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Seleções Imortais – Espanha 1964

Espanha 1964
Em pé: Iribar, Zoco, Olivella, Fusté, Calleja e Rivilla. Agachados: Amancio, Pereda, Marcelino, Suárez e Lapetra.
 

Grandes feitos: Campeã da Eurocopa de 1964. Conquistou o primeiro grande título da história da Seleção Espanhola de Futebol.

Time-base: José Ángel Iribar (Vicente Traín / Pepín); Feliciano Rivilla, Ferran Olivella e Isacio Calleja (Severino Reija); Ignacio Zoco e Josep Maria Fusté; Amancio Amaro, Jesús María Pereda (Pedro Zaballa), Marcelino Martínez (Enrique Collar / Luis Del Sol), Luis Suárez e Carlos Lapetra (Francisco Gento). Técnico: José Villalonga.

 

“Futebol, política e uma taça para a eternidade”

Por Guilherme Diniz

Madrid, outubro de 1959. Com jogadores da grandeza de Ramallets, Olivella, Segarra, Kubala, Di Stéfano, Luis Suárez e Paco Gento, a Espanha goleia a Polônia por 3 a 0 e se classifica para mais uma etapa preliminar da primeira Eurocopa da história, em 1960, que na época era seletíssima e reunia apenas as quatro melhores seleções em sua chamada “fase final”, com sede na França naquela ocasião. Com um esquadrão fantástico, os espanhóis eram um dos favoritos ao título. Mas nem chegaram a brigar por ele. Em uma interferência do general Franco, a seleção foi proibida de enfrentar seu próximo adversário, a União Soviética, num ataque direto ao regime comunista da época. Como seriam dois confrontos, dentro e fora de casa, Franco proibiu a URSS de entrar na Espanha e não permitiu que sua seleção visitasse o território comunista. Por isso, achou melhor retirar seu plantel da competição. Foi uma judiação para com aqueles craques. Melhor para os soviéticos, que foram campeões (leia mais clicando aqui). Quatro anos depois, a Eurocopa teria como sede a Espanha. E a mesma Espanha chegou à final para enfrentar… A URSS!

Daquela vez, Franco não pôde dizer não. Teve que aceitar a vinda dos inimigos políticos até sua casa. E, com quatro anos de atraso, a Fúria conseguiu, enfim, seu primeiro título no futebol. Num Santiago Bernabéu lotado, a equipe comandada por José Villalonga confirmou a qualidade de uma equipe que, se não tinha mais Kubala e Di Stéfano, contava com o talento de Amancio, a precisão do “arquiteto” Suárez, a segurança defensiva de Olivella e Zoco, e o oportunismo de Marcelino. Era um grande time, coeso, completo. Teve ainda Paco Gento, preterido nas finais, mas fundamental no decorrer da caminhada espanhola até a decisão. Foi a consagração de uma equipe que ostentava há décadas o apelido de “Fúria” sem nunca ter sido campeã. Eles “jogavam como nunca e perdiam como sempre”. Mas, em 1964, a espera acabou. É hora de relembrar.

Em busca de identidade

A Espanha em 1959. Em pé: Ramallets, Olivella, Garay, Gracia, Segarra e Gensana. Agachados: Tejada, Kubala, Di Stéfano, Luis Suárez e Gento.
 

A seleção espanhola começou suas atuações no esporte lá em 1920, quando venceu a Dinamarca por 1 a 0 nos Jogos Olímpicos da Antuérpia (BEL), com um time que tinha como destaques o lendário goleiro Zamora (leia mais clicando aqui) e o goleador Pichichi, que dá nome ao prêmio de artilheiro do Campeonato Espanhol até hoje. Naquela competição, a equipe conquistou a medalha de prata (o ouro ficou com os anfitriões) e mostrou que o futebol no país tinha, sim, futuro. Tanto é que foi naquela época que nasceu o famoso apelido da seleção: Fúria, em alusão ao futebol “agressivo, poderoso e cheio de estilo” que os espanhóis apresentaram em sua caminhada prateada. Porém, as décadas se passaram e nada de títulos pelas bandas ibéricas. O mais longe que eles chegaram em competições internacionais foi o quadrangular final da Copa do Mundo de 1950, no qual o time de Zarra, Ramallets e Basora sucumbiu e não brigou pela taça, levando, inclusive, um 6 a 1 do anfitrião Brasil.

