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Flamengo x Fluminense – O poético Fla-Flu

 

Por Guilherme Diniz

Atualizado 2024

A rixa: naquela primeira década do século XX, os atletas do remo do Flamengo já disputavam as atenções das garotas do Rio com os homens que praticavam futebol no Fluminense. Eram os esportes da moda, com o futebol crescendo em popularidade de maneira assídua. Foi então que, em 1911, uma briga entre os jogadores do time titular do Flu provocou uma dissidência. Os rebeldes queriam ir para o Botafogo, mas a grande rivalidade entre tricolores e alvinegros na época impediu o acordo. Foi então que surgiu a ideia de formar um time de futebol dentro do Flamengo. E ela foi aprovada. Da vértebra de um nascia a coluna do outro. Um filho não reconhecido pelo pai. E, logo no primeiro embate entre ambos, mesmo desfalcado de seus titulares do ano anterior, foi o Fluminense quem venceu o primeiro jogo contra o recém-criado Flamengo, em julho de 1912, por 3 a 2. Estava consumado o clássico Fla-Flu. O mais charmoso e poético do futebol brasileiro e mundial.

Quando começou: no dia 07 de julho de 1912, na vitória do Fluminense sobre o Flamengo por 3 a 2.

Maior artilheiro: Zico (Flamengo): 19 gols

Quem mais venceu: Flamengo – 164 vitórias (até março / 2024). O Fluminense venceu 141. Foram 145 empates.

Maiores goleadas: Flamengo 7×0 Fluminense, 10 de junho de 1945

Flamengo 6×3 Fluminense, 03 de agosto de 1913

Flamengo 6×1 Fluminense, 22 de outubro de 1944

Fluminense 5×1 Flamengo, 24 de março de 1943

Fluminense 5×2 Flamengo, 06 de janeiro de 1949

Fluminense 4×0 Flamengo, 21 de dezembro de 1919

 

Eles não fazem o clássico de maior rivalidade do Brasil. Fato. Não tem aquela ira toda como vemos em outros clássicos pelo mundo. Mas não existe no planeta um duelo tão famoso, tão romântico, tão poético, tão fonético, tão colorido e com tantas histórias e lendas como o Fla x Flu. É o clássico sinônimo de Brasil. Sinônimo de Maracanã. De gols. Goleadas. Hegemonias. De carrascos. De cantos. De filmes e documentários. De dramaturgia. Um duelo que atravessou um século. Forjado na bola e no remo. Que detém o recorde de público pagante em um jogo de clubes na história do futebol. Patrimônio imaterial do Rio de Janeiro. Que começou “40 minutos antes do nada”, como dizia Nelson Rodrigues, tricolor de coração, irmão de Mário Filho, rubro-negro de carteirinha e que dá seu nome ao Maracanã. De fato, eles nasceram para moldar o futebol-poesia do Brasil. É hora de conhecer essa história.

 

A dissidência com consequência

O Flu campeão de 1911. Píndaro, Baena e Nery; Orlando, Lawrence, Amarante e Galo; Oswaldo Gomes, Borgerth, Gustavo e Calvert.

 

O Flamengo nasceu antes do Fluminense, em 1895, mas como clube de regatas para a prática do remo, esporte mais popular do Rio de Janeiro naquele fim de século XIX. Sete anos depois, em 1902, nascia nas Laranjeiras o Fluminense Football Club, em caminho contrário à moda da época e voltado para a prática do esporte que começava a se popularizar não só no estado, mas em todo Brasil: o futebol. Curiosamente, a partir daquele ano, os sócios do Flamengo iam até o Flu acompanhar o futebol e os do Flu iam até o Fla acompanhar as regatas. Algo muito comum entre os frequentadores era remar pelo Flamengo no período da manhã e jogar futebol de tarde pelo Fluminense. Um exemplo? Alberto Borgerth, que começou a remar pelo Flamengo em 1906, passou pelos juvenis do Flu e chegou ao time profissional do tricolor em 1911.

Mas foi exatamente em 1911 que tudo desandou. Um briga interna entre jogadores e dirigentes do Fluminense acabou provocando a dissidência de nove atletas titulares do tricolor. A desavença aconteceu por causa de um lugar no chamado Ground Committeé, uma espécie de comissão que avaliava a escalação dos jogadores que entravam em campo nos jogos do clube. Oswaldo Gomes e Alair Nunes eram os candidatos a ocupar os postos deixados por Ernesto Paranhos e Haroldo Cox. No dia da eleição, um candidato da oposição apareceu – Joaquim Guimarães – e a votação terminou empatada com 15 votos para cada lado. A assembleia decidiu então declarar vencedor o candidato mais velho, no caso, Gomes, que acabou eleito.

