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Esquadrão Imortal – Once Caldas 2003-2004

Foto: LUIS ACOSTA/AFP/Getty Images
Em pé: Moreno, Cataño, Rojas, Vanegas, Viáfara e Henao. Agachados: Soto, García, Velásquez, Valentierra e Alcázar. Foto: LUIS ACOSTA/AFP/Getty Images

 

Grandes feitos: Campeão da Copa Libertadores da América (2004) e Campeão do Campeonato Colombiano – Apertura (2003).

Time-base: Henao; Rojas, Vanegas, Cataño (Díaz / Cambindo) e García (Ortegón); Viáfara, Velásquez, Soto e Moreno (Arango); Valentierra (Fabbro) e Alcázar (Galván / Agudelo). Técnico: Luiz Fernando Montoya.

 

“O Ferrolho da América”

Por Guilherme Diniz

 

O ano de 2004 é, até hoje, surpreendente na história do futebol mundial. Foi a temporada que não perdoou os gigantes e fez vez aos times que antes eram tidos como coadjuvantes. No Campeonato Paulista, o São Caetano foi o campeão após derrotar o Paulista de Jundiaí. Na Copa do Brasil, o Santo André derrubou o Flamengo diante de 70 mil pessoas no Maracanã e foi campeão com uma épica vitória por 2 a 0. Na Eurocopa, a Grécia foi campeã ao derrotar a favorita e anfitriã seleção de Portugal por 1 a 0 na final, em pleno estádio da Luz. E, na Liga dos Campeões da UEFA, o Porto foi o campeão europeu ao vencer por 3 a 0 o Monaco em outra final pra lá de surpreendente. Isso sem contar os títulos do Valencia, em La Liga, e do Werder Bremen, na Bundesliga.

E é claro que a Copa Libertadores também teve um campeão inédito, improvável e assustador: o Once Caldas, que fez o mundo conhecer a cidade de Manizales, na Colômbia, e também apresentou talvez um dos maiores ferrolhos futebolísticos de que se tem notícia. Após superar a fase de grupos de maneira relativamente fácil e na liderança de seu grupo, o time colombiano derrubou gigantes no mata-mata com uma defesa implacável, disciplinada e aguerrida. Depois de eliminar o Barcelona-EQU nas oitavas, a equipe de Manizales despachou o Santos, nas quartas, o São Paulo, nas semis, e não se intimidou com o então bicho-papão Boca Juniors de Bianchi na final. Após dois empates, o Once Caldas venceu nos pênaltis e celebrou o título diante de sua torcida e com uma festa tão maluca que até quebrou a taça (!). 

Foi um time que assustou onde outros eram assustados e que passou incólume por Morumbi e La Bombonera sem sofrer gols e calando milhares de torcedores. No final do ano, o time manteve suas características e por pouco, mas muito pouco, não alcançou o título mundial na final contra o Porto, que não conseguiu marcar gols nos 90 minutos e só venceu nos pênaltis em uma disputa que acabou 8 a 7. É hora de relembrar.

 

Mudança de figura

Em um jejum interminável de grandes títulos – a equipe só tinha um Campeonato Colombiano, lá em 1950 (!) – e sempre longe dos holofotes, o Once Caldas entrou no novo milênio disposto a mudar sua imagem diante dos rivais, até porque o clube se chamava Once Caldas apenas desde 1996, após constantes mudanças de nomes, entre os quais Deportes Caldas, Cristal Caldas, Varta Caldas, Cristal Caldas, Once Philips, Once Philips-Colombiana, Once Caldas Colombiana, Once Caldas Leona e, enfim, Once Caldas. Ao longo dos anos, Los Albos até que flertaram com a glória, em especial em 1998, quando ficaram com o vice-campeonato colombiano ao perderem para o Deportivo Cali a decisão.

Em 1999, o Once Caldas disputou a Libertadores pela primeira vez, fez bons jogos – principalmente em casa, onde ficou invicto e venceu o River Plate-ARG por 4 a 1 -, mas acabou eliminado na fase de grupos, atrás do Vélez Sarsfield-ARG, do rival Deportivo Cali – que seria vice-campeão, ao perder a final para o Palmeiras -, e do River. Em 2002, Los Albos disputaram outra Libertadores, mas foram desclassificados na fase de grupos, permanecendo atrás de Olimpia-PAR e Universidad Católica-CHI e à frente do Flamengo. De novo, os colombianos terminaram invictos jogando em casa. 