Naquela década, a equipe não conseguiu as classificações para as Copas de 1954 e 1958 e começou a apostar nos estrangeiros em seu plantel nos anos 60. Com o argentino Di Stéfano gastando a bola no Real e o húngaro Kubala desfilando suas virtudes pelo Barça, eles foram os mais notáveis a serem incorporados ao elenco da Fúria para amistosos e partidas internacionais. Kubala jogaria entre 1953 e 1961, já Di Stéfano, entre 1957 e 1962. Em 1960, com os grandes craques já citados no início deste texto, muitos pensaram que a Espanha venceria a primeira Eurocopa da história, mas a atitude do ditador Franco de não enfrentar a URSS destruiu o sonho de uma torcida que clamava por um título.

Entre 1960 e 1961, a Fúria continuou a boa fase, venceu grandes adversários em amistosos (3 a 0 na Inglaterra, 3 a 1 na Itália, 4 a 0 e 4 a 1 no Chile, ambos fora de casa, 2 a 0 na França e 2 a 0 na Argentina), e se classificou sem dificuldades para a Copa do Mundo de 1962. Nela, o técnico argentino Helenio Herrera levou três estrangeiros juntos com os jogadores espanhóis: o zagueiro uruguaio José Santamaría e os veteranos Di Stéfano e o mito húngaro Ferenc Puskás, ambos com 35 anos. Além deles, o time contava com Suárez, Del Sol, Gento, Peiró e Segarra.

A Espanha era favorita não só para se classificar às fases finais, mas também ao título. Porém, tudo deu errado. Di Stéfano se machucou na véspera do Mundial e nem sequer jogou. O tão falado ataque com Puskás, Gento e Del Sol foi um fracasso e as duas derrotas (1 a 0 para a Tchecoslováquia e 2 a 1 para o futuro campeão Brasil) somadas à única vitória (1 a 0 sobre México, gol de Peiró) eliminaram a Espanha já na primeira fase. Foi o adeus melancólico de um time brilhante no papel, mas sem nada concreto na prática.

Puskás, pela Espanha, em 1962.
 

Após a Copa, era preciso refletir sobre a identidade da seleção. Afinal, por que naturalizar jogadores se dentro de casa eles poderiam formar um time bom e competitivo? Por que apostar em veteranos se jovens estavam despontando pelo país? Nesses pontos que o novo técnico do escrete rojo, José Villalonga, começou a trabalhar em 1962. Notabilizado pelos títulos que conquistou pelo Real Madrid nos anos 50 – entre eles as duas primeiras Ligas dos Campeões da história e do próprio Real, em 1956 e 1957 (leia mais clicando aqui), – e pelo Atlético de Madrid – foram duas Copas do Rei em 1960 e 1961 (que na época era chamada de Copa del Generalísimo) e uma Recopa da UEFA, em 1962, – Villalonga tratou de convocar apenas os nascidos na Espanha com foco na próxima Eurocopa, que, após intenso trabalho da Delegación Nacional de Deportes junto à FIFA, teria sua fase final realizada em território espanhol.

Isso fez a alegria do regime de Franco, que enxergava no torneio uma enorme vitrine de propaganda política, como bem fizeram vários outros ditadores em eventos esportivos no passado, vide o italiano Benito Mussolini com a Copa do Mundo de 1934 e o alemão Adolf Hitler e seus “arianos” nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Voltando ao âmbito esportivo, não havia oportunidade melhor para um recomeço. E para lapidar de vez a identidade de um país com clubes tão fortes e tantas taças já naquela época, mas com uma seleção ainda sem uma mísera medalha dourada.

Bola para os chicos!

Amancio Amaro, um dos jovens da reformulação da Espanha a partir de 1962.
 