No entanto, ele não aceitou por entender que tal assunto deveria ser resolvido em outra assembleia. Nas vésperas de uma partida contra o Rio Cricket, em setembro, a tal comissão se reuniu e escalou o time. Mas Borgerth sugeriu que os jogadores fossem consultados antes, gerando os primeiros atritos sobre a real influência do Ground Committeé. Para acirrar ainda mais a situação, os rebeldes queriam que a escalação fosse mudada: Guimarães no lugar de Gomes e Borgerth (que era titular e foi sacado do duelo contra o Rio Cricket) no lugar de Paranhos. A comissão não deu ouvidos aos opositores, manteve a escalação e o Flu venceu por 5 a 0, caminhando firme rumo a mais um título carioca invicto.

 

Mesmo sob grande fase – já eram cinco títulos estaduais na galeria de troféus (1906, 1907, 1908, 1909 e 1911) -, no dia 03 de outubro de 1911, os seguintes jogadores da oposição se desligaram do Fluminense: Alberto Borgerth, Othon Baena, Píndaro de Carvalho Rodrigues, Emmanuel Nery, Ernesto Amarante, Armando de Almeida, Orlando Mattos, Gustavo de Carvalho e Lawrence Andrews (algumas fontes citam também Arnaldo Machado Guimarães). A ideia inicial era migrar para o futebol do Botafogo, porém, o alvinegro nutria uma grande rivalidade com o Fluminense na época e a ideia foi descartada. A outra opção era o Paissandu, no Leblon, mas o clube dava preferência aos jogadores ingleses. Foi então que o Flamengo surgiu. Por que não agregar ao clube um departamento de futebol? Os ex-tricolores foram até o rubro-negro e, após algumas reuniões, foram aceitos no dia 08 de novembro de 1911 para depois, em uma assembleia realizada no dia 24 de dezembro de 1911, ser oficializado o futebol no Flamengo.

O primeiro Fla-Flu, em 1912.

 

Ainda sob um clima amistoso com o Tricolor, o Flamengo mandava seus jogos no campo do Fluminense, pois não tinha um lugar próprio na época. E, depois de estrear com uma goleada de 15 a 2 sobre o Mangueira, jogando na Tijuca, não demorou muito para o novato time de futebol rubro-negro enfrentar seu “parente de sangue”. No dia 07 de julho de 1912, Flamengo e Fluminense se encontraram pelo Campeonato Carioca, nas Laranjeiras. O Fla vinha de bons resultados, apenas um tropeço para o Paissandu (que seria o campeão daquele ano) e ostentava os campeões tricolores do ano anterior. Já o Flu passava por um momento de reconstrução, escalando os jogadores que eram outrora reservas e apenas dois titulares do título de 1911: Gomes e Calvert. Com isso, o favoritismo era todo do Flamengo. Diziam até que o rubro-negro iria golear.

Mas, quando a bola rolou, o misticismo do sobrenatural apareceu. Calvert marcou o primeiro gol da história do clássico, com apenas um minuto de jogo. Arnaldo empatou, mas Calvert fez o segundo do Flu. Píndaro, outrora tricolor, empatou para o Fla. Até que Barthô decretou a vitória por 3 a 2 do Fluminense faltando oito minutos para o fim do jogo. Foi uma surpresa geral. Os então campeões que vestiam o vermelho e preto perdiam para os reservas em verde, branco e grená. A derrota doeu até as profundezas das almas daqueles rubro-negros. Do lado tricolor, ficava o sorriso sarcástico, o ar da soberania, o deboche. Nascia a rivalidade. Mas o batismo “Fla-Flu” ainda demoraria algumas décadas…

 

Nasce o Fla-Flu

Após a inesperada derrota, o Flamengo se impôs perante o rival e ficou 11 jogos sem perder, com oito vitórias – sendo sete seguidas (!) – e três empates entre outubro de 1912 e agosto de 1916. Nesse período, o rubro-negro foi bicampeão carioca (1914/1915) e goleou o tricolor em três oportunidades: 4 a 0 (em 1912), 6 a 3 (em 1913) e 5 a 0 (1915). Aquela série invicta, a maior da história do Fla no confronto, só foi encerrada em 08 de dezembro de 1916, na vitória do Flu por 3 a 1, em jogo remarcado após a primeira polêmica do clássico. Em outubro daquele ano, o Flamengo vencera o Fluminense por 3 a 2 após o árbitro marcar um pênalti inexistente a favor do Fla. Riemer bateu e chutou para fora. Tempo depois, o juiz anotou outro pênalti equivocadamente para o rubro-negro. O goleiro tricolor defendeu, mas o juiz mandou voltar. O Fla bateu de novo, acertou, mas a torcida tricolor, enfurecida, invadiu o campo e a partida foi adiada.