Uma escalação do Once Caldas em 2002. Em pé: Miguel Rodas, Pedro Álvarez, Jhon Viáfara, Leyder Preciado, Agustin Julio, Manuel Galarcio e César Hernández. Agachados: Felipe Benalcazar, Elkin Soto, Arnulfo Valentierra, Jorge Zapata e Sergio Galván. Foto: Guillermo Ruiz.

 

Na temporada de 2003, a diretoria trouxe para o comando técnico Luis Fernando Montoya, que havia começado sua carreira em 1995, na equipe sub-20 da Colômbia, e passou duas temporadas no Atlético Nacional, pelo qual foi vice-campeão nacional em 2002 antes de chegar a Manizales. Além dele, vieram Juan Carlos Ángel (preparador físico), Carlos Valencia (assistente técnico) e Ricardo Pérez (diretor das divisões inferiores). Já o elenco ganhou o reforço do meia Valentierra, após um período no América de Cali; Samuel Vanegas, por empréstimo junto ao Atlético Nacional; Luis Eduardo Lara, ex-Deportes Quindío, e Jefrey Díaz, ex-Independiente Santa Fe. Quem também retornou naquele período após jogar por empréstimo em 2002 no Atlético Bucaramanga foi o goleiro Juan Carlos Henao, quase uma personificação de René Higuita, capaz de defesas sensacionais e que já tinha centenas de jogos pelos Albos desde 1992. 

Henao, a muralha do Once Caldas.

 

No dia a dia, o técnico Montoya foi dando sua cara à equipe e fez mudanças certeiras no time, como mudar a posição de Viáfara, que deixou o miolo central da zaga e passou a atuar como volante, jogando ao lado de Velázquez. Quem também seria essencial naquele time foi o meia/atacante Valentierra, experiente e que teria o lado goleador aproveitado ao máximo na disputa do Apertura do Campeonato Colombiano, competição que dava ao campeão uma vaga na Libertadores de 2004.

 

Campeões, 54 anos depois!

O Once Caldas demonstrou enorme poder competitivo no torneio nacional e foi líder na primeira fase da disputa, todos contra todos. O time somou 35 pontos em 18 jogos (quatro a mais do que o segundo colocado, o Millonarios), sendo 10 vitórias, cinco empates, três derrotas, 26 gols marcados e 15 gols sofridos. No quadrangular semifinal, Los Albos venceram o América de Cali na casa do rival por 3 a 1, quebrando um jejum de 26 anos sem triunfos no estádio Pascual Guerrero. Na rodada seguinte, o time goleou o Unión Magdalena por 4 a 0, em casa, venceu o Deportivo Cali, fora, por 3 a 0, empatou em casa com o mesmo Deportivo em 1 a 1, empatou em 1 a 1 com o Unión, fora, e venceu o América de Cali, em casa, por 2 a 0, garantindo a vaga na final após quatro vitórias e dois empates em seis jogos.

 

O rival na decisão foi o Junior Barranquilla e o primeiro jogo, na casa do Junior, terminou empatado em 0 a 0. Na volta, em Manizales, o Once Caldas precisava vencer para levantar um título que não vinha desde 1950. E, em seu caldeirão de Palogrande, o time da casa venceu por 1 a 0, gol de Sérgio Galván, fazendo uma festa que marcou a história do clube e simbolizou em definitivo a mudança que os Albos buscavam. Valentierra, com 13 gols, foi o artilheiro do time e da competição. O troféu deu ao clube a vaga na Libertadores de 2004, e, por isso, a equipe desprezou totalmente o Campeonato Colombiano – Finalización de 2003, terminando apenas na 14ª colocação.

 

Objetivo: passar da fase de grupos

Galván, artilheiro do clube colombiano.

 

Antes de a Libertadores começar, nem de longe o Once Caldas figurava na lista de favoritos. A Argentina tinha representantes pesadíssimos como Boca Juniors (então campeão do mundo), Independiente, River Plate, Rosario Central e Vélez Sarsfield. O Brasil apostava no Cruzeiro (campeão da Tríplice Coroa de 2003), no forte Santos da época, num já competitivo São Paulo e ainda no São Caetano, vivendo seus últimos suspiros antes do sumiço total. Isso sem contar no Cobreloa-CHI (campeão dos dois torneios nacionais do Chile em 2003), LDU e Barcelona (Equador), Peñarol e Nacional (Uruguai) e nos sempre hostis mexicanos (eles ainda disputavam a Libertadores), representados naquele ano por Santos Laguna e América.

