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Seleções Imortais – Marrocos 2022

Em pé: Dari, Bono, Mazraoui, El Yamiq, En-Nesyri e Saïss. Agachados: Ziyech, Hakimi, Boufal, Ounahi e Amrabat.

 

Grandes feitos: 4ª Colocada na Copa do Mundo da FIFA de 2022. Conquistou a melhor posição de um país africano na história das Copas.

Time-base: Bono; Hakimi, Aguerd (Jawad El Yamiq), Saïss (Dari) e Mazraoui (Allah); Amrabat, Ounahi (Benoun) e Amallah (Walid Cheddira); Ziyech, En-Nesyri (Sabiri / Aboukhlal) e Boufal. Técnico: Walid Regragui.

 

“Os lendários Leões do Atlas”

 

Por Guilherme Diniz

 

Durante o século XX, uma espécie imponente de leão habitou o norte da África, em especial as regiões de Marrocos e Egito. Ele era conhecido como leão-do-atlas, ou leão-da-barbária, e acabou extinto da natureza. Porém, algumas subespécies foram encontradas em cativeiros tempo depois, mas sem a linhagem pura do pioneiro. Isso até chegar o ano de 2022 e um grupo de homens trazer de volta a aura da imponência e ferocidade do felino aos campos do Catar. Durante pouco mais de um mês, a seleção do Marrocos fez jus ao apelido de Leões do Atlas ao realizar a melhor e mais surpreendente campanha de um país africano na história dos Mundiais. Nem Camarões de Roger Milla. Nem a Nigéria de Okocha. Nem Senegal de Diouf. Nem Gana de Essien. Nem Costa do Marfim de Drogba. Nenhum país foi tão longe e fez tão bonito no maior torneio do futebol como Marrocos de Bono, Hakimi, Saïss, Ounahi, Amrabat, Ziyech e companhia.

Eles terminaram em primeiro lugar um grupo com a vice-campeã mundial Croácia e a tão falada Bélgica. Nas oitavas, eliminaram nos pênaltis a favorita Espanha. Nas quartas, venceram o badalado Portugal, que havia aplicado 6 a 1 na Suíça. E, na semifinal, conseguiram dar sufoco à então campeã mundial França. Foi uma campanha que destroçou qualquer prognóstico e trouxe um sopro de novidade à Copa, sempre acostumada com hegemonias europeias e sul-americanas. Uma campanha que uniu o povo árabe, que abraçou a seleção marroquina e deu a ela a maior torcida durante a Copa, com barulho, cantoria e muita pressão diante dos adversários. Além disso, as celebrações tanto no Catar quanto no Marrocos transformaram aquela saga em uma das maiores histórias dos Mundiais. E pensar que antes da Copa eles estavam cheios de problemas e ceticismo… É hora de relembrar a trajetória da maior seleção africana das Copas do Mundo.

 

Os percalços

Depois de ficar na lanterna de seu grupo na Copa do Mundo de 2018 com apenas um ponto, Marrocos trilhou um caminho turbulento até o Mundial de 2022. Embora existisse a expectativa de uma evolução diante dos bons nomes que figuravam na seleção e em clubes de peso do futebol europeu, a equipe foi eliminada nas oitavas de final da Copa Africana de Nações de 2019 para Benin, e o técnico Hervé Renard deu lugar a Vahid Halilhodzic, treinador da Argélia no Mundial de 2014. Mesmo com a pandemia pelo caminho, Halilhodzic conduziu Marrocos à mais uma Copa Africana de Nações em 2022 e não teve problemas para garantir a vaga ao Mundial do Catar após vencer os seis jogos do Grupo I das Eliminatórias – foram 20 gols marcados e apenas um sofrido diante de Guiné, Guiné-Bissau e Sudão -, e vencer a RD do Congo por 5 a 2 no agregado da fase final.