Em 1919, os rivais fizeram o primeiro jogo decisivo entre ambos. O Flamengo precisava de um empate para ser campeão. Já o Flu necessitava da vitória e de uma combinação de resultados. Com uma grande atuação coletiva, o Tricolor goleou o Fla por 4 a 0 e ficou com a taça. O destaque ficou por conta do lendário goleiro Marcos Carneiro de Mendonça, que fez três defesas seguidas após espalmar um pênalti, defender o rebote e outro chute na sequência quando o placar estava 0 a 0. Eram tempos de Henry Welfare, artilheiro do Flu na época, e também de Oswaldo Gomes, ainda remanescente de 1911 e um dos que se recusaram a ir para o Fla na “rebelião” daquele ano. Gomes faturou oito títulos estaduais com o Flu, um recorde não só no clube, mas também no Rio.

Romeu deixa os rivais no chão: craque do Flu nas primeiras décadas do clássico. Foto: Arquivo / Trivela.

 

Nos anos 1920 e 1930, a desorganização do futebol carioca minguou um pouco a realização de jogos entre os rivais, que chegaram a disputar ligas diferentes em 1933. Mesmo assim, os rivais protagonizaram grandes histórias. Em 1925, um combinado de jogadores do Flamengo e do Fluminense representou a equipe do Rio no Campeonato de Seleções, gerando inveja dos outros clubes do estado. Tal fato acabou criando a expressão “combinado Fla-Flu”, que inspirou o jornalista Mário Filho a criar o nome do clássico: Fla-Flu. Ele e o irmão, Nelson Rodrigues, começaram a partir daquela época a popularizar ainda mais o clássico com suas crônicas nos jornais do Rio. Torcedores de Fla (Mário) e Flu (Nelson), eles eram a representação máxima dos clubes e invadiram o imaginário do torcedor com frases e histórias inesquecíveis.

Nelson Rodrigues e Mário Filho, fundamentais para o lado romântico do Fla-Flu. Foto: Globoesporte.com

 

A partir do final dos anos 30 e início dos anos 40 o clássico tomou conta do Rio pelo fato de ambos os clubes viverem grande fase, terem dinheiro para contratar jogadores de ponta e disputar títulos no recém profissionalizado futebol carioca. Romeu, Hércules, Tim, Pedro Amorim e Sandro, do lado do Flu, e Leônidas, Domingos Da Guia, Fausto, Zizinho e Waldemar de Brito, do lado do Fla, foram alguns dos nomes que ajudaram a engrandecer ainda mais tricolores e rubro-negros. Em 1938, a Gávea, casa do Fla, recebeu o primeiro Fla-Flu de sua história, que terminou com vitória tricolor por 2 a 0, gols de Romeu e Sandro, resultado que embalou o Flu ao tricampeonato estadual. Em 1939, o Flu tentava o tetra, mas uma derrota para o Flamengo por 2 a 1 em São Januário ajudou o rubro-negro a ficar com a taça. Como no ano seguinte o Flu foi campeão, o Mengão impediu não só o tetra, mas também um penta do Flu. O Tricolor venceu cinco títulos em seis anos (1936, 1937, 1938, 1940 e 1941), mas com a quebra de 1939 por culpa do Fla. Naquele período, o Flu construiu sua maior série sem derrotas para o rival: 12 jogos (oito vitórias e quatro empates), entre outubro de 1936 e setembro de 1938.

Em 1941, aconteceu o lendário “Fla-Flu da Lagoa”, quando o Fluminense foi campeão estadual após empate em 2 a 2 com o rival. O fato curioso daquele jogo é que como o Flu jogava pelo empate, os atletas tricolores começaram a chutar as bolas na Lagoa Rodrigo de Freitas (próxima ao estádio da Gávea) só para gastar o tempo e segurar o placar. Os remadores do Flamengo foram até a lagoa buscar as bolas de maneira desesperada, faltando cinco minutos para o fim, mas o esforço não adiantou. Surreal!

