Data: 22 de junho de 1986
O que estava em jogo: uma vaga na semifinal da Copa do Mundo da FIFA de 1986.
Local: Estádio Azteca, Cidade do México, México.
Juiz: Ali Bennaceur (TUN)
Público: 114.580 pessoas
Os Times:
Argentina: Pumpido; Cuciuffo, Brown e Ruggeri; Giusti, Burruchaga (Tapia 30´do 2º T), Batista, Enrique e Olarticoechea; Maradona e Valdano. Técnico: Carlos Bilardo.
Inglaterra: Shilton; Stevens, Butcher, Fenwick e Sansom; Steven (Barnes 29´do 2o T), Hoddle, Reid (Waddle 19´do 2º T), e Hodge; Beardsley e Lineker. Técnico: Bobby Robson.
Placar: Argentina 2×1 Inglaterra (Gols: Maradona-ARG, aos 6´ e aos 10´, Lineker-ING, aos 36´do 2º T).
“La revancha de los Dioses”
Por Guilherme Diniz
Entre 02 de abril e 14 de junho de 1982, Argentina e Inglaterra travaram uma sangrenta batalha pela posse dos arquipélagos austrais das Malvinas, num conflito que ficou mundialmente conhecido como a Guerra das Malvinas. O saldo foi negativo para os sul-americanos e teve a Inglaterra como vencedora após a morte de mais de 640 soldados argentinos e outros 1068 feridos, contra 255 soldados ingleses mortos e 777 feridos. Quatro anos depois, eis que os dois países voltaram a se encontrar em uma batalha. Dessa vez, para o bem da humanidade, não haveria armas, helicópteros, aviões militares ou explosivos. Mas sim um estádio abarrotado de gente, 22 homens vestidos com as cores de seus países e uma bola que serviria para atingir um só objetivo: o gol. E foi naquele 22 de junho de 1986 que a Argentina deu o troco nos ingleses de uma maneira apoteótica e que entrou definitivamente para a história graças a um homem baixinho, marrento e com uma camisa que tinha um imenso número 10 às costas que protagonizou dois lances mágicos que sacramentaram a vitória alviceleste por 2 a 1: Diego Armando Maradona.
O meia chamou para si a responsabilidade de destruir aqueles europeus pelo orgulho da nação argentina e por tudo o que eles haviam causado quatro anos atrás. Mas Maradona não trabalhou sozinho. Ele contou com uma ajuda divina para colocar a bola para dentro do gol inglês logo no começo do segundo tempo. Minutos depois, Maradona não teve ajuda de ninguém. Foi apenas ele, sua genialidade, sua explosão, seu talento e a bola. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Meio time da Inglaterra foi driblado por Maradona. E a Copa do Mundo ganhava o seu gol mais sublime e maiúsculo para ser adorado, revisto e idolatrado para a eternidade. É hora de relembrar o jogo que teve “la mano de Dios” e “la cabeza de Dieguito”.
Pré-jogo
Não bastasse a rivalidade histórica entre argentinos e ingleses existir por causa das Malvinas, a rixa entre ambos também era visível no futebol desde 1966, na Copa do Mundo realizada na terra da Rainha. Naquele ano, as duas seleções se enfrentaram num duelo quente pelas quartas de final que terminou com várias faltas duras e a polêmica expulsão do argentino Rattín, que cansou os ouvidos do árbitro alemão Rudolf Kreitlein com palavrões e impropérios e demorou uma barbaridade para sair do gramado por exigir um tradutor em campo, a fim de entender o porquê de sua expulsão. Na saída do gramado, o jogador ainda zombou da bandeira inglesa no escanteio e sentou no tapete vermelho exclusivo da Rainha.
A partir dali, os ingleses sempre trataram os argentinos como “animais” e “selvagens”, com a recíproca de “racistas” e “ladrões” dos argentinos. Na Copa de 1986, as seleções chegavam às quartas de final em situações opostas. A Argentina vinha de boas partidas e sem sustos na primeira fase com vitórias sobre Coreia do Sul (3 a 1) e Bulgária (2 a 0) e empate em 1 a 1 contra a então campeã Itália. Nas oitavas de final, os alvicelestes bateram o rival Uruguai por 1 a 0 e se garantiram entre os oito melhores do Mundial.
