Data: 30 de julho de 1930
O que estava em jogo: o título da primeira Copa do Mundo da FIFA, em 1930.
Local: Estádio Centenário, Montevidéu, Uruguai
Árbitro: John Langenus-BEL
Público: 68.346 pessoas / 93.000 (público estimado)
Os Times:
Uruguai: Ballestrero; Nasazzi e Mascheroni; Andrade, Fernández e Gestido; Dorado, Scarone, Castro, Cea e Iriarte. Técnico: Alberto Suppici.
Argentina: Botasso; Della Torre e Paternoster; Juan Evaristo, Luis Monti e Suárez; Peucelle, Varallo, Stábile, Manuel Ferreira e Mario Evaristo. Técnicos: Francisco Olazar e Juan José Tramutola.
Placar: Uruguai 4×2 Argentina. Gols: (Dorado-URU, aos 12’, Peucelle-ARG, aos 20’ e Stábile, aos 37’ do 1ºT; Cea-URU, aos 12’, Iriarte-URU, aos 23’ e Castro-URU, aos 44’ do 2ºT).
“La Final Eterna”
Por Guilherme Diniz
A prévia havia acontecido em junho de 1928, do outro lado do Atlântico, no Estádio Olímpico de Amsterdã. Os vizinhos Uruguai e Argentina decidiram naquele ano a Medalha de Ouro das Olimpíadas, e a Celeste, campeã também em 1924, ficou com o título. Era a consagração de um esquadrão emblemático, repleto de estrelas e que se fez conhecido como Celeste Olímpica. Dois anos depois, eis que a FIFA – “enciumada” com a popularidade que o futebol tinha nos torneios olímpicos – decidiu criar um torneio para chamar de seu: a Copa do Mundo, que renderia ao vencedor o troféu Victoire aux ailes d’Or (Vitória com Asas de Ouro), de 30cm de altura e pesando 4kg, sendo 1,8kg de ouro puro. A sede escolhida foi o Uruguai, um reconhecimento à popularidade do país na época. Jogo após jogo, a Celeste confirmou o favoritismo e chegou à final. Nela, compareceu também a Argentina, que viu a ocasião perfeita para uma revanche histórica.
Só que o que era para ser um jogo de futebol ganhou proporções de guerra. Torcedores cruzando o rio da Prata na calada da noite com armas (!). Árbitro do jogo exigindo garantias de vida e uma passagem de volta ao seu país tão logo terminasse o duelo. E bolas diferentes para cada etapa da partida (!) a fim de atender os gostos das duas seleções. A primeira final da história das Copas teve tudo isso e muito mais. Todos os temperos de um clássico eterno. De uma final que ficará marcada para sempre no esporte. E que iniciou da maneira mais épica possível o maior torneio do futebol mundial. É hora de relembrar.
Pré-jogo
Em 1914, a FIFA reconheceu as Olimpíadas como uma competição global de futebol e decidiu organizar as disputas futebolísticas a partir de 1924, ano do primeiro ouro uruguaio. Com o bi em 1928, a entidade oficializou sua própria competição, que ocorreria no mês de julho de 1930. A FIFA escolheu o Uruguai como país-sede em uma conferência na cidade de Barcelona (ESP) no ano de 1929, devido a celebração dos 100 anos da Primeira Constituição do país exatamente em 1930, e por sua seleção ser a atual bicampeã olímpica. Apenas 13 seleções disputaram o torneio, com as partidas realizadas na capital Montevidéu, a maioria no estádio Centenário, construído especialmente para a competição.
Não houve Eliminatórias e as inscrições eram abertas a todos os países membros da FIFA. Com isso, participaram sete equipes da América do Sul, quatro da Europa e duas da América do Norte. Por conta da longa (14 dias) e cansativa viagem da Europa até a América (que era feita de navio), muitas seleções não quiseram participar do torneio. As equipes foram divididas em quatro grupos, sendo que o Grupo 1 teria quatro equipes, e os outros, três cada. Os primeiros colocados garantiam vaga nas semifinais e os respectivos vencedores iam para a final.
Jogando em casa, com um time entrosado e o apoio da torcida, o Uruguai não encontrou dificuldades para confirmar seu favoritismo e alcançar a decisão. A Celeste estreou contra o vizinho sul-americano Peru e venceu por 1 a 0. O jogo seguinte foi mais fácil e a equipe goleou a Romênia por 4 a 0. Com as duas vitórias, a equipe de Nasazzi, Scarone e companhia se garantiu na semifinal e atropelou a Iugoslávia por 6 a 1, selando a vaga em busca do título. Do outro lado, a Argentina também confirmou as expectativas e venceu França (1 a 0), México (6 a 3) e Chile (3 a 1), resultados que classificaram a albiceleste para a semifinal. Nela, a equipe goleou os EUA por 6 a 1 e garantiu vaga na final.
