido nos minutos anteriores. A Juventus venceu seu primeiro título da Champions por 1 a 0, gol de Platini. Só não tinha muitos motivos para comemorar.
“Foi um desastre total, tanto que o chefe da polícia no comando daquela noite foi para a cadeia. A polícia estava sem pilha no radinho para se comunicar. Sem as ações da torcida do Liverpool, nada teria acontecido, mas houve outros fatores nas mortes daquelas pessoas. Ninguém quer aceitar responsabilidade. Fica mais fácil focar no hooliganismo. Eram brigas teatrais, o teatro era ganhar espaço, ninguém queria matar o adversário”, analisou o jornalista Tim Vickery, em entrevista à Trivela.
Em um longo processo que percorreu quatro anos, 25 torcedores acabaram presos. O desastre serviu para o recrudescimento da política do governo de Margareth Thatcher com as torcidas inglesas. O Liverpool não se eximia da culpa do ocorrido, embora a negligência geral das autoridades tenha sido evidente. Enquanto isso, diante da teoria de que movimentos de esquerda teriam conspirado o ocorrido, a primeira ministra aumentou o controle sobre os estádios. E os clubes da Inglaterra, suspensos por cinco anos das competições europeias, viram a ilha se tornar uma panela de pressão. Que explodiu quatro anos depois, em Hillsborough.
Até os dias de hoje, Heysel permanece vivo na memória. Para os torcedores do Liverpool, uma vergonha. “A maioria concordou com a suspensão, foi arbitrário, mas nós sentimos a culpa. Não fingimos que não era nossa culpa. Os torcedores foram responsáveis”, afirmou à Trivela o músico Daniel Hunt, fanático do Liverpool. Tanto que as faixas pedindo desculpas a Juve costumam ser comuns em Anfield, apesar de ignoradas pelos italianos. Enquanto isso, os bianconeri convivem com o luto de uma final negra.
Abaixo, reunimos parte dos depoimentos de seis jogadores presentes naquela final, dadas a excelente reportagem do jornal The Guardian. Para conferir as declarações completas, que também incluem as visões de torcedores, jornalistas e policiais presentes em Heysel, clique aqui.
Paolo Rossi, atacante da Juventus: “O quão difícil foi jogar aquele jogo? Bem, nós não sabíamos as verdadeiras dimensões daquele desastre. Algumas pessoas diziam que havia ocorrido apenas uma morte. Foi somente depois do jogo que soubemos da terrível verdade. Nós fomos forçados a jogar. Nós não tínhamos escolha. Mas, repito, não sabíamos da verdade. Se nós soubéssemos, talvez pudéssemos mudar os fatos. Quando o jogo terminou e vencemos, permanecemos em campo para levantar a taça, e isso poderia ser evitado. Na verdade, houve um caos durante a comemoração”.
Phil Neal, capitão do Liverpool: “Eu prefiro esquecer aquela noite. Foi um calvário. Quando as pessoas me perguntam meu ponto de vista, geralmente precisam pagar para isso. Você está pedindo minha ajuda para nada. Para pagar sua hipoteca. Quero dizer, o que você quer de mim?”.
Zbigniew Boniek, atacante da Juventus: “Se as pessoas vão assistir a uma final de Champions, é absolutamente abominável que eles nunca retornem para casa porque foram mortos. Não sabíamos o que tinha acontecido e as autoridades mandaram a gente jogar. Eles queriam prevenir uma guerra entre as torcidas. Mas tudo foi terrível. E estúpido. Vi corpos sendo levados do estádio. É horrível ter que jogar futebol enquanto as pessoas morrem a sua volta”.
Bruce Grobbelaar, goleiro do Liverpool: “Os jogadores souberam sobre todos os eventos depois, naquela noite, incluindo quantas pessoas morreram. Nunca deveríamos ter jogado. A UEFA insistiu, porque eles acreditavam que a violência poderia continuar nas ruas. Mas eu disse que não queria jogar”.
Marco Tardelli, meio-campista da Juventus: “Eu não tenho orgulho da vitória naquela final da Champions. Foi uma péssima noite, um jogo para esquecer, embora não seja fácil deixar de me lembrar do que aconteceu. Somente pela televisão soube o que realmente houve e fiquei chocado. Depois da final, Grobbelaar veio pedir desculpas pelos hooligans. Mas, de verdade, não foi culpa de Liverpool ou Juventus”.
Alan Kennedy, defensor do Liverpool: “Estou certo de que o ocorrido, de alguma forma, tem relação com os confrontos com a Roma em 1984. Nossos torcedores foram atingidos por pedras e outros objetos. Quando chegamos a Heysel, soubemos do policiamento insuficiente. Eu senti que a separação parca poderia ser um problema. O Liverpool tinha mais experiência em copas europeias que qualquer outro time. O clube expressou sua preocupação sobre o policiamento, a segurança e o estádio. Você precisa se questionar por que a UEFA e as autoridades belgas não os ouviram. Por que escolheram um estádio em degradação. Muitas pessoas não aceitaram a responsabilidade sobre o que aconteceu. Liverpool e Juventus foram forçados a jogar uma final com 50 mil no estádio. As autoridades não consideraram as pessoas que morreram. Isso também foi uma tragédia”.
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A UEFA e as autoridades belgas (políticas e esportivas) foram as maiores culpadas !
A Torcida inglesa teve sua culpa também, claro.
Outro fato vergonhoso foi a celebração da Juventus depois do apito… apesar da tragédia….
a Juve tem sua culpa também.