Mas, no início de 2022, Hakim Ziyech, Noussair Mazraoui e Amine Harit não foram convocados pelo técnico Halilhodzic à Copa Africana de Nações e o comandante escancarou o clima ruim do selecionado marroquino, alegando indisciplina dos astros renegados. No torneio continental, Marrocos chegou até as quartas de final, mas acabou eliminado pelo Egito na prorrogação. O desempenho fez surgir especulações sobre a saída do técnico e causou até o anúncio da “aposentadoria” de Ziyech do selecionado. Até que, em agosto, Halilhodzic foi demitido mesmo com 74% dos pontos e apenas três derrotas em 30 partidas. A federação marroquina não podia desperdiçar aquela geração de bons jogadores com um técnico controverso.

Hakimi, uma das estrelas do time. Foto: KENZO TRIBOUILLARD/AFP via Getty Images.

 

Não demorou muito para um novo nome surgir: Walid Regragui, ex-jogador de Marrocos e que treinava o Wydad Casablanca, campeão da Liga dos Campeões da CAF de 2021-2022 diante do bicho-papão Al Ahly na decisão, vencida por 2 a 0 pelos marroquinos. Por conhecer bem o futebol do país, Regragui fez questão de melhorar o ambiente e reintegrou Ziyech, Harit e Mazraoui para os compromissos da Data Fifa de setembro. A vitória sobre o Chile e o empate contra o Paraguai foram satisfatórios para que o técnico percebesse as virtudes do time e os pontos a melhorar. Armando o time no 4-3-3 ou 4-1-4-1, Regragui tinha no meio de campo a força-motriz da seleção, que marcava muito, roubava bolas e conseguia chegar ao ataque com muita velocidade e poucos toques, de maneira objetiva e direta. Isso, em um torneio como a Copa do Mundo, seria ótimo para surpreender os rivais.

O técnico Walid Regragui. Foto: AFP / Getty Images.

 

Além do meio de campo, as laterais eram outro ponto forte com Mazraoui e Hakimi, dupla que ganhou destaque na Europa por Ajax e PSG, respectivamente. Embora ambos fossem laterais-direitos, Regragui conseguiu inverter a posição de Mazraoui para agregar os dois no time – um grande acerto e que deu mais mobilidade tática à equipe. Na convocação, Regragui não surpreendeu e levou o que tinha de melhor, além de expor a diversidade cultural dos jogadores marroquinos – metade nasceu no país, metade no exterior, um recorde entre os 32 países da Copa do Catar. França, Espanha, Bélgica, Holanda e Canadá são os principais destinos de tais atletas, principalmente pelas questões culturais, geográficas, linguísticas (como o Canadá) e da época da colonização. 

 

É possível ir além?

Torcida marroquina recebeu a delegação com muita festa na chegada ao Catar. Foto: GIUSEPPE CACACE / AFP via Getty Images.

 

Após o sorteio dos grupos da Copa, Marrocos viu com bons olhos a chave da equipe. Mesmo ao lado da vice-campeã Croácia, da Bélgica e do Canadá, os africanos confiavam em uma vaga pelo fato de o time croata não vir bem há algum tempo, dos belgas não mostrarem o vigor de 2018 e do Canadá ser um concorrente sem expressão. Com seu padrão de jogo já definido, o time africano viajou confiante e com o reforço da torcida, que foi em peso ao Catar para apoiar a seleção. Por ser um país que representa também o mundo árabe, Marrocos teria ainda a simpatia da torcida local. E, jogo a jogo, um mar vermelho iria dominar as arquibancadas do Catar.

 

O início da lenda

Amrabat e Modric, titãs do meio de campo por seus países na Copa.

 

 

Marrocos estreou no dia 23 de novembro diante da Croácia, no belíssimo estádio Al Bayt, tomado por mais de 59 mil pessoas. Com a escalação ideal proposta pelo técnico Regragui, o time africano encarou um adversário que também tinha um meio de campo poderoso – Brozovic, Modric e Kovacic – e isso acabou refletindo no placar final: 0 a 0. Na partida seguinte, o rival foi a Bélgica, que vinha de vitória por 1 a 0 sobre o Canadá e precisava de uma vitória para se classificar. Antes do jogo, o time marroquino ainda sofreu uma inesperada baixa com o goleiro Bono, que nem sequer começou jogando, por causa de um mal estar – Munir Mohamedi jogou no lugar do titular. No primeiro tempo, os belgas tomaram a iniciativa, mas pararam na boa marcação africana. Mas os leões não se intimidaram e levaram perigo pela direita, sempre com Ziyech e Hakimi orquestrando as ações ofensivas com muita velocidade. Ziyech ainda marcou um gol, mas este foi anulado pelo VAR.