Já a Inglaterra começou com o pé esquerdo ao ser derrotada por 1 a 0 para Portugal e empatar sem gols contra o Marrocos. Só na última e decisiva partida da fase de grupos que os ingleses conheceram o sabor da vitória graças ao talento de Gary Lineker, que marcou os três gols do triunfo sobre a Polônia por 3 a 0. Nas oitavas de final, Lineker foi mais uma vez decisivo e marcou dois gols na vitória por 3 a 0 sobre o Paraguai. Com o choque confirmado entre argentinos e ingleses, a comissão organizadora da Copa e o governo mexicano trataram de reforçar a segurança do estádio Azteca antes, durante e depois do jogo.
Dezenas de militares foram escalados para garantir a proteção dos mais de 110 mil torcedores dentro e fora do estádio. O duelo dominava as manchetes dos jornais argentinos e britânicos há uma semana e a gana pela vitória era maior, claro, do lado sul-americano, afinal, o jogo era o primeiro contra os ingleses desde a fatídica guerra e os nacionalistas viam como oportunidade única a revanche diante dos europeus. Por tudo isso, é de se imaginar o estado de espírito que a Argentina entrou em campo. Principalmente o craque do time: Maradona.
Com os times perfilados em campo para a execução dos hinos, era visível a concentração do camisa 10 e seu olhar de repulsa aos ingleses. O baixinho levava consigo a necessidade e o fervor de derrotar aqueles “branquelos” e continuar seu projeto de ser campeão do mundo e mostrar de uma vez por todas que ele era o melhor jogador do planeta na época. Só uma atuação de gala e uma vitória poderiam ajudar Maradona em tudo aquilo. E ele estava mais do que pronto para a partida de sua vida.
Primeiro tempo – A angústia pelo gol
Embora o clima fosse de tensão e também de beleza pelo público contagiante no ensolarado Azteca, os jogadores começaram a partida sem faltas ríspidas ou provocações, com a Argentina mantendo a posse de bola e dominando as ações iniciais. Maradona iniciou suas jogadas de efeito e velocidade aos nove minutos, quando passou por dois marcadores e só não passou pelo terceiro, Fenwick, porque este fez falta e foi advertido com um cartão amarelo logo de cara. Nos minutos seguintes, Beardsley teve duas chances para marcar, mas Pumpido se saiu bem em ambas.
Aos poucos, o craque e capitão argentino mostrava seu talento fora de série ao construir jogadas mesmo sendo marcado sempre por dois ingleses. Rápido, esguio e no auge da forma, Maradona era um virtuose com a bola nos pés e só era impedido de alcançar seus objetivos com faltas, que começaram a pipocar perto da área inglesa. E foi em uma cobrança de falta que o camisa 10 quase abriu o placar, mas a bola passou rente a trave esquerda de Shilton.
Sedento pelo gol e pelo protagonismo da partida, Maradona ainda chamou a atenção de todos por causa de um desentendimento com o bandeirinha em uma cobrança de escanteio, aos 34´. Antes de partir para o chute, o argentino tirou a bandeirinha do buraco e foi repreendido pelo bandeira costa-riquenho. Maradona foi obrigado a colocar o mastro no lugar e o fez. No entanto, faltava a flâmula, que continuava caída no chão. Após nova bronca, o camisa 10 pegou o pano e o colocou do jeito que deu no mastro. Resolvido o “problema”, o jogo seguiu, a tal cobrança não levou perigo aos ingleses e o primeiro tempo terminou mesmo sem gols. Mas ainda restavam 45 minutos.