Villalonga começou a buscar as peças certas para montar um elenco forte, competitivo e que tivesse a identidade espanhola que tanto a torcida queria, principalmente Benito Pico, presidente da Federação, que frisou ao novo comandante da Fúria que era preciso uma renovação total, sobretudo com jogadores jovens que pudessem construir uma sólida relação com a equipe nacional. E, para a felicidade geral, não faltavam opções. Vários jovens promissores despontavam em seus clubes. No gol, destaque para o goleiro Iribar, de apenas 19 anos, recém contratado pelo Athletic Bilbao – mas que seria convocado só em 1964. No meio de campo, Fusté, de 21 anos, do Barcelona, e Zoco, de 22, do Real Madrid, já mostravam enorme talento. No setor ofensivo, três jogadores arrancavam elogios da mídia esportiva.

O primeiro deles era Amancio Amaro, 22 anos, conhecido como “o Bruxo”. Com habilidade notável, dribles inteligentes e visão de jogo, ele era um dos mais talentosos jogadores do país, e, após boas temporadas pelo Deportivo La Coruña, foi contratado pelo Real Madrid exatamente em 1962. Os outros dois eram atacantes do forte Zaragoza da época: Carlos Lapetra, 23 anos, e Marcelino, de 22, que compunham o ataque conhecido como “Los Magníficos” que levou os Blanquillos a dois títulos da Copa del Generalísimo, em 1964 e 1966, e uma Copa das Cidades com Feiras (precursora da Copa da UEFA / Liga Europa), em 1964.

Marcelino…
 
… E Lapetra, estrelas do grande Zaragoza dos anos 60.
 

Além de toda essa gente, Villalonga ainda tinha à sua disposição o talento e experiência de Luis Suárez Miramontes, 27 anos, já consagrado e multicampeão pelo Barcelona dos anos 50 e que jogava desde 1961 na Internazionale-ITA, Ferran Olivella, 25 anos, grande defensor do Barcelona, e Feliciano Rivilla, zagueiro e lateral-direito que completaria uma década de serviços prestados ao Atlético de Madrid e dez partidas com a camisa da Espanha no currículo, incluindo uma pela Copa do Mundo daquele ano. Isso sem contar Luis del Sol e Francisco Gento, dupla que não teria tanto espaço mesmo com o talento de ambos e experiência de títulos e mais títulos por seus clubes.

Focados na Euro

Desde o início, a Espanha iria basear todos os seus trabalhos na classificação até a fase final da Euro. Nenhum outro resultado que não fosse a presença entre os quatro melhores do continente seria admitido. E a estreia de Villalonga sob o comando da equipe foi da melhor maneira possível: goleada de 6 a 0 sobre a Romênia, em Madrid, no primeiro compromisso válido pelas fases preliminares da competição, em novembro de 1962. Três semanas depois, na partida de volta, derrota por 3 a 1, fora de casa, para os mesmos romenos, mas insuficiente para eliminar a Fúria, que avançou. Antes do próximo duelo, contra a Irlanda do Norte, a equipe empatou dois amistosos, contra Bélgica (1 a 1, fora) e França (0 a 0, em casa). Em maio de 1963, no primeiro duelo contra os norte-irlandeses, empate em 1 a 1 em San Mamés, resultado considerado péssimo, afinal, a equipe teria que vencer em Belfast se quisesse seguir viva na competição.

A partida também expôs um time sem organização, com numerosas falhas na defesa e nos passes e pouca objetividade. Para piorar, dias depois, em um amistoso contra a Escócia em pleno Santiago Bernabéu, a Espanha levou uma sapecada de 6 a 2, num dia de show de Denis Law, Frank McLintock e Ian St John. Foi então que o técnico Villalonga teve que convocar Francisco Gento, Del Sol e Suárez, preteridos nos duelos anteriores por causa de suas idades (no caso dos dois primeiros) e por jogarem fora da Espanha (no caso de Suárez). Eram razões dispensáveis que só prejudicavam a Espanha.