No segundo tempo, Regragui subiu a marcação e empurrou a Bélgica para seu próprio campo, deixando os Red Devils mais nervosos e sem ação. E, com isso, aumentaram as faltas cometidas. Em uma delas, aos 73’, Sabiri levantou na área e o capitão Saïss marcou o primeiro gol marroquino na Copa. Com poucos minutos para reverter o placar, a Bélgica teve que se lançar ao ataque, mas levou o segundo gol nos acréscimos, de Aboukhlal, que só escorou um cruzamento na medida de Ziyech. Vitória marroquina contra o grande favorito do grupo! E muita confusão nas ruas de Bruxelas no pós-jogo, com confrontos entre marroquinos e belgas pela capital.

Com quatro pontos, Marrocos estava muito próximo da classificação para as oitavas de final pela primeira vez desde a Copa de 1986, quando foi o primeiro país africano a superar a fase de grupos de uma Copa, mas caiu diante da futura vice-campeã Alemanha. E, contra o Canadá, Marrocos se impôs desde o início para abrir o placar aos 4’, com o ponta Ziyech, que aproveitou uma bobeira do goleiro canadense. Aos 23’, Hakimi fez um lançamento longo para En-Nesyri, que dominou e chutou forte para ampliar: 2 a 0. Aos 40’, o Canadá diminuiu em gol contra de Aguerd, que desviou contra a própria meta um cruzamento de Adekugbe, mas os africanos mantiveram a segurança no campo de defesa e carimbaram a vaga para as oitavas de final em um impressionante primeiro lugar, com a Croácia em segundo e a Bélgica eliminada! Contagiados, os jogadores fizeram a festa com a imensa torcida e salientaram que não iriam a passeio para a fase final.

Após o término da fase de grupos, o adversário dos marroquinos seria a Espanha, segunda colocada do surpreendente Grupo E, que teve o Japão líder e a Alemanha eliminada, além da Costa Rica como lanterna. O lateral-direito Hakimi, em coletiva durante a Copa, destacou a força do time marroquino àquela altura e o desempenho de sua seleção. 

 

“É incrível ver como as pessoas estão vivendo isso conosco, e aquela energia transmite muito para nós e nos dá força para continuar e procurar fazer grandes coisas. […] Terminamos em primeiro lugar no grupo e acho que merecemos um pouco de respeito. Acho que a Espanha sabe disso e deve ter um pouco de medo de nós. Por que não podemos surpreender de novo?”.

 

O duelo contra a Espanha era muito aguardado pelo fato de os dois países terem um histórico de rivalidade política e social. Geograficamente próximos, Marrocos e Espanha têm laços migratórios muito fortes, com quase 900 mil marroquinos vivendo em território espanhol, número que explodiu na virada do século XXI por conta da desigualdade social e a busca por oportunidades de trabalho e melhores condições de vida dos africanos em solo ibérico.

Isso, porém, criou a antipatia dos espanhóis para com os marroquinos, tidos como os mais “odiados” pelos espanhóis quando comparados a outros imigrantes. Isso se deve muito às relações religiosas e culturais dos marroquinos em comparação com os europeus, que se mostraram muito intolerantes com tantos imigrantes. Para piorar, em 2017, os atentados terroristas ocorridos em Barcelona e Cambrils tiveram como grupo responsável homens de origem marroquina. Com todo esse cenário, o confronto entre espanhóis e marroquinos era um dos mais tensos daquela fase de oitavas de final.

 

Fazendo história – parte 1

Amplamente favorita, a Espanha era dona da maior goleada aplicada na Copa do Catar – 7 a 0 sobre a Costa Rica – e vinha de um empate contra a Alemanha (1 a 1) e derrota por 2 a 1 para o Japão na última rodada de seu grupo. O revés em nada abalou o técnico Luis Enrique, que desde o início do Mundial deixava claro que sua equipe era favorita ao título pelos jovens talentos que tinha – sobretudo Pedri e Gavi – e alguns veteranos, como Jordi Alba e Sergio Busquets. Porém, quando a bola rolou, a Espanha mostrou um futebol insosso e sem qualquer objetivo, enquanto Marrocos foi soberano na marcação e levou perigo com seus ataques rápidos e o elo entre defesa e ataque muito bem feito por Hakimi, Mazraoui e Ziyech.

