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A Lei Bosman e como ela mudou o futebol

 

Por Leonardo Bertozzi

 

De Goey; Ferrer, Emerson Thomé, Leboeuf, Babayaro; Petrescu, Deschamps, Poyet, Di Matteo, Ambrosetti; Flo.

 

Nenhum jogador inglês estava entre os titulares do Chelsea contra o Southampton, dia 26 de dezembro de 1999. Era a primeira vez que um time da Premier League entrava em campo com onze estrangeiros. Nem mesmo o técnico dos Blues era local. O italiano Gianluca Vialli dirigia a equipe que venceu o Southampton, que tinha sete titulares ingleses, por 2 a 1. Na época, era uma novidade. Hoje, nem é notícia. A irreversível abertura das fronteiras na década de 1990 fez com que os grandes clubes europeus se tornassem verdadeiras seleções nacionais. A lei Bosman e a expansão da Champions League foram fatores determinantes para transformar o panorama do futebol do Velho Continente nos últimos anos.

Jean-Marc Bosman (Foto: AP).

 

A longa luta judicial do belga Jean-Marc Bosman pelo direito de escolher onde atuar lhe custou os melhores anos da carreira, mas mudou a história para quem veio depois. A partir de 1995, todo jogador com contrato encerrado estava livre para mudar de clube. Até hoje, este tipo de transferência é chamada de “Bosman”. Além disso, a liberdade de trabalho de cidadãos da União Europeia em qualquer país integrante se aplicaria também ao futebol.

Portanto, os limites de estrangeiros nas competições de clubes deixavam de englobar jogadores comunitários. Boa notícia para as ligas economicamente mais fortes. Nem tanto para cenários periféricos. O ano de 1995 foi simbólico pelo título da Champions conquistado pelo Ajax, que nos anos seguintes veria um desmanche de seu elenco se concretizar. Antes da lei Bosman, a escolha dos estrangeiros tinha de ser mais criteriosa, e havia até espaço em times menos poderosos para jogadores internacionais de ponta, como acontecia na liga italiana dos anos 1980.

A menor mobilidade e a situação política de alguns países fazia com que algumas equipes fossem verdadeiras seleções nacionais. Não por acaso, o Steaua Bucareste foi campeão europeu em 1986 e o Estrela Vermelha em 1991. Hoje, é quase impossível imaginar uma repetição destes feitos. Não apenas porque a abertura das fronteiras enfraqueceu estes clubes, mas também porque o formato do torneio mudou. Foi nos anos 1990 que a Champions deixou de ser uma competição restrita aos campeões nacionais, além de adotar a fase de grupos em vez de eliminatórias em todas as etapas. Com interesse nos mercados mais ricos, a UEFA abriu as portas inicialmente aos vice-campeões, passando posteriormente a abrigar os terceiros e até quartos colocados das principais ligas. A temporada 1999/2000 foi a primeira com 32 integrantes nos grupos.

Lucrativa para quem disputa, a Champions passou a ser parte fundamental do orçamento dos grandes e criou um efeito colateral dentro das ligas nacionais, ajudando a aumentar a distância para os times que não são participantes frequentes. Talvez por isso, as principais ligas tenham se tornado mais previsíveis, com algumas exceções. As novidades, em muitos casos, vieram de um fenômeno comum ao nosso século: a entrada de multimilionários na aquisição de equipes.

A chegada de Roman Abramovich ao Chelsea foi simbólica. Os Blues experimentaram um fenômeno que anos depois aconteceria com Manchester City e Paris Saint-Germain: de repente, seu clube acorda com um cheque em branco e pode contratar craques à vontade. Não por acaso, o Chelsea passou a fazer parte da galeria dos campeões europeus. Os contratos de televisão também explodiram. Duplicaram, triplicaram, quadruplicaram. Nem todo mundo gastou com responsabilidade. Nem todos os contratos foram bons para todos, como na Espanha, onde Real Madrid e Barcelona abocanham mais que os outros somaram. Times quebraram e tiveram de se reestruturar para retornar. Aconteceu com Napoli e Fiorentina, na Itália.

Em pé: Lunin, Alaba, Kroos, Tchouaméni, Rüdiger e Benzema. Agachados: Valverde, Carvajal, Camavinga, Vinícius Júnior e Modric. Este foi o Real Madrid campeão mundial de 2022. O único jogador espanhol da foto é Carvajal…

 

O que esperar para o futuro? A UEFA tenta emplacar as leis de fair play financeiro que obrigarão os clubes a gastar apenas o que são capazes de arrecadar. Para os apoiadores do projeto, é a chance de nivelar o campo de disputa minimizando o efeito da entrada de mecenas – muitos deles com dinheiro de origem duvidosa. Para outros, será a estabilização de uma casta de times dominantes que não verá novos integrantes no futuro próximo.