No dia do jogo, a equipe ibérica atuou no contra-ataque, esperando a oportunidade para marcar seu gol. Na primeira etapa, só deu Irlanda, que não marcou gols por causa da atuação memorável de Pepín, goleiro do Real Betis que fazia sua estreia pela seleção justamente naquele partida. Foram várias defesas que lhe renderam na imprensa espanhola o apelido de “El héroe del Belfast”, tamanha sua contribuição para manter a meta da Fúria intacta. No segundo tempo, com o nítido cansaço irlandês, a Espanha cresceu e um passe de Del Sol encontrou Gento, que fuzilou o goleiro Hunter e marcou o gol da vitória e da classificação da equipe para as quartas de final. A Irlanda do Norte até tentou empatar, mas Rivilla, Olivella e Reija armaram um ferrolho que bloqueou toda e qualquer ofensiva rival. Foi um alívio enorme para a torcida espanhola, que fez a festa graças aos seus “velhinhos”.

Ganhando forma

Já em 1964, a Espanha entrou nas quartas de final mais uma vez com novas apostas. Ausentes de convocações anteriores, Marcelino e Lapetra voltaram ao time para o duelo contra a Irlanda, em Sevilha. Naquela partida, os ibéricos foram com uma formação bem parecida com a que seria utilizada na reta final do torneio. No gol, estava Iribar, enfim, titular. Na zaga, os ótimos Rivilla, Olivella e Calleja. No meio, Zoco e Fusté. E, no ataque, Amancio, Pereda, Marcelino, Juan Villa e Lapetra. Só Suárez ficou de fora. Mesmo sem o arquiteto, a Espanha deu show.

Com uma atuação de gala, toques artísticos e muito futebol, o time goleou a Irlanda por 5 a 1, com dois gols de Amancio, dois de Marcelino e um de Fusté. Estava mais do que claro que aquele era o time ideal. Mas que precisava de Suárez para ficar ainda melhor. Ainda reticente, Villalonga não levou o “veterano” para o duelo de volta, em Dublin, mas nem precisou. A Espanha venceu por 2 a 0, dois gols de Zaballa, que substituiu Amancio, e sacramentou o 7 a 1 no placar agregado e a classificação para a sonhada fase final, em casa. Enfim, estava na hora de “começar” a Euro. E buscar uma vaga na final.

Sob a batuta do Arquiteto

Espanha 1964
Após passe de Suárez, Pereda sobe para marcar o primeiro gol da Espanha sobre a Hungria.
 

No dia 17 de junho de 1964, pouco mais de 34 mil pessoas foram ao Santiago Bernabéu ver a semifinal entre Espanha e Hungria. Os anfitriões teriam pela frente um adversário totalmente renovado do esquadrão que encantou o planeta dez anos antes (leia mais clicando aqui), mas que havia conseguido se reinventar com o perigoso atacante Ferenc Bene, de apenas 19 anos e artilheiro dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1962 com 12 gols, Lajos Tichy e seus chutes poderosíssimos, e o maestro Flórián Albert, elegante, com visão de jogo estupenda e um dos mais notáveis jogadores da Europa na época. Além disso, a Hungria havia despachado País de Gales, Alemanha Oriental e França sem perder um jogo sequer. Sabendo disso, o técnico Villalonga não brincou com a sorte, convocou Luis Suárez e escalou o craque como titular.

A Espanha de 1964: juventude, equilíbrio e a gana por um título inédito fizeram a diferença.
 