No meio, Amrabat e Ounahi jogavam absurdamente bem e eram os grandes senhores do setor de Marrocos, roubando bolas, dando passes e demonstrando uma aplicação tática digna das maiores estrelas do futebol mundial. Embora a Espanha tenha tido 68% de posse de bola, 1041 passes e 13 finalizações, apenas uma delas foi ao gol. Já Marrocos teve seis finalizações, com três ao gol. O tão falado meio de campo espanhol nada fez e foi engolido pelo marroquino, em especial Amrabat, que parecia se multiplicar em campo tamanha vitalidade e consciência tática.

Ounahi: gigantesco por Marrocos na Copa.

 

O jogo acabou 0 a 0 tanto no tempo regulamentar quanto na prorrogação. E, na decisão por pênaltis, brilhou a estrela do goleiro Bono, que defendeu dois pênaltis – Soler e Busquets, Sarabia mandou na trave -, enquanto Marrocos converteu três chutes, perdeu apenas um e o placar de 3 a 0 classificou os Leões do Atlas às quartas de final. Na cobrança final, Hakimi fez de cavadinha e foi a prova maior da ironia, pois o lateral nasceu na Espanha, em Madri, chegou inclusive a jogar nas categorias de base do Real Madrid e no time principal, mas preferiu defender a seleção de seus pais, oriundos do Marrocos.

O goleiro Bono fez história ao defender dois pênaltis!

 

Hakimi (camisa 2) autor do gol da classificação. Foto: JAVIER SORIANO/AFP via Getty Images.

 

A comemoração foi gigantesca no estádio e também no Marrocos, onde a torcida varou a noite celebrando a vaga histórica do país nas quartas de final, que repetiu os feitos de Camarões-1990, Senegal-2002 e Gana-2010, únicas seleções africanas a atingir aquele estágio de Copa. Muito satisfeito, o técnico Regragui enalteceu o feito de seus jogadores na coletiva de imprensa – reproduzida no site Trivela, parceiro do Imortais.

 

“É extraordinário o que os jogadores conseguiram com tanta energia, com a vontade de não perder esse jogo, de suportar aquele que talvez seja o melhor time do mundo em termos de posse de bola. Eles nos feririam se déssemos espaços para correr. Sabíamos que não poderíamos buscá-los lá no campo de ataque. Fomos pacientes e, com um dos melhores goleiros do mundo, conseguimos nos classificar nos pênaltis. Jogamos com atletas lesionados, com bandagens, mas que elevaram seu nível de jogo. Estou orgulhoso deles. Se me perguntassem antes da Copa que pegaríamos Bélgica, Croácia, Canadá e Espanha concedendo só um gol… Temos um grupo incrível!”

 

O técnico ainda comentou sobre a concepção de um grupo com atletas oriundos de vários países. “Sempre batalhei no Marrocos para dizer que todo marroquino com a nacionalidade é marroquino se ele quiser lutar e morrer por essa camisa, seja ele da França, da Bélgica, de Marrocos ou de qualquer lugar. Um exemplo: eu nasci na França, mas ninguém tem coração mais marroquino que eu. Quando você vem para a seleção, tem que dar 100%. Tenho jogadores nascidos na Alemanha, na França, na Bélgica, na Holanda, na Espanha, no Canadá e fiz uma boa mistura com isso”, disse.

 

O feito inédito

En-Nesyri, gigante pelos ares, marca o gol da classificação diante de Portugal. Foto: REUTERS/Molly Darlington.