 

Bosman: “Fiz algo bom, dei direito às pessoas. Mas nunca recebi nada que me prometeram”

 

Por Leandro Stein

 

Jean-Marc Bosman nunca defendeu a seleção belga. Não chegou a um grande clube europeu e muito menos disputou a Champions League. No entanto, poucos jogadores são mais importantes na história do futebol europeu. Fora de campo, nenhum deles causou mais impacto. Brigando por seus direitos como trabalhador, o meio-campista abriu portas essenciais para os atletas no continente. Graças à Lei Bosman, ninguém fica mais preso a seu clube ao final do contrato, assim como os limites para membros da comunidade europeia desapareceram. Ainda que, quase 30 anos depois de sua vitória nos tribunais, Bosman viva de maneira simples, criando seus dois filhos longe das benesses de um craque. 

O belga iniciara sua briga com o Liège em 1990, diante da impossibilidade de romper o vínculo com seu clube. Sem qualquer direito a resolver seu destino, ele se via como um escravo. Porém, a luta de Bosman ganhou novas proporções com o passar dos anos, à medida que não conseguia assinar com outros times. Refugiado na Ilha de Reunião, jogando por equipes minúsculas, o meio-campista também buscou o reconhecimento dos atletas como trabalhadores comuns, livres para transitar entre os clubes da União Europeia. Venceu.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, Bosman relembrou o caso. Analisou o passado e falou sobre a sua vida atual. “Eu era mantido em meu clube como se fosse um cativeiro. Estava no final de meu contrato com o Liège. Eles me ofereceram um novo, com valor quatro vezes menor que o anterior. E, para me vender ao Dunkerque, eles exigiam quatro vezes o preço pelo qual tinham me comprado. 

Em outras palavras, eles pensavam que eu tinha me tornado quatro vezes melhor se quisessem me vender e quatro vezes pior se eu preferisse continuar. Eu não aceitei esse procedimento, que eu considerei completamente ilegal. Estava suspenso pela federação belga porque eu não queria assinar. Mas, se eu não assinasse, ainda não pertencia ao Liège, e eu não aceitava isso. Perdi uma oportunidade de ganhar muito dinheiro em outro clube”, declarou.

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Segundo Bosman, a partir de certo momento, seu interesse já não estava mais na própria carreira, mas nas consequências que traria ao futebol. “A mensagem dada pela UEFA e pela FIFA para todos os clubes era de que não me contratassem porque eu tinha tomado medidas legais contra eles, assim como contra a federação belga e o Liège. Neste ponto, percebi que minha carreira iria acabar. Então eu decidi tomar medidas contra as cláusulas de nacionalidade. Meu raciocínio era de que eu, como um cidadão europeu, estava livre para me transferir livremente, como qualquer trabalhador”, complementou.

Longe de fazer fortuna, Bosman passou por sérias dificuldades financeiras. Embora tenha recebido uma ajuda mensal do sindicato de atletas e a indenização pelo caso, fez investimentos ruins com o dinheiro, e teve que vender uma de suas duas casas e seu carro. Além disso, deprimido e alcoólatra, chegou a ser condenado à prisão em 2011, por agredir a namorada – pena que cumpriu com trabalhos comunitários. Mas acima de todas as questões pessoais, fala com certo desapego àquilo que proporcionou ao futebol.

 

“Eu acho que fiz algo bom. Eu dei direito às pessoas. Agora, eu penso que pode haver uma nova geração de jogadores que não percebem quanta sorte eles têm, podendo deixar um clube e se juntar a outro, mesmo que seja quinto ou o sexto estrangeiro do elenco. Eu penso que alguns jogadores ganharam uma ótima vida – boa para eles. Eu poderia dizer que a Premier League é bela por causa de Jean-Marc Bosman. Agora já virei a página sobre tudo o que aconteceu. Porque tive várias promessas no passado, mas nunca recebi nada disso”, declara. 

“Eu tenho orgulho da lei, porque as pessoas continuarão falando sobre isso nos próximos anos, talvez mesmo depois que eu partir, em 20 ou 30 anos. Talvez eles pensem que deveriam ao menos me agradecer, nada mais”.

O único aborrecimento evidente de Bosman, contudo, é diante da maneira como o futebol europeu se organizou em torno do poderio financeiro. “O resultado é que agora os 25 clubes mais ricos pagam quantias astronômicas pelas transferências e os menores não podem se dar ao luxo de gastar tanto. Assim, esses 25 se distanciam cada vez mais do resto, aprofundando o abismo entre grandes e pequenos. Esse não era o objetivo da lei. Foi causado por aquilo que a UEFA e os clubes fizeram depois”, disse. Consequências muito além de sua luta, mas que acabaram moldadas por ela.

 

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