O Fla-Flu da Lagoa é um dos mais lendários da história…

 

Entre 1942 e 1944, o Flamengo construiu seu primeiro tricampeonato estadual com direito a uma goleada de 6 a 1 sobre o rival, em 1944. Um ano depois, o rubro-negro aplicou a maior goleada da história do clássico: 7 a 0, com quatro gols de Pirillo, dois de Tião e um de Adílson. No final daquela década, com a crescente hegemonia do Vasco da Gama, o Flu ainda conseguiu brilhar em 1946, quando Ademir de Menezes chegou ao Tricolor e ajudou o técnico Gentil Cardoso a cumprir a promessa que havia feito à diretoria: “Deem-me Ademir que lhes darei o título”. O craque marcou cinco gols em Fla-Flus, incluindo dois na vitória por 3 a 1 em junho de 1946. No quadrangular decisivo, o Flu ainda bateu o Fla por 4 a 1. Em 1949, aconteceu o último jogo nas Laranjeiras (palco mais utilizado na história do clássico até aquele ano) da primeira metade do século. O Flu venceu por 2 a 1. Era ao fim de uma época. A partir de 1950, o clássico ganharia proporções épicas, gigantes e históricas com a construção de um verdadeiro colosso de concreto…

 

Era Maracanã

Fla-Flu de 1963: maior público da história do clássico.

 

A realização da Copa do Mundo de 1950 no Brasil estimulou a construção do estádio do Maracanã, cuja história já foi contada aqui no Imortais. E, no “maior do mundo”, o Fla-Flu começou a escrever laureados e inesquecíveis capítulos. O primeiro foi em 22 de outubro de 1950, quando o Fluminense venceu o Flamengo por 2 a 1, com gols de Carlyle e Silas. Na época, o Flu tinha grandes nomes como Castilho, Telê Santana, Didi e Orlando, artífices do time campeão estadual de 1951. Mas a farra durou pouco, pois o Flamengo emendou um tricampeonato estadual de 1953 até 1955 com o famoso Rolo Compressor formado, entre vários craques, por jogadores como Jordan, Joel, Evaristo, Dida e Zagallo. Entre 1951 e 1955, o Fla inclusive venceu 11 jogos, empatou três e perdeu apenas cinco dos 19 jogos disputados no período.

Em dezembro de 1955, um jogo ficou marcado para sempre e rendeu inúmeras gozações. O goleiro Veludo, do Fluminense, substituiu Castilho na meta tricolor. O Flamengo goleou por 6 a 1, com três gols de Paulinho, dois de Dida e um de Joel, e o arqueiro tricolor foi culpado por ter falhado em três dos seis tentos do Fla. Resultado? Ele foi demitido do clube. E pior: oito dos 11 titulares daquele jogo foram multados pela diretoria em 20% dos salários, entre eles Pinheiro, Telê Santana, Didi e Waldo! De fato, perder um clássico causa sérias consequências…

No dia 15 de dezembro de 1963, o Fla-Flu entrou para o livro dos recordes. Em um jogo que valia o título carioca, 194.603 pessoas, sendo 177.020 pagantes, fizeram do clássico o jogo com maior número de pessoas em uma partida de clubes em todos os tempos. Claro que existe o jogo entre Bolton e West Ham em Wembley, cuja lenda decreta quase 300 mil pessoas (leia mais sobre essa incrível história clicando aqui!), mas o clássico entre tricolores e rubro-negros é o dono do recorde. A massa que se espremeu no Maracanã viu um empate sem gols que deu o título ao Flamengo, em uma partida onde o público foi o maior protagonista do espetáculo. Quase 20% de toda a população do Estado da Guanabara na época estava no Maracanã naquele dia. Era simplesmente impressionante! Nelson Rodrigues, claro, não deixou de escrever sobre essa epopeia protagonizada pelas torcidas de Fla e Flu em sua crônica “Continuo Tricolor”, reproduzida no jornal O Globo em 17 de dezembro de 1963:

 

“Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um campeão oficial, que é o Flamengo. E aqui, abro um capítulo para falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À saída do estádio, eu vi um crioulão arrancar a camisa diante do meu carro. Seminu, como um São Sebastião, ele dava arrancos medonhos. Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão.

 

Mesmo que eu fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Eu não sei se o time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a patética, a abnegada torcida rubro-negra merece muito mais. Cabe então a pergunta: – quem será o personagem da semana de um abnegado Fla-Flu tão dramático para nós? Um nome me parece obrigatório: – Marcial. E nessa escolha, está dito tudo. Quando o goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o adversário jogou melhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o gol que Escurinho não fez. Tão pouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na trave. Assim mesmo Marcial andou fazendo intervenções decisivas, catando bolas quase perdidas.

Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que o profeta só pode responder: – “Pior para os fatos!” É só”.

 

Aquele e muitos outros clássicos deram momentaneamente o apelido de Clássico das Multidões ao Fla-Flu. No entanto, a enorme diferença de torcida entre Flamengo e Fluminense – em algumas partidas, a massa rubro-negra era 70% contra apenas 30% do Flu -, acabou minando esse apelido. Mário Filho até dizia: “Por que o Flamengo tornou-se o clube mais amado do Brasil? Porque o Flamengo se deixa amar à vontade”. Por isso, o embate entre ambos é sempre a “maior torcida” contra a “melhor torcida”. O “povo” contra a “elite”. Ainda naquela década, o Fla-Flu foi palco de jogos conturbados e polêmicos. Primeiro em 1966, quando Almir Pernambuquinho, do Fla, acertou uma cabeçada em Oliveira, do Flu, sem o juiz ver. Denílson, o “Rei Zulu”, decidiu revidar em prol do amigo e acertou o flamenguista, mas isso na frente do juiz. Ele foi expulso.

Tempo depois, Bauer, do Flu, também levou vermelho. Com nove jogadores, o Flu foi presa fácil para o Fla e perdeu por 2 a 0. Em 1968, o troco tricolor veio com juros. Em duelo válido pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa – embrião do Campeonato Brasileiro – o tricolor Wilton marcou o gol da vitória do Flu por 1 a 0. Até aí tudo bem. Só que o tal gol teve uma clara ajuda da mão do jogador, que deu um soco na bola para tirar do goleiro e ficou com o gol escancarado à sua frente para marcar. Para piorar, as fotos da Agência O Globo comprovaram o “ato ilícito”. O juiz Armando Marques e seus auxiliares não viram nada e, mesmo sob os protestos, validaram o gol.

O tapinha de Wilton…

 

Claudio Garcia chuta a bola na decisão de 1969: Flu campeão. Foto: Arquivo / Cedoc.

 

Em 1969, o Flu conseguiu a desforra sobre o rival na final do Carioca com mais de 171 mil pagantes no Maracanã em um jogaço. Wilton abriu o placar para o Flu, mas Liminha empatou. Claudio fez mais um e o goleiro flamenguista foi protestar alegando impedimento e recebeu cartão vermelho. Mesmo com dez jogadores, o Flamengo empatou com Dionísio, mas Flávio Minuano fez o terceiro gol que sacramentou o título carioca do Tricolor, comandado na época por Telê Santana e com nomes em campo como Félix, Marco Antônio, Lula e Cafuringa.

 

Da Máquina aos tempos de Zico e Assis

A Máquina Tricolor de 1976. Em pé: Renato, Carlos Alberto Pintinho, Carlos Alberto Torres, Edinho, Rubens Galaxe e Rodrigues Neto. Agachados: Gil, Cléber, Doval, Rivellino e Dirceu.

 

Em 1972, o Flamengo conquistou mais uma taça em cima do Flu, em clássico disputado em 07 de setembro daquele ano, dia em que o Brasil celebrava os 150 anos da independência. No ano seguinte, o troco do Flu veio com o título após vitória por 4 a 2, com show de Manfrini, autor de dois gols. A partir de 1975, o Fluminense começou a montar um grande elenco que ficaria conhecido como Máquina Tricolor, recheado de craques como Rivellino, Gil, Edinho, Carlos Alberto, Pintinho entre outros. O Tricolor foi bicampeão carioca em 1975 e 1976 e por pouco não decidiu os Campeonatos Brasileiros daqueles anos – caiu diante do Inter de Falcão, em 1975, e do Corinthians e sua torcida, em 1976.

Zico, maior carrasco dos Fla-Flus. Foto: Gazeta Press.

 

Embora fosse o time mais temido do estado na época, o Flu venceu o rival apenas três vezes entre janeiro de 1974 e novembro de 1976. O Flamengo não deixava barato e provava ser o principal antídoto contra os tricolores. Os duelos eram cheios de equilíbrio e provavam que em Fla-Flu nunca existe favorito. Prova disso foram os seis empates registrados entre novembro de 1974 e novembro de 1976 e as duas vitórias do Fla por 2 a 1 em 1975 e os 4 a 1 de março de 1976, com quatro gols de um certo Zico… Falando no Galinho, ele se transformou, ano após ano, no maior carrasco do Fluminense na história do Fla-Flu, capaz de levar torcedores a pedir clemência e piedade – certa vez, um tricolor invadiu o gramado e se ajoelhou ao jogador para que ele não marcasse gol em seu time (!). Zico fez 19 gols no clássico e é até hoje insuperável na história do Fla-Flu. Nos 4 a 1 de 1976, o Jornal dos Sports estampou “Zicovardia” na manchete.