Com a mesma base de 2003, o Once Caldas apostaria na marcação implacável e na saída em velocidade. Os chutes de longa distância também seriam armas essenciais para surpreender os rivais pelo caminho. E, após o sorteio, os colombianos se deram bem com o Grupo 2, que tinha, além deles, Maracaibo-VEN, Vélez Sarsfield-ARG e Fénix-URU. Dava para garantir pela primeira vez uma vaga nas oitavas de final, ainda mais com a invencibilidade da equipe jogando em casa. Mas os comandados de Montoya precisavam somar pontos fora de Palogrande se quisessem quebrar a escrita de sempre cair na fase de grupos.

A estreia não poderia ser melhor: vitória por 3 a 0 sobre o Fénix, em casa, com dois gols de Valentierra e um de Díaz. No duelo seguinte, contra o Maracaibo, enfim o Once Caldas venceu fora de casa e bateu os venezuelanos por 2 a 1, gols de Fabbro e Galván. No terceiro jogo, a primeira (e única!) derrota na competição veio diante do Vélez, na Argentina, por 2 a 0. No returno, Galván marcou os dois gols da revanche diante do Vélez, em Palogrande, e garantiu a vitória por 2 a 0. No quinto jogo, Soto e Valentierra fizeram os gols do triunfo por 2 a 1 sobre o Maracaibo, em casa, resultado que classificou a equipe colombiana pela primeira vez à fase de oitavas de final de uma Libertadores. 

Já cumprindo tabela, o Once Caldas empatou em 2 a 2 com o Fénix (dois gols de Fabbro) e fechou sua participação na primeira fase com 13 pontos, sendo quatro vitórias, um empate, uma derrota, 11 gols marcados e seis sofridos. A equipe colombiana terminou com a 5ª melhor campanha da fase de grupos e ficou à frente de outros primeiros colocados como Nacional, River Plate, Boca Juniors e Sporting Cristal. As melhores campanhas foram do Santos (16 pontos), São Paulo (15 pontos) e Cruzeiro (13 pontos, mas saldo de gols melhor do que América-MEX e Once Caldas). 

Um adendo importante é que o chaveamento acabou sendo por ordem de grupo e não pela campanha de cada equipe. Com isso, o América, primeiro do grupo 1, enfrentou um dos classificados na repescagem. O Once Caldas, primeiro do grupo 2, encarou também um dos classificados na repescagem, e assim foi indo até chegar ao primeiro do grupo 8, que enfrentou o primeiro do grupo 9. E, por meio desse critério bisonho da Conmebol em uma Libertadores inchada com 36 clubes, o Once Caldas se beneficiou e pôde disputar todos os jogos da volta em sua casa.

 

Classificação sofrida

Nas oitavas, o Once Caldas teve pela frente o Barcelona-EQU, duas vezes vice-campeão da Libertadores (em 1990 e em 1998), que somou apenas 8 pontos na fase de grupos e só garantiu a vaga na repescagem. O primeiro jogo foi em Guayaquil e terminou empatado em 0 a 0, com o Once Caldas já fazendo uso da tática da marcação implacável e estilo de jogo defensivo que o técnico Montoya iria adotar nos duelos fora de Manizales. Na volta, quase 40 mil pessoas lotaram o estádio Palogrande e viram um duelo dramático, no qual o Barcelona abriu o placar aos 76’, com Gavica. Faltando pouco para o fim, o Once Caldas teve que ir pra cima e conseguiu um gol agônico aos 83’, de Agudelo. Como não existia o critério do gol fora (se existisse, o empate em 1 a 1 classificaria o Barcelona), a partida foi para os pênaltis. 

Na marca da cal, os colombianos mostraram eficiência e converteram todos os seus chutes. Já os equatorianos mandaram uma bola na trave e viram Henao defender um dos chutes. O placar de 4 a 2 colocou o Once Caldas em uma improvável quartas de final. E tal etapa parecia o limite para a equipe colombiana, afinal, ela teria pela frente o Santos de Diego, Robinho, Renato, Elano e treinado por Vanderlei Luxemburgo. 