Com a camisa 10 e inspirado, Suárez foi o grande nome da Espanha no jogo. No primeiro tempo, foi dele o passe para Pereda fazer 1 a 0 para os donos da casa. Com a bola nos pés, o arquiteto chamava a marcação, criava, passava, enfim, mostrava ao treinador que ele era o grande craque do país mesmo sendo “um veterano de 29 anos”. A Espanha perdeu várias chances de liquidar o jogo e acabou punida no segundo tempo, quando o prolífico Bene fez o empate faltando seis minutos para o fim. Com isso, teve prorrogação. Nela, Amancio brilhou e chamou a responsabilidade para si. Após tentar uma vez e ser bloqueado pelo goleiro húngaro, ele apareceu de surpresa na área após escanteio, aproveitou a sobra de Fusté e mandou a bola pro gol: 2 a 1. A Espanha estava na final. Enfim, a equipe poderia brigar por um título de peso. No entanto, quis o destino que o adversário fosse indigesto, forte e hostil: a União Soviética…

Impossível dizer não…

Franco e suas tropas: a política andava lado a lado com o esporte naquela época. Foto: Arquivo ABC (ESP).
 

Em 1960, a Espanha se recusou a ir até a União Soviética e também a receber a seleção do país em seu território por motivos políticos. Mas, em 1964, o ditador Franco se viu em uma situação inusitada. Sua Espanha iria decidir o título continental em casa, no Santiago Bernabéu lotado, justamente contra a URSS. E, pela exposição e peso que a conquista poderia trazer para seu regime, ele teve que engolir os comunistas e não intervir na decisão. Mesmo assim, muitos duvidavam que Franco fosse até o estádio no dia 21 de junho de 1964, afinal, imagine só se ele iria aceitar entregar o troféu para Valentin Ivanov, capitão soviético, em caso de título rival? Mas ele foi mesmo com esse risco iminente.

Os capitães Ivanov (URSS) e Olivella (Espanha) antes do jogo.
 

No dia do jogo, sua entrada foi apoteótica, ao lado de sua esposa, Carmen Polo, e o vice-presidente Agustín Muñoz Grandes, que esteve no comando da Divisão Espanhola de Voluntários conhecida como Divisão Azul, que combateu os russos na II Guerra Mundial. Agustín Grandes ganhou até condecoração de Adolf Hitler durante a Guerra, a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro. Nas arquibancadas, os gritos de “Franco! Franco! Franco!” expunham um aflorado clima político em pleno campo esportivo. Mesmo diante daquela situação, os jogadores espanhóis estavam confiantes.

Com a mesma base que derrotou a Hungria, era possível vencer os soviéticos, que se amparavam no talento extraordinário de seu goleiro, o lendário Lev Yashin (leia mais clicando aqui), e na frieza e precisão de seu meio de campo e ataque. Luis Suárez, em entrevista ao site da UEFA em março de 2011, comentou sobre o apoio do torcedor ao elenco espanhol.

“Os torcedores se identificavam conosco, talvez pelo fato de sermos um time muito jovem em busca de vencer alguma coisa para a Espanha. Eles nos ajudaram muito, trouxeram calma e atenuaram a pressão. Mesmo se cometêssemos um erro – por ser um time jovem, havia esse risco – os torcedores nos ajudavam. Não teve um só momento que eles nos criticaram. E isso foi muito positivo”.

Avessos à política, os espanhóis entraram no Bernabéu com mais de 79 mil pessoas (segundo relato do jornal ABC (ESP), o estádio recebeu 120 mil pessoas!) com a certeza de que poderiam fazer história.

Com raça e alma, uma taça para a eternidade

Forte pelas pontas, a Espanha concentrou suas ações ofensivas exatamente pelos lados do campo. Com velocidade e pressão no campo adversário, o time de Villalonga queria um gol antes dos dez minutos para ter certo conforto no jogo. E conseguiu. Aos 6’, Suárez fez uma linda jogada pela ponta direita, tabelou, recebeu de volta e cruzou na área para Pereda fuzilar Yashin e fazer 1 a 0 Espanha. Porém, nem deu tempo de comemorar. Dois minutos depois, Khusainov empatou para os soviéticos e deixou a torcida apreensiva. O empate fez com que o jogo tático ganhasse mais força e as defesas se sobressaíram aos ataques. Muito bem postados, zagueiros e goleiros viraram os protagonistas. Yashin parecia intransponível.