Segundo tempo – A mão e a obra-prima
Se durante 45 minutos a Argentina não conseguiu balançar as redes inglesas, foram necessários apenas dez minutos para que o placar do estádio Azteca mostrasse 2 a 0 para os alvicelestes. Mas os números eram apenas simbólicos pelo que o público – e o mundo – tinha acabado de ver. Aos seis minutos, Maradona recebeu na esquerda, passou pelo primeiro, se enfiou no meio de dois e deixou na entrada da área para Valdano. O atacante tentou a devolução, mas o inglês Fenwick interceptou e chutou a bola para o alto. No entanto, a redonda foi ao encontro do goleiro Shilton, grandalhão, que viu a chegada de Maradona. Com 1,83m, o camisa 1 nem pulou muito diante dos 1,65m de Maradona. Mas o argentino usou de um artifício bem peculiar para empurrar a bola para dentro do gol: o punho fechado e forte que socou a bola de uma maneira única que não deixou o árbitro tunisiano Ali Bennaceur, quatro metros fora da área, perceber o truque.
Maradona saiu comemorando timidamente e de olho no juiz. Ele percebeu que ninguém de seu time veio ao seu encontro e chamou os colegas: “Vamos, me abracem, ou o árbitro não vai validar o gol!”. De nada adiantou a reclamação dos ingleses. Nem os berros e pulos de Shilton. Era gol. O gol com um pouco da cabeça de Maradona e outro pouco com “La mano de Dios”, como ficou amplamente conhecido aquele tento argentino. Indo de volta para seu campo, o camisa 10 erguia com orgulho a mão fechada que havia acabado de fazer história.
Os ânimos ingleses ficaram mais exaltados após o polêmico gol e a partida tinha tudo para ficar emocionante. Mas Maradona não iria deixar os ingleses gostarem do jogo ou marcar um gol de empate. Ele precisava marcar mais um para não deixar dúvidas naquele público que olhava para ele meio ressabiado como quem diz “pô, de mão até eu faço!”. Com pouco mais de nove minutos do segundo tempo, o camisa 10 iniciou o lance que não teria ajudinha divina alguma. Apenas o talento e genialidade do baixinho. Ainda uns cinco metros dentro do campo argentino, Maradona deu um rápido giro de corpo e se livrou de uma só vez de Reid e Beardsley. Com um ligeiro toque, a bola correu e Maradona foi atrás como um foguete em direção à área inglesa. No meio do caminho, Butcher foi despistado com facilidade, Fenwick ficou para trás com um corte cruel e o argentino chegou à área inglesa.
Nela, Shilton foi driblado, Fenwick ainda tentou um carrinho, mas Maradona tocou para o gol antes de ser derrubado. Gol. Golaço. Obra de arte. Fascínio puro pela arte. Em apenas 10 segundos, Maradona percorreu 60 metros e construiu seu mais belo e estupendo gol. Mas os 10 segundos pareceram bem menos de tão exuberante que foi a jogada. O relógio deveria parar. O público deveria pagar ingresso novamente. Os ingleses deveriam aplaudir. Era o gol da Copa. E das Copas. Ninguém, sozinho, jamais havia feito semelhante beleza. Nem Pelé. Nem Gerd Müller. Nem Cruyff. Nem Garrincha. O gol do século das Copas era de Diego Armando Maradona.
Com 2 a 0 no placar, a Argentina passou a jogar com mais precaução na defesa e a Inglaterra dominou as ações ofensivas. Na base do chuveirinho, bolas e mais bolas eram alçadas na área portenha, mas Pumpido ou os zagueiros sempre cortavam. Hoddle cobrou uma falta perigosa que exigiu ótima defesa do goleiro argentino. Aos 31´, o técnico Bobby Robson colocou a Inglaterra totalmente no ataque ao trocar Steven pelo jovem e habilidoso Barnes. O ponta rapidamente mostrou a que veio e, aos 36´, fez uma boa jogada pela esquerda e cruzou na medida para Lineker diminuir a desvantagem e anotar seu sexto gol na Copa, além de aparecer pela primeira vez no jogo depois de ser marcado de maneira implacável e impecável pela zaga argentina. Faltavam quase dez minutos para o fim do jogo e era hora do tudo ou nada.