Ver dois rivais duelando pelo primeiro título mundial causou enorme apreensão na FIFA, mas não como o demonstrado pelo árbitro belga John Langenus. Passeando por Buenos Aires dias antes da final, ele foi informado que seria o juiz da final e deveria voltar a Montevidéu imediatamente. Perplexo, o belga sabia que aquele jogo poderia marcar positivamente sua carreira, mas também trazer-lhe riscos graves – inclusive de morte! Por isso, antes de confirmar sua presença, Langenus exigiu três coisas:
- Seguro de vida para ele e seus dois assistentes;
- Escolta de seguranças garantindo sua volta até o porto depois do jogo;
- O navio Duílio, que iria levar o árbitro até a Europa e tinha como horário de partida às 15h, deveria permanecer no porto e esperar Langenus e seus assistentes, pois o jogo iria terminar por volta das 17h.
Só depois das exigências serem confirmadas que o árbitro, enfim, cruzou o Rio da Prata em direção a Montevidéu. Enquanto isso, milhares de argentinos começaram a se mobilizar para a final. Na madrugada do dia do jogo, uma quarta-feira (foi a única final de Copa disputada neste dia da semana em toda a história), cerca de 15 mil argentinos iriam cruzar o rio em 10 embarcações (algumas fontes citam 12), mas uma terrível neblina encobriu a travessia e apenas quatro completaram o caminho a tempo. As outras iriam terminar o trajeto já com o jogo em andamento, retardando a entrada de mais de 3 mil argentinos.
Quando as felizardas embarcações chegaram ao porto, as autoridades uruguaias deixaram bem claro que armas eram proibidas e que as mesmas deveriam ser mantidas nos barcos e retiradas na volta. Isso mesmo: vários torcedores foram “preparados” para qualquer coisa – felizmente nenhum incidente grave foi registrado. Relatos dizem que os hinchas gritavam “victoria o muerte”, enervando ainda mais o clima. Marotos, os guardas uruguaios fizeram de tudo para atrapalhar a entrada dos vizinhos e demoraram bastante para assinar os papéis dos turistas, além de fazerem extensas revistas tanto no porto quanto na porta do Centenário.
Quem também prestigiou aquela final foi Carlos Gardel, o rei do tango e idolatrado tanto na Argentina quanto no Uruguai. O artista visitou as concentrações das duas seleções nos dias 28 e 29 de julho e cantou algumas de suas célebres canções para acalmar os ânimos dos atletas. Só que isso teve efeito contrário, pois os argentinos ficaram sabendo que Gardel esteve com os uruguaios e ficaram loucos da vida, pois o artista já era na época “patrimônio nacional” da Argentina. Do lado uruguaio, o gesto de Gardel não foi nada de mais, afinal, o tango era comum no país e não havia a “exclusividade” demonstrada pelos argentinos. Por conta disso, o cantor desistiu de ver o jogo no estádio e preferiu ouvir pelo rádio.
Em campo, as equipes foram completas, embora a Argentina tivesse problemas no ataque por causa da contusão de Varallo, com o tornozelo inchado e que jogaria a final no sacrifício. No dia do jogo, milhares de pessoas conseguiram entrar no estádio sem pagar e o público não-oficial passou dos 90 mil espectadores. Os portões abriram às 8h – seis horas antes do jogo – e ao meio-dia o estádio já estava praticamente lotado! Era um ambiente simplesmente fantástico, mas ao mesmo tempo tenso. E, quando os times entraram em campo, o árbitro Langenus teve que solucionar um problema. Argentina e Uruguai queriam jogar com suas bolas – cada um tinha preferência por uma marca. Sem chegar a uma conclusão, o belga teve uma ideia diplomática brilhante e acatada pelos capitães: no primeiro tempo, o jogo seria disputado com a bola escolhida pela Argentina, a escocesa Players, mais leve. No segundo tempo, a bola seria a escolhida pelo Uruguai, a inglesa T-Shape, mais pesada.
Outro ponto é que o atacante uruguaio Héctor “Manco” Castro – o uruguaio tinha o apelido “Manco” pelo fato de não ter a mão direita, perdida em um acidente com uma serra elétrica quando era auxiliar de carpinteiro na infância – teria recebido uma proposta de suborno dos argentinos, que ofereceram 50 mil pesos se ele ajudasse a entregar o jogo. Caso contrário, sofreria “consequências graves”. O curioso é que Castro não era titular absoluto do Uruguai e havia disputado apenas a partida da estreia, contra o Peru, na qual marcou o único gol do jogo. Só que o técnico Alberto Suppici escalou Castro pela experiência do atacante em duelos decisivos e por sua boa colocação na área, além de sua notável impulsão, qualidade que os defensores argentinos, embora fossem altos, não tinham.