 

Classificado, Marrocos teve pela frente outro gigante na etapa de quartas de final: Portugal, que vinha de uma assombrosa goleada de 6 a 1 sobre a Suíça, na qual o jovem Gonçalo Ramos marcou três gols e deixou Cristiano Ronaldo no banco. Os lusos eram favoritos, ainda mais pelos problemas que o técnico Regragui teria: Mazraoui e Aguerd, justamente dois pilares do sistema defensivo marroquino, não poderiam entrar em campo por causa de problemas físicos. Com isso, Allah e El Yamiq, respectivamente, substituíram os titulares no duelo contra os portugueses. O jogo seria uma espécie de tira-teima em Copas, afinal, cada país havia vencido um jogo no histórico do confronto: Marrocos venceu em 1986 por 3 a 1 e eliminou Portugal ainda na fase de grupos, enquanto Portugal venceu por 1 a 0 o duelo da fase de grupos de 2018.

A tática marroquina foi a mesma do duelo contra a Espanha: time compacto, estudando o adversário e oferecendo a posse de bola a ele. Portugal dominou as ações, mas não conseguiu furar a retaguarda africana. Sem pontaria, o time português oferecia alguns espaços e neles que Marrocos aproveitou para abrir o placar no final do primeiro tempo. O lateral-esquerdo Allah, substituindo Mazraoui, cruzou na área e o atacante En-Nesyri subiu muito, mas muito alto para resvalar na bola e mandá-la para o fundo do gol: 1 a 0. Foi digno de CR7, que, do banco, via tudo com muita perplexidade.

Marrocos na Copa: time forte no meio de campo e com ligação rápida ao ataque.

 

Marrocos ainda quase ampliou com o lateral Allah, mas o chute do defensor foi longe do gol. Na segunda etapa, Portugal foi para o tudo ou nada, mas sofreu em alguns momentos nos contra-ataques rápidos engatilhados por Marrocos, que mostrava sua eficiência quando tinha a bola nos pés. Não era apenas uma equipe sólida defensivamente, era também objetiva no ataque e que quebrava os paradigmas de que seleções africanas são displicentes na defesa e não sabem jogar pelo resultado, como sempre vimos em Mundiais.

O técnico português Fernando Santos fez várias mudanças, colocou Cristiano Ronaldo, mas de nada adiantou. Marrocos ainda teve uma chance claríssima aos 44’, com Cheddira no mano a mano com o goleiro, mas o atacante, longe de ser técnico, se atrapalhou com a bola e aliviou para Portugal. Com grandes defesas, Bono pegou tudo e mais um pouco e se consagrou ainda mais como um dos principais nomes da seleção na Copa. E, quando o árbitro apitou o fim de jogo, o inacreditável e inédito aconteceu: Marrocos estava na semifinal da Copa do Mundo de 2022. Depois de mais de nove décadas, decepções e “quases”, um país africano estava entre as quatro melhores seleções da maior competição do futebol. E tinha que ser o Marrocos, o primeiro africano a disputar uma fase de grupos, em 1970, o primeiro africano a se classificar para as oitavas de final, em 1986, e o primeiro africano a ser líder de seu grupo em uma Copa – em 2022.

Delírio marroquino! Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP.

 

A história estava escrita, cravada e consagrada. Os Leões do Atlas rugiram alto, colocaram o mundo árabe e africano em um patamar jamais alcançado por nenhuma outra seleção. Um feito que alçou de vez aqueles jogadores, bravos jogadores. Na celebração em campo, contagiou ver a torcida em delírio, com lágrimas, cantos e a família de alguns atletas, como a mãe de Boufal, que percorreu um trecho do campo com o filho. O técnico Regragui, sem dúvida um dos principais responsáveis por aquele feito, ressaltou o que disse aos seus comandados antes da partida: 

 

“Enfrentamos uma grande equipe de Portugal. Estamos entregando tudo o que temos, alguns rapazes ainda estão lesionados. Eu disse aos jogadores antes da partida que precisávamos escrever a história da África. Estou muito, muito feliz. A África está de volta ao mapa do futebol hoje”.

 

A façanha africana correu o mundo e o selecionado dominou as manchetes de vários jornais. Só que o próximo desafio da equipe seria gigantesco: encarar a campeã França, em outro confronto com muita tensão política e cultural em volta.

 

Não faltou luta

Theo Hernández finaliza e anota o primeiro gol da França. Foto: Reuters / Dylan Martinez.