O tempo foi passando e a torcida temia uma nova prorrogação. Mas, aos 39’, veio o alívio. Suárez, de novo, deu um passe preciso na direita para Pereda. Este cruzou na área e Marcelino, ágil e muito bem colocado, mandou de cabeça a bola pro fundo do gol de Yashin, que nada pôde fazer: 2 a 1. Festa em Madrid e por toda a Espanha! Faltavam poucos minutos para o fim. Nas tribunas, Franco respirava aliviado. Ele não teria que entregar a taça aos soviéticos. Ao apito do árbitro Arthur Holland, enfim, o inimigo estava derrotado. Como diria o jornalista Manuel Vázquez Montalbán, “foi a vitória sobre o inimigo de fundo, sobre a monstruosa hidra cuja cabeça cortamos em 1939” – em alusão à Guerra Civil.

O histórico gol de Marcelino…
 
E o capitão Olivella com a taça!
 

Pela primeira vez na história, a Espanha conquistava um título no futebol. Nos oito jogos da campanha, foram seis vitórias, um empate e apenas uma derrota, com 20 gols marcados e sete sofridos. Quando Olivella ergueu o troféu, todas as decepções passadas foram enterradas. O grito de campeão, enfim, podia ecoar por todos os cantos do país. Foi a consagração de uma geração de jovens talentosos que formaram um time equilibrado, raçudo e valente. E a consagração de Suárez como um craque imortal, um símbolo do futebol espanhol e de uma geração. E, claro, a glória que tanto o governo queria, para dar-lhe sobrevida até 1975, quando Franco morreu e a Espanha se livrou da ditadura. Em 1964, a Espanha era a dona da Europa. Mas, ao contrário do que muitos pensaram, novas glórias iriam demorar décadas para voltar.

À espera da Roja do novo milênio

Em 2010, a Espanha venceu sua primeira Copa do Mundo jogando de azul…
 
…Assim como a Espanha de 1964 venceu sua primeira Eurocopa.
 

Em 1966, na Copa do Mundo, a Espanha levou toda a base campeã da Europa acrescida dos veteranos Gento, Del Sol e Peiró e viajou até a Inglaterra como uma das favoritas ao título. Porém, outra vez a Fúria foi mal. A equipe perdeu para a Argentina (2 a 1), venceu a Suíça (2 a 1), mas foi derrotada pela Alemanha (2 a 1) e caiu na primeira fase. Nos dois mundiais seguintes, nada de classificação, e, nos anos 80, nem Butragueño e companhia conseguiram fazer a Espanha campeã. O mais perto que eles chegaram foi em 1984, quando caíram na final da Eurocopa diante da França de Platini.

Nos Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, veio um alento com o Ouro Olímpico após vitória por 3 a 2 sobre a Polônia em um time com Cañizares, Ferrer, Guardiola, Kiko, Abelardo, Goicoechea e Luis Enrique. Mas só em 2008, 44 longos anos após a conquista de 1964, que a Espanha voltou a levantar uma taça: a Eurocopa, com uma nova safra de jovens talentosos que começaria a pagar com juros o tempo sem títulos da seleção. Dois anos depois, veio a sonhada Copa do Mundo. E, em 2012, outra Eurocopa, na consagração da melhor Espanha de todos os tempos, que você pode ler mais sobre clicando aqui. No entanto, a Fúria campeã da Euro de 1964 segue no coração da torcida como a pioneira, a que conseguiu derrubar um incômodo estigma e fazer do país campeão de um grande torneio de futebol. Isso tudo com um elenco jovem, cheio de personalidade e que soube jogar um futebol compacto, solidário e técnico mesmo sob adversidades, tenso clima político e contra adversários complicados. Uma seleção imortal.

 

Os personagens:

José Ángel Iribar: símbolo do Athletic Bilbao, pelo qual jogou 18 anos e disputou mais de 600 jogos, o goleiro ganhou sua primeira chance na seleção justamente na reta final da Euro, na goleada sobre a Irlanda, e conquistou de vez a titularidade. Ágil, imponente dentro da área e com a particularidade de intimidar os adversários, Iribar foi um dos maiores goleiros que a Espanha já produziu. Jogou 49 partidas pela Fúria de 1964 até 1976, incluindo a Copa do Mundo de 1966.