No começo dos anos 80, o Flamengo assumiu o protagonismo no Rio e no Brasil com seu mais lendário esquadrão. Raul, Leandro, Mozer, Júnior, Andrade, Adílio, Tita, Zico e Nunes eram algumas das estrelas que compunham um elenco formidável que seria tricampeão brasileiro, campeão da Libertadores e campeão mundial. Maaaas, sabe como é, em clássico não tem favorito. Você acha que o Flamengo venceu todos os estaduais da época? Não.

Entre 1983 e 1985, o Flu emendou um tricampeonato e ainda faturou o Campeonato Brasileiro de 1984. Em 1983, a torcida foi ao delírio quando Assis marcou o gol no finalzinho do jogo que sacramentou o título estadual daquele ano. No ano seguinte, mais de 150 mil pessoas viram outra decisão entre Fla e Flu e outro show de Assis. Ele deixou o seu na vitória por 2 a 1, no dia 1º de dezembro, e outro na vitória por 1 a 0 do dia 16 de dezembro. Flu campeão de novo. Nascia de vez o bordão “recordar é viver, Assis acabou com você”, cantado e repetido por anos pelos tricolores.

O Flamengo de 1981 – Em pé: Leandro, Raul, Mozer, Figueiredo, Andrade e Júnior. Agachados: Lico, Adílio, Nunes, Zico e Tita.

 

Assis marca o seu gol em 1983. Foto: Agência O Dia.

 

Assis, terror dos flamenguistas nos anos 80.

 

Em 1986, Zico estava de volta ao Flamengo e disputou um Fla-Flu no dia 16 de fevereiro. A torcida tricolor pegou no pé do Galinho gritando “bichado, bichado”, em alusão à suposta condição física do meia. Péssima atitude daquela gente… Zico se enervou e marcou três gols: um de cabeça, um de falta e um de pênalti na goleada de 4 a 1 do Mengo sobre o rival. Três anos depois, a despedida do craque do Flamengo também foi em um Fla-Flu. E ele também deixou o seu na goleada de 5 a 0 sobre o Tricolor em Juiz de Fora (MG). Naquela década de 80, embora tenha perdido as finais de 1983 e 1984, o Fla teve mais vitórias do que o rival. Entre julho de 1980 e abril de 1990, foram 13 vitórias rubro-negras, oito do Flu e 15 empates. Mas ninguém escondia que jogar contra o rival era uma tarefa bem indigesta.

Zico cobra a falta que originou um de seus gols na goleada de 4 a 1 de 1986…

 

O Galinho sempre foi uma atração única no clássico!

 

Em sua despedida do Flamengo, Zico comandou a goleada de 5 a 0 do Fla sobre o rival.

 

Hegemonia tricolor e a final eterna

“Super Ézio”, artilheiro tricolor no começo da década de 90.

 

Os anos 90 marcaram uma reviravolta no Fla-Flu, em todos os sentidos. Após um período de equilíbrio e triunfos pontuais, o Fluminense começou a acumular mais vitórias sobre o rival. E a maioria épica. As primeiras foram no embalo do atacante Ézio, apelidado de “Super Ézio” pelo eterno locutor Januário de Oliveira. Ele deixou sua marca 11 vezes, incluindo três gols na goleada de 4 a 2 em março de 1994 e dois no triunfo de 3 a 0 em novembro do mesmo ano. Mas foi em 1995 que o delírio tricolor foi maior. No ano do centenário do Flamengo, que contratou Romário e formou um time para “ganhar tudo”, o Flu deu a primeira mostra de que iria azedar aquela festa já em abril, quando venceu por 4 a 3, de virada, em um clássico eletrizante.

Branco, Luxemburgo e Romário: reforços do Flamengo para o ano do centenário.

 

Porém, eles não contavam com a astúcia de Renato Gaúcho na decisão do Carioca… Foto: Marcelo Theobald.