 

Antes do duelo contra a favorita França, o técnico bleu Didier Deschamps enalteceu a presença marroquina naquela semifinal. “Poucas pessoas esperavam Marrocos na semifinal da Copa do Mundo, mas, pelo que fizeram, não é mais uma surpresa. Eles merecem estar aqui. Como nós, eles terão a oportunidade de jogar por um lugar na final. É mérito deles, ninguém pode tirar isso deles”, comentou o francês. E, de fato, o rótulo de zebra passava longe da equipe africana àquela altura. Embora a França fosse favorita pelo plantel que tinha e pelo futebol preciso que jogava, ninguém duvidava da capacidade da seleção do Marrocos.

Antes do jogo, a presença maciça da torcida marroquina criou um clima de jogo em Casablanca. No hino nacional, o estádio praticamente inteiro cantou alto, com orgulho, a presença do país ali. E, quando a bola rolou, a França ouviu talvez as maiores vaias de uma torcida em uma Copa nos momentos em que tinha a bola em seus pés. O mar vermelho jogava junto, embalava Marrocos. Mas, logo aos 4’, o lateral Theo Hernández completou uma jogada rebatida pelo goleiro, após chute de Mbappé, e emendou um belo voleio para fazer 1 a 0. O gol foi uma ducha de água fria nos marroquinos, que ficavam pela primeira vez na Copa atrás do placar. 

Marrocos teve que partir mais ao ataque, mas deu espaços à França, que também chegava com perigo. Ainda no primeiro tempo, aos 20’, o zagueiro Saïss sentiu dores e teve que ser substituído. Sem o elenco do rival, Marrocos começava a sentir os percalços de uma competição tão intensa como uma Copa. Só aos 43’ que o time africano teve uma grande chance, em bicicleta de El Yamiq, que bateu na trave.

Se essa bola entra… Foto: Karim Jaafar/AFP.

 

No segundo tempo, Mazraoui, ainda com problemas físicos, deixou o campo para a entrada de Allah e Marrocos seguiu atacando a França, demonstrando muita valentia mesmo com a possibilidade de o time europeu engatilhar algum contra-ataque letal. Acuada, a França sofreu bastante com os avanços pela direita de Hakimi e Ziyech, além da boa participação de Allah pela esquerda. Mas, aos 33’, a equipe europeia conseguiu se infiltrar na zaga marroquina, Mbappé, mesmo pressionado por quatro adversários, chutou, a bola desviou e sobrou para Muani fazer 2 a 0. 

Era o fim. Por mais que não faltasse vontade, a equipe de Regragui não conseguiu furar a meta francesa. Ao apito do árbitro, a França garantiu a vaga na final pela segunda vez seguida. Já Marrocos foi aplaudido por sua apaixonada torcida, que reconheceu o feito daquela seleção e seu ímpeto de ter buscado o gol e ter atacado a França quando muitos outros times teriam feito o contrário.

 

Leões Imortais

Na disputa pelo terceiro lugar, o técnico Regragui modificou bastante o setor defensivo do time por causa dos vários problemas de lesões e não conseguiu superar a experiente Croácia, que venceu por 2 a 1 e ficou com o bronze da Copa. Mesmo assim, o sentimento marroquino foi de orgulho pela melhor campanha de um país africano na história das Copas. “Fiquei um pouco decepcionado com a segunda derrota seguida, fizemos de tudo. […] Nossa seleção fez de tudo. Vamos aprender muito desta Copa. Vamos voltar mais fortes daqui a quatro anos. Demos um espetáculo. Os croatas têm mais experiência, jogaram bem, mereceram o resultado hoje”, disse o técnico Regragui após o jogo, que reconheceu ainda que sua seleção quebrou a “tradição europeia” e que ficou o aprendizado do que se deve ou não fazer na reta final de uma Copa.

O fato é que a campanha de Marrocos no Catar em 2022 foi um acontecimento histórico, algo que só teremos exata noção de seu tamanho daqui alguns anos. Superar tantos gigantes como eles superaram, tantas seleções com mais poder de preparação e orçamento foi impressionante. Mais do que isso, ver uma torcida imensa nos estádios em cada jogo de Marrocos provou o quanto o esporte move o povo árabe e o amor que Marrocos tem pelo futebol, algo que eles sempre tiveram, mas que muita gente ainda não conhecia. Bem, agora todo mundo conhece. E sabe que a aura dos bravos e valentes Leões do Atlas segue viva quando a seleção marroquina entra em campo. Simplesmente imortal.