 

O primeiro gigante caído

Todos acreditavam em uma goleada do Peixe no primeiro jogo, na Vila Belmiro. Com uma equipe ofensiva e entrosada, que se conhecia desde o título brasileiro de 2002, o Santos era um dos fortes candidatos ao título, que havia escapado em 2003 na final perdida para o Boca. Mas, quando a bola rolou, os brasileiros se surpreenderam com a fortaleza defensiva do Once Caldas, que simplesmente não dava espaços e só permitia alguns chutes de fora da área aos alvinegros. Deivid até acertou uma cabeçada na trave, mas foi pouco. Só aos 38’ do segundo tempo que, enfim, o time da Vila conseguiu quebrar o ferrolho em gol de Basílio, que explodiu o caldeirão santista. Quando a vitória parecia consumada, eis que Valentierra, o artilheiro, fez o gol de empate que jogou um balde de água fria no Santos, que teria que vencer a qualquer custo na Colômbia.

No estádio Palogrande, o Once Caldas teve mais iniciativa do jogo, enquanto o Santos apostou mais no contra-ataque, além de temer a correria por causa dos 2150 metros de altitude de Manizales. No segundo tempo, a partida ficou tensa, com os dois times tentando um gol salvador. Até que, aos 25’, Valentierra cobrou falta de longe e acertou o ângulo do goleiro Júlio Sérgio, decretando a vitória por 1 a 0 e a incrível vaga na semifinal. A surpresa foi geral e o Once Caldas já era a maior zebra daquela Libertadores, ainda mais pelo peso dos semifinalistas: Boca Juniors e River Plate de um lado e São Paulo do outro, o próximo adversário dos colombianos.

 

O ferrolho em estado máximo

Com a confirmação de Once Caldas x São Paulo em uma das semifinais, o time brasileiro comemorou a eliminação do Santos, pedra na chuteira dos paulistas na época. “É claro que o Santos é mais forte, mas o Once Caldas será o nosso adversário agora”, comentou Cuca, técnico tricolor na época, ao jornal Folha de S. Paulo. O treinador ainda ponderou que o time colombiano “vem fazendo um campeonato muito bom. Engana-se quem pensa que o Once Caldas é um time ruim” e exigiu máxima atenção da equipe, que tratava a competição continental como obsessão, afinal, não vencia o torneio desde 1993

O presidente do clube na época, Marcelo Portugal Gouvêa, disse que “sem dúvida será melhor enfrentar o Once Caldas. Se você analisar, o Santos é mais time”, enquanto o atacante Grafite comentou que “Se eles [Once Caldas] chegaram, alguma coisa têm de bom. Mas talvez decidir a vaga em um clássico fosse mais difícil”. De fato, o São Paulo confiava demais na classificação e no poder do Morumbi, onde defendia uma longa invencibilidade em jogos de Libertadores que datava desde 1987, além de buscar a 18ª vitória seguida no estádio. 

A equipe brasileira já tinha na época nomes que seriam campeões da América em 2005 como Rogério Ceni, Cicinho, Fabão, Souza, Danilo e Grafite, além de Gustavo Nery, Rodrigo, Alexandre, Fábio Simplício e Luís Fabiano. Era um time muito forte e que levou mais de 70 mil pessoas ao Morumbi no dia do primeiro jogo. Sabendo da força do rival, o técnico Montoya exigiu máxima concentração, mas ressaltou a força de seu grupo.

 

“Já falei para os meus jogadores entrarem em campo concentrados. Não temos que nos impressionar com os torcedores. São pessoas normais, e não fantasmas. […] Temos o Valentierra, o Viáfara, o Henao, mas o forte do time vai ser a união.”

 

E, quando a bola rolou, o Once Caldas montou novamente seu ferrolho intransponível e que jogaria pelo empate, para levar a decisão até Manizales, onde o time colombiano jamais havia perdido pela Libertadores. E, com o passar do tempo, o São Paulo viu aquela fortaleza colombiana cada vez maior, com os 10 jogadores de linha cercando a grande área, além do goleiro Henao tirar do sério os atacantes com suas defesas e muita marra. 

Nem quando teve contra-ataques a seu favor o time colombiano aproveitou – deu apenas dois chutes a gol, deixando Rogério Ceni a maior parte do tempo como um mero espectador. O tricolor arriscou 25 vezes, mas nenhuma bola entrou. O placar de 0 a 0 calou o Morumbi e foi como uma vitória para o Once Caldas. “É difícil jogar contra um time que se defende até com dez, mas vamos trazer a vaga da Colômbia”, disse após o jogo o confiante Rogério Ceni. Mas, na Colômbia, a história seria dramática.