Primeiro tempo – Bola argentina, vitória argentina
Se todos pensavam que os nervos exaltados dos torcedores iriam atingir os jogadores, tudo virou ilusão quando a bola (argentina) rolou. Os atletas estavam dispostos a jogar futebol e não apelaram para botinadas ou faltas ríspidas. Depois de alguns minutos sem chances claras, o time da casa abriu o placar aos 12’, quando Castro recebeu e tocou na direita para Dorado, livre de marcação, chutar cruzado e fazer 1 a 0 para o Uruguai. A Argentina não se intimidou e foi pra cima. O empate veio oito minutos depois, quando o capitão Ferreira recebeu perto da área uruguaia e tocou de primeira para Carlos Peucelle, que deu um toque rápido para escapar da marcação de Gestido e chutou forte, sem chance alguma para Ballestrero: 1 a 1.
A partida seguiu intensa até os 37’, quando a Argentina conseguiu a virada. O meio-campista Monti deu um passe longo em direção à área, o artilheiro Stábile ganhou na corrida de José Leandro Andrade e tocou na saída do goleiro. Durante a comemoração, o capitão uruguaio Nasazzi foi aos berros reclamar com o árbitro de impedimento de Stábile no momento do lançamento, mas o belga, após consultar um de seus assistentes, validou o gol. Com a vantagem, a Argentina ficou mais confortável no jogo, mas viu Varallo sofrer uma entrada mais forte de Gestido perto do final do primeiro tempo e ficar praticamente com um jogador a menos naqueles minutos finais. Como na época não eram permitidas substituições, o atacante teria que jogar o segundo tempo se arrastando, apenas fazendo número.
Nos vestiários, os argentinos sentiram um clima bastante hostil por conta do excesso de policiais nos corredores e no gramado – cerca de 300 militares – que não estavam ali para defender os jogadores da albiceleste… Varallo chegou a comentar anos depois que alguns atletas diziam que seria melhor perder, porque senão eles poderiam “morrer ali mesmo”. Do outro lado, o Uruguai tinha apenas 45 minutos para tentar a virada. Com a sua bola.
Segundo tempo – Bola uruguaia, goleada (e título) celeste!
Com a pelota que lhe convinha e sabendo da decepção que seria ver seu torcedor perder a primeira Copa da história em casa, o Uruguai foi com tudo ao ataque desde o início e se aproveitou da contusão de Varallo, que apenas assistia tudo aquilo sem poder correr ou agredir a zaga celeste. Aos 12’, o craque Scarone dominou fora da área, e, mesmo marcado por dois argentinos, rolou no centro para Pedro Cea, que, de carrinho, empurrou a bola para o gol e empatou: 2 a 2. A torcida se inflou e o time da casa seguiu atacando. Onze minutos depois, Iriarte recebeu de Mascheroni no centro do ataque e arriscou um chute de 25 metros. A tentativa deu certo e foi parar no ângulo direito do goleiro Botasso. Virada uruguaia!
O terceiro gol acordou a Argentina, que começou a atacar novamente e cruzar várias bolas na área uruguaia. Só que a sorte estava ao lado do Uruguai, pois as tentativas da albiceleste batiam nos beques, no travessão e ficava nas mãos de Ballestrero, que operava verdadeiros milagres. Aos 40′, Varallo, tão esquecido, conseguiu desferir um chute que foi salvo por José Leandro Andrade em cima da risca do gol. A Argentina estava mais perto do empate do que o Uruguai do título.
Até que, aos 44’, Dorado olhou para a área e cruzou. Ele sabia que por ali estava o alto zagueiro Della Torre. Mas, perto dele, Manco Castro. Quando a bola subiu, Castro fez exatamente o que ele mais sabia: saltou mais do que os defensores rivais. E, como se tivesse molas nas chuteiras, Castro pulou e tocou de cabeça bem no meio do gol, resvalando no travessão. A redonda passou sobre Botasso e entrou: 4 a 2. Era o gol do título. Da vitória por 3 a 0 do Uruguai com a “sua bola”, revertendo a derrota de 2 a 1 com a “bola argentina”. Na hora do gol, os argentinos tentaram contestar dizendo que Castro havia tocado a bola com a mão, mas o árbitro sabia que o atacante não tinha uma das mãos e relevou.