 

JOGOS

VITÓRIAS EMPATES DERROTAS GM GS

SG

7

3 2 2 6 5

1

 

Os personagens:

 

Bono: aos 31 anos, o goleiro do Sevilla fez história com atuações magistrais durante a campanha marroquina, em especial nos jogos da fase final contra Espanha – quando defendeu três pênaltis – e contra Portugal – uma muralha diante dos atacantes lusitanos. Com mais de 50 jogos pela seleção, se firmou como titular principalmente a partir de 2019, mas sem dúvida viveu o melhor momento da carreira na Copa de 2022, ajudando o time africano a ostentar a melhor defesa da Copa até as semifinais. Jogando na Andaluzia desde a temporada 2019-2020, faturou com o Sevilla a Liga Europa da UEFA de 2020.

Hakimi: o lateral-direito já tinha certa fama no futebol mundial, mas saiu da Copa muito maior do que entrou. Com vigor físico, técnica apurada, ótimo no desarme, visão de jogo, velocidade, capacidade de apoiar e defender e realizando uma parceria memorável com Ziyech, Hakimi comprovou ser um dos melhores laterais do planeta e se transformou em um dos atletas mais queridos do país muito pelo valor que ele sempre deu ao Marrocos mesmo tendo nascido na Espanha. Com quase 60 jogos pela seleção, Hakimi deve vencer o prêmio de futebolista africano do ano, tamanha sua importância para Marrocos no Mundial e por sua consistência, também, no futebol de clubes, onde brilha atualmente no PSG.

Aguerd: foi um dos principais zagueiros da Copa e deu muita solidez à zaga marroquina, principalmente na primeira fase e em boa parte do duelo contra a Espanha. Com 1,90m, se impunha nas jogadas aéreas e demonstrou boa qualidade nos passes. Acabou sentindo uma lesão no duelo contra a Espanha e desfalcou o time nos outros jogos da fase final. Fez bastante falta por tudo o que desempenhava no setor defensivo, principalmente pelos desarmes precisos.

El Yamiq: outro defensor com boa estatura (1,92m), entrou no lugar de Aguerd e foi opção para quando o técnico Regragui queria jogar com três zagueiros. Foi titular na vitória contra Portugal e também nos duelos contra França e Croácia. Além de jogar na zaga, aparecia vez ou outra no setor ofensivo.

Saïss: o capitão foi outro que se destacou durante a campanha com sua experiência e boa cobertura, mas também sofreu com lesões e desfalcou Marrocos logo aos 20’ do jogo contra a França, na semifinal. Sem ele nem Aguerd, o time perdeu força no setor e não conseguiu atacar com a tranquilidade que teve nos jogos anteriores. Marcou um gol na vitória sobre a Bélgica na fase de grupos.

Dari: o defensor jogou contra Portugal, França e Croácia para ajudar na recomposição da zaga após as lesões de Saïss e Aguerd, mas não tinha a mesma eficiência dos companheiros. Porém, não comprometeu e ainda fez um gol na disputa pelo terceiro lugar.

Mazraoui: lateral-direito de origem e que realizou grandes jogos pelo Ajax até se transferir para o Bayern, em 2022, Mazraoui foi deslocado para a esquerda pelo técnico Regragui e a tática deu muito certo, pois o time evoluiu bastante na parte ofensiva e de domínio do meio de campo graças ao bom passe e grande consciência tática do defensor. Uma pena que ele também tenha sofrido com as lesões, problema que fez com que o lateral não jogasse 100% na reta final – ele só entrou em campo contra a Espanha e no primeiro tempo contra a França.

Allah: com a ausência de Mazraoui, o defensor ganhou a vaga de titular na reta final e fez bons jogos, apoiando o ataque com cruzamentos e muita regularidade – em especial no jogo contra Portugal.