Logo na saída de bola, Maradona tratou de aparecer de novo ao entortar mais alguns ingleses com seus toques rápidos e deixar Tapia com uma ótima oportunidade para marcar. No chute, o atacante acertou a trave direita de Shilton e por pouco não ampliou para 3 a 1. No finalzinho, Barnes, sempre pela esquerda, tentou repetir a jogada do primeiro gol e cruzou na medida para Lineker, que só não marcou o gol de empate porque Brown cortou milésimos de segundos antes da chegada do camisa 10 inglês. Aquela seria a última chance inglesa. Com o apito final do árbitro, a Argentina estava classificada. E vingada, na bola, do desastre bélico de quatro anos atrás. Em entrevista ao The Guardian, em 2002, o célebre jogador argentino Roberto Perfumo definiu bem a razão de vencer a Inglaterra para os argentinos:
“Em 1986, vencer aquele jogo contra a Inglaterra era o suficiente. Vencer a Copa do Mundo era secundário para nós. Bater a Inglaterra era nosso verdadeiro objetivo”. – Roberto Perfumo, em entrevista ao The Guardian, maio de 2002.
O fato é que a batalha futebolística de 22 de junho de 1986 foi vencida pelos sul-americanos, que fizeram justiça com os próprios pés, uma mão divina e um Dios dentro de campo: Maradona, eterno como aquele jogo.
Pós-jogo – o que aconteceu depois?
Argentina: após a desforra épica contra os ingleses, os argentinos foram embalados para a semifinal e derrotaram a Bélgica por 2 a 0, com mais dois gols de Maradona, e fizeram a final da Copa contra a Alemanha. Novamente num estádio Azteca lotado, os sul-americanos abriram 2 a 0, sofreram o empate, mas Maradona deu o passe para Burruchaga fazer o gol do título e da vitória por 3 a 2. A Argentina foi bicampeã do mundo e Maradona ganhou definitivamente seu lugar entre os imortais do futebol. Anos depois, na Copa do Mundo de 1998, o destino colocou a Inglaterra outra vez no caminho argentino, dessa vez nas oitavas de final. O duelo foi eletrizante e terminou empatado em 2 a 2 (leia mais clicando aqui!). Porém, naquele jogo, um baixinho inglês ousou em marcar um gol épico arrancando do meio de campo como fizera Maradona em 1986. Mas ele era apenas Owen, e não Maradona. Nos pênaltis, a Argentina venceu por 4 a 3 e se classificou para as quartas de final, quando foi derrotada pela Holanda de Bergkamp.
Inglaterra: a geração inglesa da Copa de 1986 teve uma segunda chance de buscar o título mundial quatro anos depois, na Itália. Porém, na semifinal, a Alemanha bateu o English Team nos pênaltis e fez a final contra a Argentina, de Maradona. Sentados no sofá, os ingleses celebraram como nunca o triunfo alemão por 1 a 0 e tiveram uma doce sensação naquele ano. Em 1998, num novo duelo contra os rivais argentinos em uma Copa do Mundo, os ingleses resolveram revidar a derrota de 1986 com dois gols “à la Argentina”. No primeiro, Owen cavou um pênalti e Shearer marcou. No segundo, Owen arrancou do meio de campo, se desvencilhou dos marcadores argentinos e marcou um gol antológico. Mas o jogo seguiu disputado e os argentinos tiveram forças para empatar e vencer nos pênaltis. Em 2002, acredite, os rivais voltaram a se enfrentar, agora na primeira fase. Três revezes seguidos seria demais para o English Team, mas eles espantaram a zica e venceram por 1 a 0, gol de Beckham, de pênalti. Não bastasse a vitória, na rodada seguinte a Argentina foi eliminada e a Inglaterra seguiu na Copa. Ah, o sabor da revanche…
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O povo e a imprensa argentina sempre diz que o segundo gol de Maradona nesse jogo, foi o maior momento da história do futebol do país, maior que o apito final contra a Holanda em 78, quando eles venceram a Copa em casa. A jogada é tão espetacular, tão antológica, que eu fico tonto só de apreciar. Ele entortou meia dúzia de ingleses e deu o recado: “no primeiro gol foi na malandragem, nesse foi porque eu sou melhor que todos vocês juntos”. Absurdo. Hoje que ele já não está entre nós, peço a Deus que o tenha em bom lugar.