 

Até que, em junho, os rivais fizeram a grande final do Estadual em um Maracanã pirotécnico, colorido, emblemático. O Fla jogava pelo empate. Cenário muito conhecido pelo Flu, que abriu 2 a 0. Mas o rival empatou. Quando tudo caminhava para o título rubro-negro, Aílton entortou seu marcador na ponta direita, chutou cruzado e Renato Gaúcho meteu a barriga na bola para fazer 3 a 2. A final de 1995 é, para muitos, o maior Fla-Flu da história, venerado e relembrado por ambas as partes. Pelo drama. Pelo clima daquele Maracanã. Pelo enredo. E pelo gol decisivo. De barriga… de escudo… de peito… (de braço, dizem os rubro-negros mais enervados). Foi um jogo tão marcante que tem um espaço dedicado só a ele aqui no Imortais. Leia clicando aqui!

O Maracanã em pura ebulição na final de 1995: momento histórico no futebol.

 

A prova da hegemonia tricolor naquela época está nos números: entre setembro de 1991 e junho de 1995, foram 21 jogos, com 11 vitórias do Flu, apenas quatro do Fla e seis empates. Depois daquele momento tão épico, o Flu ficou seis jogos sem vencer o rival e começou a amargar momentos difíceis, caindo para a Série C do Campeonato Brasileiro. E, em janeiro de 1999, ano em que disputaria a terceirona, o time iniciou o ano enfrentando justamente o rival no Maracanã e perdeu por 5 a 3. O alento veio na consolidação da equipe tricolor como campeã do século XX no Rio com 28 títulos contra 26 do rival.

 

Centenário e imortal

Fla-Flu do centenário teve cerimônia especial. Pena que foi longe do Maraca.

 

No começo dos anos 2000, o clássico continuou com seu charme e repleto de grandes jogos. Em 2004, um eletrizante 4 a 3 para o Fla pela Taça Guanabara. Alguns dias depois, outra vitória rubro-negra, dessa vez por 3 a 2, e título do turno para os flamenguistas. O troco tricolor veio em 2005. Um dia após a morte do Papa João Paulo II, a torcida tricolor cantou a música “A benção, João de Deus” em homenagem ao pontífice e para embalar os jogadores antes da final da Taça Rio. E os cânticos ajudaram o Flu na goleada de 4 a 1 – na sequência, o time foi campeão estadual daquele ano. Nos anos seguintes, os duelos pelos torneios nacionais começaram a ficar cada vez mais equilibrados e os rivais imitaram os anos 80 com novos títulos nacionais em sequência. Em 2009, o Flamengo venceu o Brasileiro.

E, em 2010, foi a vez do Flu levantar a taça, feito repetido em 2012, ano do centenário do clássico, que acabou sendo realizado longe do Maracanã, em obras para a Copa do Mundo de 2014. Mesmo distante de sua casa mais querida, o Fla-Flu disputado no Estádio Nilton Santos no dia 08 de julho de 2012 teve todo um ambiente criado para ele. Banda no gramado em contornos de Fla-Flu, muitas cores, uniformes personalizados e muita nostalgia. Em campo, o Flu confirmou sua fama de sempre vencer os jogos mais importantes da história do duelo e fez 1 a 0, gol de Fred.

Em 2009, Adriano marcou dois na vitória rubro-negra por 2 a 0 sobre o Flu.

 

Desde então, o Fla-Flu possui muito equilíbrio e vê o Flamengo na frente em número de vitórias e também em títulos cariocas: 37 contra 33, dianteira conquistada graças à sequência de títulos de 1999, 2000, 2001, 2004, 2007, 2008, 2009, 2011, 2014, 2017 (vencido sobre o rival), 2019, 2020 e 2021 (estes dois últimos também vencido sobre o rival) e a ligeira estagnação do Flu, que venceu em 2002, 2005, 2012, 2022 e 2023.

Com o retorno de Marcelo (à esq.), Flu venceu o título carioca de 2023 em cima do rival com uma goleada de 4 a 1. Foto: Armando Paiva / Lance.

 

Com uma história tão rica e digno dos mais complexos roteiros de filmes, o Fla-Flu segue intocável como o clássico mais romântico do futebol brasileiro e mundial. O clássico da poesia. Do sobrenatural. Das viradas. Dos gols. Do 3 a 2, placar tão comum e adorado pelas torcidas. O clássico que não tem começo. Nem fim. Que começou 40 minutos antes do nada. E que transformou o tudo.

Dica do Imortais: assista ao documentário “Fla-Flu – 40 Minutos Antes do Nada”, de Renato Terra. É simplesmente imperdível! O link está na seção Extras.