Amrabat: irmão do ex-jogador da seleção marroquina Nordin Amrabat, Sofyan Amrabat foi absoluto no meio de campo de Marrocos na Copa e, sem dúvida, o pilar do elogiado setor africano. Com qualidade na saída de bola, na marcação e na organização, dos pés dele saíram algumas das principais jogadas do time no Mundial. Além disso, o volante foi assombroso no quesito físico, se movimentando a todo momento e travando os adversários com suas roubadas de bola, marcação acirrada e muito vigor. Simplesmente monstruoso e brilhante na campanha marroquina no Catar.

Ounahi: outro que se agigantou na Copa, o jovem meio-campista de apenas 22 anos era o chamado motorzinho do miolo marroquino com seus passes precisos, desarmes, dribles, visão de jogo e um fôlego impressionante. Fez uma partidaça contra a Espanha e demonstrou justamente contra a equipe europeia que sabia fazer um pouco do que seu ídolo, Iniesta, tanto fez com a camisa da roja. Jogando no pequeno Angers-FRA, deve se transferir para algum grande clube europeu muito em breve.

Benoun: defensor, entrou em algumas partidas, mas não foi titular. Frequenta a seleção desde 2017, acumulando 17 jogos e cinco gols.

Amallah: fechava o grande meio de campo marroquino com mais obrigações defensivas do que ofensivas, afinal, era ele quem cobria os buracos e auxiliava na marcação para os outros do time brilharem na frente. Contra Portugal, fez um jogo impecável ao interceptar constantemente o perigoso Bruno Fernandes, anulando o então melhor jogador português no Mundial. 

Cheddira: outro reserva que não teve grandes chances. Com pouca técnica, ficava bem atrás do titular En-Nesyri. Prova disso foi o gol feito que perdeu no jogo contra Portugal.

Ziyech: o ponta era outro com bastante bagagem internacional pelo futebol apresentado no Ajax e no Chelsea, e, pela seleção, provou ser a principal estrela ofensiva do time. Com dribles, arrancadas e grandes lances, Ziyech foi a arma pelo lado direito do Marrocos na Copa. Marcou o gol que abriu a vitória por 2 a 1 sobre Canadá, converteu sua cobrança na disputa de pênaltis contra a Espanha e foi a referência marroquina lá na frente.

En-Nesyri: o centroavante do time provou ter estrela no duelo contra Portugal, quando subiu mais alto do que todo mundo e marcou um dos gols mais importantes da história da seleção marroquina e de todo futebol africano: o da vitória por 1 a 0 que colocou Marrocos na semifinal da Copa. Com boa presença física e forte no setor aéreo, En-Nesyri foi o artilheiro da seleção no Mundial com dois gols e cravou seu nome na história dos Leões do Atlas. Desde 2016 atuando pela seleção, En-Nesyri tem 57 jogos e 17 gols pela equipe africana.

Sabiri: meia habilidoso e eficiente nos lançamentos e chutes, atuou como titular em dois jogos da campanha marroquina e entrou em outros três, contribuindo com uma assistência na vitória sobre a Bélgica por 2 a 0. 

Aboukhlal: atacante do Toulouse, foi reserva, mas marcou um gol na vitória sobre a Bélgica na fase de grupos por 2 a 0, já nos acréscimos do jogo. 

Boufal: driblador e técnico, se destacou no setor ofensivo do Marrocos abrindo caminho nas zagas rivais pelo lado esquerdo, embora o time jogasse mais pela direita. Presente na seleção desde 2016, acumulou até 2022 39 jogos e seis gols.

Walid Regragui (Técnico): imagine um técnico que assume uma seleção cheia de problemas de elenco e descrença faltando pouco mais de três meses para o início de uma Copa do Mundo. Futuro sombrio e certeza de fracasso, certo? Erradíssimo! Walid Regragui conseguiu em pouco tempo criar uma identidade na seleção marroquina, unir os atletas, formar um time coeso e com aura única para construir uma das maiores histórias das Copas neste século. Líder de seu grupo, Marrocos freou a badalada Espanha, derrotou Portugal e impôs sufoco na França em uma caminhada heroica, digna de filme. Tudo com o dedo do mestre Regragui, que será elogiado por toda vida pelo que fez pelo futebol marroquino, pelo futebol africano e pelo orgulho árabe.

 

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