 

A Batalha de Manizales

Para conseguir a inédita vaga na final, o Once Caldas inflou sua torcida e criou um clima de guerra para o duelo da volta, impedindo o São Paulo de treinar ou reconhecer o gramado do estádio Palogrande. Com isso, a equipe brasileira só chegou ao local do jogo faltando duas horas para o início, em 16 de junho de 2004, sob forte hostilização da torcida colombiana. Em um clima tenso, digno de Libertadores, a partida começou a todo vapor, com o Once Caldas indo pra cima, enquanto o São Paulo ficou mais na defensiva nos primeiros minutos. Alcázar teve grande chance aos 16’, ao tocar na saída de Rogério, mas a bola raspou a trave direita. Até que, aos 28’, após cobrança de falta na área, o goleiro tricolor não segurou e a bola sobrou para o mesmo Alcázar fazer 1 a 0. 

Precisando de um gol, Cuca tirou o meio-campista Marquinhos e colocou Fábio Santos na ala-esquerda, deslocando Gustavo Nery para o meio. A tática deu certo e foi Nery quem escorou de cabeça para Danilo empatar o jogo, em lindo chute cruzado, cinco minutos depois. O tricolor estava vivo e impôs um inédito desconforto ao Once Caldas, que acusou o golpe e ficou mais retraído, com o time brasileiro tendo a posse de bola e levando perigo ao goleiro Henao. Rogério Ceni ainda arriscou em duas cobranças de faltas, mas não conseguiu marcar. Aos 45’ + 1’, Viáfara quase fez o segundo gol ao carimbar a trave do arqueiro brasileiro. 

No segundo tempo, o jogo ficou mais cadenciado no início, mas depois as melhores chances foram do São Paulo, que parou na falta de pontaria e nas defesas de Henao, além de impedimentos bobos que poderiam ter sido evitados. Aos 38’, Gustavo Nery teve grande chance, tentou driblar Henao, mas o lateral se atrapalhou e acabou perdendo a bola para o goleiro, que derrubou o brasileiro dentro da área e o árbitro acabou não dando falta – hoje, com o VAR, provavelmente seria pênalti. 

Já com o relógio nos 45’, tudo levava a crer que o jogo iria para os pênaltis. O técnico Cuca já rabiscava a lista dos batedores quando o Once Caldas se lançou ao ataque e Agudelo recebeu nas costas da zaga (em posição duvidosa), cortou Fábio Santos e chutou forte, cruzado, no canto de Rogério Ceni: 2 a 1. Explosão em Palogrande. Once Caldas na final da Libertadores. E fim do sonho do tri do São Paulo. Foi a mais dramática vitória dos Albos naquela campanha e a com mais sufoco. Enfim, só faltavam dois jogos para a sonhada Glória Eterna. Mas eles teriam outro titã pela frente: o Boca Juniors.

 

A consagração

O rival do Once Caldas era o temível Boca Juniors de Carlos Bianchi, campeão de três das últimas quatro Libertadores na época e campeão do ano anterior. A equipe xeneize vinha de uma classificação épica diante do maior rival, o River Plate, em jogo que Carlitos Tevez fez a famosa dança da Gallina provocando os Millonarios em pleno Monumental. Aquele havia sido, até aquele ano, o maior Superclásico da história e encheu de moral o time argentino, que só precisava jogar como estava acostumado para levar mais um troféu para casa. Com nomes como Abbondanzieri, Schiavi, Burdisso, Clemente Rodríguez, Ledesma, Cagna, Iarley, Tevez e Guillermo Schelotto, o Boca era favorito absoluto, mas, de novo, ninguém poderia duvidar do Once Caldas, da força de seu caldeirão e de sua zaga perfeita. O técnico Montoya foi categórico antes do jogo: 

 

“Respeitamos o Boca, mas não o tememos. Nem a Bombonera”.

 

E, no primeiro jogo da final, o caldeirão xeneize pulsante com mais de 47 mil pessoas não foi suficiente para derrubar o “Ferrolho da América”, que mais uma vez saiu ileso e segurou o empate sem gols. Foi mais um resultado gigante do Once Caldas, invicto naquele mata-mata. Para a volta, em Palogrande, mais de 45 mil pessoas criaram um caldeirão para o Once Caldas alcançar a maior glória de sua história. Confiante, o técnico Montoya disse que “a história nos tem reservado um lugar privilegiado”, enquanto Tevez, reforço para Bianchi após cumprir suspensão na partida de ida, disse que “sabemos que somos superiores. Na Argentina, eles só jogaram na defesa”, provocando o sistema de ferrolho do rival.