Vicente Traín: outro bom goleiro espanhol da época, Traín foi titular em boa parte da fase preliminar da Euro entre 1962 e 1963, mas perdeu espaço com a ascensão de Iribar. Jogou pelo Espanyol no final dos anos 50 e brilhou, também, pelo Real Madrid multicampeão espanhol no começo dos anos 60.

Pepín: foi o grande herói da classificação da Espanha sobre a Irlanda do Norte, ao defender tudo e mais um pouco no duelo fora de casa, em Belfast, logo em sua primeira partida pela seleção. Jogou, também, um amistoso com a Bélgica, mas perdeu espaço para Iribar e não jogou mais. Mesmo assim, marcou seu nome na história, e, não fosse ele, a equipe teria sucumbido muito antes da fase final.

Feliciano Rivilla: foi um dos maiores defensores espanhóis dos anos 50 e 60, muito bom na marcação e na antecipação. Fez carreira no Atlético de Madrid, pelo qual venceu três copas nacionais e um campeonato nacional. Disputou 26 jogos pela seleção, incluindo sete dos oito jogos da campanha da Espanha na caminhada da Euro de 1964.

Ferran Olivella: com excelente senso de posicionamento e grande visão de jogo, Olivella foi ídolo do Barça e soberano tanto na lateral quanto no miolo de zaga. Foi o capitão da Espanha naquela Eurocopa e se tornou um dos principais jogadores espanhóis da época. Disputou 18 jogos pela Fúria entre 1957 e 1965.

Isacio Calleja: outro bom defensor espanhol da época, Calleja podia atuar como zagueiro e também lateral-esquerdo. Fez carreira no Atlético de Madrid e disputou 13 jogos com a camisa da Fúria entre 1962 e 1972.

Severino Reija: lateral esquerdo, Reija disputou duas Copas do Mundo pela Espanha e foi outro a ser convocado diversas vezes para a Fúria na época – 24 vezes. Era muito seguro em sua posição e mantinha o equilíbrio entre defesa e ataque. Acabou perdendo a posição na reta final da Euro para Calleja, em melhor fase na época.

Ignacio Zoco: meio-campista sólido, com presença física e especialista em destruir jogadas rivais, Zoco foi um dos principais pilares do sistema defensivo da Espanha campeã da Europa. Comandava as ações no meio e ajudava a defesa com muita eficiência. Disputou 25 jogos com a seleção espanhola e esteve na Copa do Mundo de 1966. Brilhou no Real Madrid, pelo qual foi, inclusive, presidente de honra da associação de ex-jogadores do clube.

Josep Maria Fusté: foram dez anos de Barcelona, vários títulos e a fama de um dos principais meio-campistas do país nos anos 60. Era bom na marcação, mas aparecia como elemento surpresa no ataque e até marcava gols. Mesmo assim, foi convocado poucas vezes e atuou em oito jogos da Espanha na carreira.

Amancio Amaro: ídolo do Real Madrid e um dos principais nomes do time campeão da Liga dos Campeões de 1966, Amancio era a “fantasia” do futebol espanhol nos anos 60. Habilidoso, rápido e inteligente, se deslocava pelo ataque com facilidade e causava sérios problemas às zagas rivais. Além de ajudar muito na parte tática tanto da Espanha quanto do Real, Amancio marcava gols importantes e decisivos. Na carreira, disputou 42 jogos e marcou 11 gols pela Fúria. Disputou a Copa do Mundo de 1966 e marcou um gol. Foi fundamental na conquista da Euro.

Jesús María Pereda: meia oportunista e com bom chute, foi um talismã na campanha da Euro ao anotar os gols que abriram os placares para a Fúria tanto na semifinal quanto na final. Além disso, foi dele o passe para o gol do título de Marcelino, algo que durante muito tempo foi atribuído a Amancio por falta de imagens mais concretas. Disputou 15 jogos e marcou seis gols pela seleção.