Minutos depois, Langenus apitou o final da partida, viu o início de uma festa estrondosa e saiu correndo em direção ao porto, escoltado por apenas um guarda. Ele chegou, e, para sua surpresa, recebeu a notícia de que o navio só iria partir no dia seguinte por causa do nevoeiro. Com medo de supostos torcedores argentinos sedentos por sua cabeça, o belga esperou no camarote até a saída da embarcação… Mesmo com tantas histórias e causos, a final premiou a seleção mais entrosada e coroou um esquadrão que desde 1924 brilhava no cenário sul-americano e mundial. Vencer a primeira Copa do Mundo colocou de vez a Celeste no rol das maiores seleções do século XX, algo que só ajudou a engrandecer e estabelecer de vez o torneio como o maior do futebol no planeta.
Pós-jogo: O que aconteceu depois?
Uruguai: diferente do que acontece atualmente, o troféu de campeão não foi entregue aos jogadores ou ao capitão Nasazzi no gramado. A taça Vitória saiu das mãos de Jules Rimet direto ao presidente da Associação Uruguaia de Futebol, Raúl Jude, nos vestiários. Os jogadores, por outro lado, foram agraciados com medalhas de ouro confeccionadas pelo mesmo produtor da taça da Copa, Abel Lafleur. Além disso, o governo uruguaio deu uma casa para cada atleta campeão do mundo. Depois da conquista, o Uruguai entrou em decadência com a aposentadoria de seus principais craques e não participou das Copas de 1934 e 1938 como resposta à ausência de vários países no Mundial de 1930. A Celeste só voltou em 1950, em outro conto épico que você pode ler clicando aqui.
Argentina: o revés para o maior rival na época abalou demais o time albiceleste, mas os torcedores receberam os atletas com muito carinho em Buenos Aires e disseram que a seleção havia sido a “campeã moral”. Por outro lado, a sede da embaixada uruguaia na capital argentina foi apedrejada após a final da Copa e a Associação de Futebol Argentino rompeu temporariamente a relação com a do Uruguai. Meses depois, um golpe militar derrubou o presidente argentino Hipólito Irigoyen, fato que só aconteceu por conta das iras sociais que explodiram no país – cuja “faísca” foi liberada na derrota na Copa de 1930. A Argentina só deu a volta por cima no título da Copa América de 1937 diante do Brasil, que passaria a nutrir uma intensa rivalidade com a albiceleste nos anos seguintes.
Com relação ao Uruguai, a Argentina ainda aguarda uma grande revanche contra a Celeste, notável pedra na chuteira albiceleste em partidas decisivas, afinal, depois das finais de 1928 e 1930, a Argentina só conseguiu derrotar o Uruguai e eliminá-lo de maneira direta nas oitavas de final da Copa do Mundo de 1986, com vitória por 1 a 0. Aconteceram outros dois duelos: na semifinal da Copa América de 1987 (vitória do Uruguai por 1 a 0) e nas quartas de final da Copa América de 2011 (vitória do Uruguai nos pênaltis por 5 a 4 após empate em 1 a 1).
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Acompanho o blog desde 2014 e admiro muito os textos, sempre muito bem escritos. Vocês planejam postar sobre o esquadrão imortal do Palmeiras dos últimos anos?
Obrigado! Sim, o de 2020-2021 terá seu lugar por aqui. Vamos apenas esperar o Mundial para ver se vira 2020-2022. 😉
Aquele ciclo do escrete celeste foi único. Aliás, mais que isso. Foi talvez o que atingiu o maior mérito esportivo da história do jogo: ganhar três títulos de nível global em sequência (eu reconheço as Olimpíadas de 24 e 28 como títulos equivalentes aos de Copa). Claro que a vitória veio com algumas ajudinhas, mas isso também é normal. O que é triste é ver a atual decadência do futebol do país oriental. Faz 61 anos que o Uruguai não joga uma final de Copa (isso se considerarmos o Maracanazo como “final”, embora não tenha sido exatamente uma finalíssima, mas sim o jogo final do quadrangular final daquele mundial), e não sabemos se vamos ver isso acontecer em breve. Já a Argentina amargou uma justa derrota naquela Copa, e depois nem pode ver a extraordinária geração dos anos 40 testar sua soberania por causa da Guerra.
era a grande rivalidade sul americana, o clássico do Rio da Prata
Partida histórica, merecia demais estar aqui por todo o contexto social e pela partida em si. Por favor, no próximo Jogos Eternos, escreva sobre a partida Santos 3 X 5 Nautico, pelo 2° jogo da semifinal da Taça Brasil de 1966. Abraço