E, quando a bola rolou na Colômbia, logo aos 8’, Viáfara encheu o pé e acertou o ângulo de Abbondanzieri para fazer 1 a 0, mostrando quem é que mandava por ali. Confiantes, os colombianos continuaram melhores e tiveram seguidas chances de ampliar, principalmente em contra-ataques. No segundo tempo, a intensidade dos Albos diminuiu e o Boca aproveitou para igualar o marcador com o zagueiro Burdisso, de cabeça. Montoya tratou de mexer no time para evitar os temidos pênaltis, tão cultuados pelo Boca. Com isso, o Once Caldas passou a atacar mais, só que pecou muito nas finalizações. E, ao apito do árbitro, a final foi mesmo para a marca da cal.

O Boca tinha três títulos conquistados nos pênaltis em sua história – 1977, 2000 e 2001. Queira mais um. Só que os jogadores xeneizes ficaram entorpecidos com a torcida dos Albos e simplesmente erraram todos os chutes! Schiavi chutou por cima, Burdisso mandou no travessão e Henao pegou os pênaltis de Cascini e Cángele. O Once Caldas errou duas cobranças, com Valentierra e Ortegón, mas Soto e Agudelo fizeram seus gols e o magro placar de 2 a 0 selou a impressionante e histórica conquista do clube de Manizales. 

O que sobrou do troféu…

A celebração foi apoteótica e os torcedores pareciam não acreditar no feito de um clube tão modesto em seu país e que havia alcançado a glória que outros gigantes colombianos como América de Cali, Deportivo Cali e Millonarios não conseguiram. O Once Caldas era apenas o segundo clube da Colômbia campeão da Libertadores, igualando o feito do Atlético Nacional. Na comemoração, os jogadores ficaram tão alucinados com o troféu que deixaram ele cair. Ele se quebrou, especialmente na parte de cima, e obrigou a Conmebol a fazer uma intensa restauração depois. Em 14 jogos, o Once Caldas venceu 6, empatou 7 e perdeu apenas 1, marcando 17 gols e sofrendo 10. 

 

Pênaltis viram inimigos e o fim

Diego (à direita) conseguiu sua vingança diante do Once Caldas.

No final do ano, o Once Caldas viajou ao Japão para a disputa do Mundial Interclubes contra o Porto-POR, que tinha em seu plantel dois ex-jogadores derrotados pelo clube colombiano na Libertadores: Diego, ex-Santos, e Luís Fabiano, ex-São Paulo. Assim como na conquista continental, Los Albos armaram novamente o ferrolho e o time português sofreu do mesmo problema que Santos, São Paulo e Boca. Foram três bolas na trave de Henao – que também fez grandes defesas – e muito sofrimento, embora o Once Caldas tenha tido uma chance clara de gol em jogada de Fabbro para Viáfara, mas a bola acabou desviada. 

Após 120 minutos, a partida foi para os pênaltis e todos foram convertendo seus chutes – incluindo Diego, que marcou logo o primeiro gol e foi provocar Henao, “engasgado” na garganta do meia desde a Libertadores. Até que, no quarto chute do Porto, Maniche chutou na trave e o Once Caldas teve a chance de ser campeão do mundo no quinto chute, de Fabbro. Mas o argentino mandou a bola na trave e forçou as cobranças alternadas. Nelas, o Porto seguiu firme, enquanto o Once Caldas errou o oitavo chute, com García. O time português venceu por 8 a 7 e ficou com o bicampeonato mundial, que se somou ao título de 1987. Aquela foi a última edição do torneio nos moldes antigos, pois a partir de 2005 a FIFA começou a organizar o seu Mundial de Clubes.

O técnico Montoya teve que encerrar precocemente sua carreira. Foto: Toru Yamanaka / AFP

Apenas 10 dias após a final no Japão, o Once Caldas recebeu uma notícia terrível que acabou mudando o futuro do clube. Em 22 de dezembro de 2004, o técnico Montoya, ao tentar defender a mulher de um assalto em sua casa, na Colômbia, foi alvejado com dois tiros que acertaram sua coluna vertebral. A princípio, a sobrevivência do treinador era improvável, segundo os médicos. Quando ficou fora de perigo de morte, ele teria que passar o resto de seus dias dependente de um ventilador mecânico e um marca-passo para viver, além de dificilmente conseguir falar. Ele acabou tetraplégico e teve que encerrar de maneira abrupta sua carreira. Hoje, Montoya vive, fala, e não depende mais de aparelhos, além de conseguir realizar leves movimentos com mãos e pés.