 

Curiosidades:

 

  • O Fluminense leva vantagem em confrontos decisivos contra o Flamengo pelo Campeonato Carioca. Deu tricolor em 1919, 1936, 1941, 1969, 1973, 1983, 1984, 1995, 2022 e 2023. Já o Flamengo venceu em 1963, 1972, 1991, 2017, 2020 e 2021. Placar: Flu 10×6 Fla;
  • Em 1930, nas Laranjeiras, um Fla-Flu serviu como partida preliminar para o amistoso entre Brasil e França, eliminados da Copa do Mundo. O Mengão venceu o Tricolor por 4 a 2 e, após o duelo, as duas torcidas se uniram para torcer pela seleção. E o time nacional venceu de virada os franceses por 3 a 2;
  • O ano de 1936 foi o recordista em número de Fla-Flus na história: foram dez partidas;
  • Em 1947 aconteceu o primeiro Fla-Flu fora do Rio de Janeiro. Foi na Ilha do Retiro, no Recife, que superlotou o estádio do Sport. O público viu um empate em 1 a 1 entre os rivais;
  • Jarbas e Júnior, ambos do Fla, são os recordistas em jogos de Fla-Flus com 48 jogos cada;
  • Castilho, do Flu, é o recordista pelo tricolor com 45 jogos;
  • Hércules, do Flu, é artilheiro tricolor no clássico com 15 gols;
  • Pirillo e Zico, do Flamengo, e Simões, do Fluminense, são os recordistas em número de gols em um só jogo: quatro tentos;
  • Com 13 gols em 12 jogos, Riemer, do Fla, é o artilheiro com melhor média de gols da história do clássico: 1,08 gol por jogo;
  • Em 1978 aconteceu o primeiro e único Fla-Flu disputado fora do Brasil. Foi pelo Torneio Teresa Herrera, na cidade de Corunha, Espanha, e o Fla venceu por 3 a 1 nos pênaltis após empate sem gols no tempo regulamentar;
  • Em 1983, um urubu invadiu o gramado do Maracanã. Ele foi colocado dentro de um surdo e um membro de uma organizada do Flamengo conseguiu despistar a segurança tocando sem parar o instrumento com o bicho dentro. Já nas arquibancadas, ele soltou a ave, que ficou zanzando pelo gramado. O goleiro Raul tentou pegar o urubu e não conseguiu. Outras pessoas tentaram e também não conseguiram. Quem teve que dar um jeito no bicho? Os jogadores do Flu. E, em uma comissão de três, eles cercaram o animal e Aldo conseguiu pegá-lo. O urubu foi empalhado e acabou virando “troféu” na casa de um torcedor tricolor;
  • O argentino Doval foi um dos poucos casos em que um jogador brilhou com ambas as camisas. Ele foi ídolo no Flamengo e no Fluminense na mesma época: os anos 70. Renato Gaúcho, Romário, Rodrigues Neto, Gérson entre outros são também são exemplos de jogadores que atuaram por ambos os clubes;
Doval foi ídolo do Fla…

 

…E do Fluminense.

 

  • Em 1º de outubro de 1993 foi registrado o menor público da história do Fla-Flu: apenas 336 pagantes viram o clássico nas Laranjeiras;
  • Em 2009, aconteceu o primeiro Fla-Flu válido por uma competição da Conmebol. Foi na primeira fase da Copa Sul-Americana. O Flu se classificou após empatar sem gols o primeiro jogo e em 1 a 1 a segunda partida, conseguindo a vaga pelo critério do gol marcado fora de casa;
Fla-Flu teve seu primeiro embate em um torneio da Conmebol em 2009. Foto: Getty Images.

 

  • Em 2023, os rivais se enfrentaram pela primeira vez em uma Copa do Brasil. Foi nas oitavas de final e o Flamengo se classificou após empate sem gols no primeiro jogo e vitória por 2 a 0 no segundo jogo;
  • No documentário “Fla-Flu: 40 minutos antes do nada”, o entrevistador perguntou a um flamenguista: “o que mais te irrita na torcida do Fluminense?” Ele respondeu: “a falta de gente. O estádio cheio fica mais maneiro!”;
  • No mesmo documentário, um tricolor questionou o entrevistador: “você sabe o que quer dizer a sigla CRF do Flamengo? Com os Restos do Fluminense”.

 

Extras:

Veja imagens do clássico de 1963.

 

Veja o documentário imperdível sobre o clássico.

 

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Comentários encerrados

3 Comentários

  1. Sensacional, como sempre! Não me canso de ler as histórias e lhes parabenizar pelo site. Só senti falta de maiores referências a decisão de 91, que praticamente não foi citada no texto.

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