Pedro Zaballa: teve uma história parecida com a do goleiro Pepín. Foi convocado apenas uma vez para a seleção, no duelo contra a Irlanda, marcou dois gols e nunca mais foi chamado. Melhor para o Barcelona, que teve o atacante por mais tempo em suas partidas pelo Campeonato Espanhol.

Marcelino Martínez: atacante perigoso e muito oportunista, Marcelino viveu tempos de ouro em 1964. Além de ter marcado o gol do título da Espanha na Euro, foi dele o gol que deu ao Zaragoza o título da Copa das Cidades com Feiras daquele mesmo ano, no triunfo por 2 a 1 sobre o Valencia. Disputou 14 jogos pela seleção e marcou quatro gols.

Enrique Collar: outro famoso atacante dos anos 50 e 60 no futebol espanhol, Collar fez história no Atlético de Madrid e conseguiu ter destaque, também, na seleção. Disputou 16 jogos e marcou cinco gols pela equipe. Na trajetória da Euro, participou de três jogos da campanha vencedora.

Luis Del Sol: meia muito habilidoso, forte, dinâmico e inteligente, foi um dos muitos craques que brilhou no Real Madrid dos anos 50. Rápido, se desvencilhava com facilidade dos adversários e abria caminho para os companheiros na frente. Com Villalonga, não teve muitas chances para mostrar seu futebol e acabou preterido na fase final da Euro. Disputou 16 jogos pela Espanha na carreira e marcou três gols, além de ter disputado as Copas de 1962 e 1966.

Luis Suárez: com ele em campo, a Espanha foi uma seleção completa, competitiva e campeã. Sem ele, dificilmente teria vencido a Hungria. E muito menos a URSS. Suárez provou naquela Euro que ainda tinha muito a demonstrar. Cerebral, era um jogador único, com habilidades raras e vencedor. Foram 32 jogos e 14 gols pela Espanha. Aqui, não há espaço para dizer o quanto ele foi importante para o futebol espanhol e para seus clubes. Leia mais sobre ele clicando aqui!

Carlos Lapetra: ponta-esquerda de muita habilidade, foi outro a brilhar no forte Zaragoza daquela época. Tinha um chute perigosíssimo e muita inteligência para construir jogadas e dar passes para os companheiros. Conseguiu conquistar o técnico Villalonga a ponto de deixar o lendário Gento de fora do time titular. Disputou 13 jogos pela Fúria e marcou um gol.

Francisco Gento: o lendário ponta multicampeão pelo Real Madrid foi sonoramente preterido pelo técnico Villalonga naquela caminhada da Euro. Jogou apenas três jogos, mas em um, fez o gol da classificação, na vitória por 1 a 0 sobre a Irlanda do Norte, em Belfast. Tudo bem que Lapetra era mais jovem, mas não escalar Gento nas fases finais foi um desrespeito. Disputou 43 jogos e marcou cinco gols pela Espanha. Leia mais sobre essa lenda clicando aqui.

José Villalonga (Técnico): já consagrado na Espanha, assumiu a seleção com a missão de levar a equipe à fase final da Eurocopa em casa. E conseguiu. Foi sofrido, ele mudou demais o time, não escalou bem em vários jogos – principalmente contra a Irlanda do Norte, o adversário que mais trouxe problemas e que quase tirou a Fúria do páreo – mas ainda sim deu a volta por cima contra a Irlanda, quando encontrou um onze ideal e não inventou mais. Pecou em não manter Gento no elenco e também em demorar para dar à Suárez o espaço que lhe era de direito. Felizmente para a Espanha o arquiteto apareceu na fase final. E decidiu. Dois anos depois, Villalonga voltou a aprontar das suas e foi um dos responsáveis pela eliminação da equipe da Copa do Mundo. Motivos? Não repetiu a escalação em um só jogo, inventou, não fez o básico que era escalar o exato time campeão europeu e voltou mais cedo para casa. Sorte que ele tinha crédito. Caso contrário, ele teria uma conversa séria com Franco…

A festa dos jogadores em campo, com Villalonga segurando a taça.
 

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