Sem ele para “montar o ferrolho”, o Once Caldas não conseguiu manter a competitividade na temporada 2005, perdeu nomes importantes do time e nunca mais voltou a brilhar no território continental. Desde então, a torcida segue com as memórias vivas de um esquadrão destemido que assombrou os gigantes da América com coragem e disciplina para defender e atacar quando preciso. Se não foi bonito de se ver, foi histórico e rendeu uma eterna Libertadores ao clube albo, façanha que outros titãs da Colômbia até hoje procuram alcançar. 

 

Os personagens:

 

Henao: é o recordista em jogos pelo Once Caldas na história – 610 partidas – e sem dúvida o maior goleiro do clube em todos os tempos. Com três passagens pelos Albos (1992-2001, 2002-2004 e 2010-2016), Henao compensava a baixa estatura para um goleiro – tinha 1,81m – com defesas arrojadas, bom senso de colocação e muita elasticidade. Inspirado em Higuita, usava uniformes justos como o eterno goleirão colombiano e às vezes se arriscava jogando mais adiantado. Foi um dos destaques na campanha do título continental e fechou o gol no mata-mata. Em 2005, jogou no Santos e retornou em 2006 à Colômbia para vestir a camisa do Millonarios.

Rojas: o lateral-direito chegou em 2003 ao Once Caldas, permaneceu até 2006 e foi um dos mais regulares da equipe no período. Não costumava avançar muito ao ataque e tinha características mais de marcação. 

Vanegas: campeão colombiano pelo Atlético Nacional em 1999, o zagueiro chegou em 2001 ao Once Caldas e assumiu a liderança do time até 2005, sendo o capitão dos Albos naquela era de ouro. Com quase 1,90m de altura, se impunha pela presença física e tinha um notável senso de colocação, além de ser implacável na marcação e muito temperamental. 

Cataño: zagueiro rápido e eficiente na marcação, fez uma dupla memorável ao lado de Vanegas no miolo de zaga do Once Caldas.

Díaz: zagueiro que entrava em algumas partidas, chegou a marcar um gol na campanha da Libertadores, mas não teve muitas chances. 

Cambindo: foi um reforço para a segunda metade da temporada de 2004 e foi titular na disputa do Mundial Interclubes contra o Porto, atuando ao lado de Vanegas no miolo de zaga. Deixou o clube em 2005 para jogar no Ferro Carril Oeste-ARG.

García: cria das bases, o lateral-esquerdo começou no time titular em 2003 e fez grandes jogos naquela época, ajudando tanto no apoio ao ataque quanto na marcação. Teve três passagens pelo clube na carreira e se aposentou cedo, em 2013, para se dedicar ao ensino do futebol em escolinhas de base.

Ortegón: podia jogar no setor defensivo e também como volante. Era eficiente na marcação, mas também levava perigo nas jogadas aéreas. 

Viáfara: incansável, eficiente nos passes, desarmes e chutes, Viáfara foi um dos principais nomes daquele Once Caldas campeão da América – para muitos, era o melhor jogador do time. Ele jogou de 2002 até 2005 no clube e marcou 9 gols em 110 jogos pelos Albos, um deles na final diante do Boca. Com a visibilidade que teve na época, foi jogar no futebol inglês e defendeu o Portsmouth. Viáfara ainda vestiu a camisa da seleção da Colômbia em 43 oportunidades, marcando um gol.

Velásquez: com duas passagens pelo Once Caldas (1997-2001 e 2003-2005), o meio-campista foi um dos recordistas em jogos pelo clube (mais de 230 jogos) e fez uma memorável dupla de volantes ao lado de Viáfara. Disputou 13 jogos pela seleção.

Soto: outra cria das bases, o meio-campista jogou de 1999 até 2005 no Once Caldas e podia jogar mais aberto, ajudando na criação, ou também mais fechado. Tinha bons passes e aparecia bem no ataque. Foram 270 jogos e 29 gols pelo Once Caldas nas duas passagens que teve pela equipe de Manizales – ele se aposentou vestindo o manto dos Albos em 2019.

Moreno: é o terceiro maior artilheiro do Once Caldas na história com 125 gols nas várias passagens que teve pelos Albos ao longo da carreira. Cria das bases, Moreno tinha bom senso de colocação e oportunismo. Embora não tenha sido titular absoluto, marcou 9 gols em 2004, aumentando bastante a média de gols nos anos seguintes. Ele disputou ainda 31 jogos pela seleção da Colômbia.

Arango: após uma breve passagem pelo Atlético Nacional, o meia chegou ao Once Caldas em 2000 e permaneceu até 2007, atuando mais aberto pela esquerda ou recuado, como segundo volante. 

Valentierra: outra lenda do Once Caldas, Valentierra é o 2º jogador com mais jogos na história do clube – 481 partidas – e também o 2º maior artilheiro, com 138 gols. Cria dos Albos, o colombiano sempre foi muito ligado ao Once Caldas e era talentoso com a bola nos pés na criação de jogadas, chutes de fora da área e presença no ataque. Artilheiro na conquista nacional de 2003 com 13 gols, foi um dos principais nomes ofensivos do clube na época. Encerrou a carreira em 2011, após 19 anos como profissional.

Fabbro: meia-atacante argentino, chegou ao clube em 2004 e teve em seus pés a chance de dar o título mundial ao Once Caldas, na final contra o Porto, mas perdeu a cobrança derradeira de pênalti que manteve os portugueses vivos na disputa. Ele jogou profissionalmente até meados de 2017, quando passou a se envolver em polêmicas extra-campo. O mais grave e derradeiro aconteceu em 2018, quando o atacante foi condenado a 14 anos de prisão por estuprar sua afilhada. Ele segue preso na penitenciária de Marcos Paz, na Argentina.

Alcázar: o atacante jogou duas temporadas no Once Caldas e fez bons jogos, demonstrando velocidade e oportunismo. Marcou 18 gols em 54 jogos e foi o “culpado” por quebrar o troféu da Libertadores na celebração do título, ao agitar com muita força a taça.

Galván: o argentino naturalizado colombiano virou uma lenda no Once Caldas ao se tornar o maior artilheiro da história do clube com 171 gols em 397 jogos disputados entre 1996 e 2004. Foi um dos heróis no título nacional de 2003, mas acabou deixando a equipe antes do fim da fase de grupos da Libertadores de 2004 para jogar no futebol estadunidense. Com isso, ele acabou de fora da reta final, embora tenha sido lembrado pela diretoria e recebido a medalha de campeão, afinal, ele marcou os dois gols da vitória por 2 a 0 sobre o Vélez.

Agudelo: grande talismã do time naquela conquista, o atacante marcou gols importantíssimos contra o Barcelona, contra o São Paulo e converteu seu pênalti na final contra o Boca. Alternou partidas como titular e também como suplente. 

Luiz Fernando Montoya (Técnico): por mais que sua metodologia tenha sido questionada, o trabalho de Montoya a frente do Once Caldas foi um dos mais impressionantes no mundo do futebol neste século XXI. Vencer uma Libertadores da maneira como venceu, suportando pressões absurdas contra rivais claramente superiores e em estádios místicos como Vila Belmiro, Morumbi e La Bombonera foi algo para os livros. Antes, teve méritos ao vencer o Campeonato Colombiano aliando força ofensiva e equilíbrio defensivo. Seu trabalho com certeza teria mais frutos se o atentado que o deixou tetraplégico não tivesse acontecido. Mesmo assim, ele segue como uma divindade em Manizales e é o maior técnico do clube em todos os tempos.

 

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Comentários encerrados

4 Comentários

  1. Esse Once Caldas foi uma ótima surpresa, é bom quando um time de menos expressão ganha.
    Inclusive, eu queria dizer que gosto muito do trabalho de vocês, e que descobri muito sobre as histórias que existem no futebol nesse site.
    E eu queria saber também se vocês poderiam fazer um Imortais sobre o Chapuisat, ele sempre foi um jogador desconhecido e admiro muito o futebol dele. Se não for muita audácia, gostaria de sugerir um craques imortais sobre ele kkkkk

    • Pois é, Caio! O Imortais é um ótimo site! E gostei da sua sugestão: também acho que o Chapuisat poderia entrar na galeria dos craques imortais!

  2. Parabéns pelo texto, Imortais. Esse Once Caldas mereceu estar entre os esquadrões por vencer a Libertadores de forma épica. Montoya foi muito competente ao montar um ferrolho implacável que aguentou camisa pesada, estádios históricos e outros fatores. Uma pena que ele sofreu aquele atentado.

    Imortais, te mando um abraço, mas também te digo: o que seria do futebol sem as zebras? 2004 foi um ano muito louco!

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