Nascimento: 16 de Novembro de 1881, em Maleschau, Boêmia, República Checa (à época, Império Austro-húngaro). Faleceu em 17 de Fevereiro de 1937 em Viena, Áustria.
Times que treinou: Seleção Austríaca (1912-1914 e 1919-1937).
Principais títulos: 1 Copa Internacional da Europa Central (1931-1932) e 1 Medalha de Prata nos Jogos Olímpicos de Berlim (1936) pela Áustria.
“The Wundercoach”
Por Guilherme Diniz
Ele era, antes de tudo, uma autoridade. Tinha o empreendedorismo cravado em sua alma. Pensava à frente de seu tempo. Tinha ideias revolucionárias e não fosse seu jeito energético, de fazer as coisas na hora e criar o tudo do nada, não teríamos nos dias de hoje competições como a Eurocopa e a Liga dos Campeões da UEFA, além de o profissionalismo no futebol do Velho Continente levar décadas para se concretizar. Não bastasse todo esse clamor e paixão pelo bem do futebol, ele criou uma das mais sublimes seleções de todos os tempos, que ganhou o apelido de Wunderteam (time maravilha). Mas maravilha mesmo era ele: Hugo Meisl, o homem que revolucionou para sempre o futebol austríaco, europeu e, quem sabe, mundial. Nascido em uma família judia no império Austro-Húngaro e erradicado em Viena, Meisl plantou as sementes para que o futebol desse os frutos tão suculentos que deu nas décadas que precederam suas criações táticas, organizacionais e competitivas. Pena que Meisl tenha vivido tão pouco, apenas 55 anos. É hora de relembrar a curta, porém marcante carreira desse mito do esporte mundial.
Sumário
Dos bancos para o banco
Filho de comerciantes judeus e criado na Boêmia, região que hoje pertence à República Checa, Hugo Meisl foi ainda criança para a cidade de Viena, na Áustria, onde estudou gestão e comércio, se arriscou no futebol como jogador do Vienna Cricket and Football Club e trabalhou como banqueiro. Paralelo às suas atividades profissionais, Meisl sempre prestava atenção no futebol, às suas regras, estilos e no que poderia ser mudado. Depois de ver que como jogador ele não teria sucesso, foi árbitro de vários jogos no futebol austríaco e até entre seleções, apitando a célebre partida entre Hungria e Inglaterra, em 1908, vencida pelos ingleses por 7 a 0 e jogos das Olimpíadas de Estocolmo, na Suécia, em 1912. Foi nesse período que Hugo Meisl começou a construir uma vertiginosa rede de contatos no meio esportivo e a se infiltrar cada vez mais no mundo do futebol, virando um dos maiores entendedores do esporte.
Pouco antes da primeira guerra mundial, Meisl foi secretário geral da Federação Austríaca e passou a desenvolver ainda mais o futebol não só do país, mas também da Europa, com suas opiniões energéticas para a profissionalização e novos tipos de disputas. Entre 1912 e 1914, Meisl assumiu o comando da seleção austríaca pela primeira vez, mas teve que interromper seu trabalho por conta da Guerra, ficando cinco anos no serviço militar. Depois do vendaval bélico, Meisl voltou ao comando em 1919. Para jamais sair de novo.
Homem de visão
Na década de 20, Meisl arregaçou as mangas para começar um trabalho pioneiro, ávido e brilhante. O “craque do chapéu” começou a visitar a Inglaterra constantemente para aprender mais sobre o football e por lá conheceu Jimmy Hogan, que viraria seu fiel amigo e escudeiro para a transformação do futebol austríaco. Outra amizade cultivada por Meisl na ilha foi com Herbert Chapman, genial técnico tido como inventor do sistema tático WM, o 3-2-5. Meisl era a favor da troca de experiências e do conhecimento compartilhado entre países para o aprimoramento do esporte. Junto com Hogan, passou a estudar cada vez mais as táticas do futebol e viu que o continente necessitava de competições onde as seleções e os clubes pudessem medir forças.
Com isso, em 1927, Hugo Meisl tratou de iniciar de uma vez só duas competições que seriam fundamentais para o desenvolvimento futebolístico: a Copa Mitropa e a Copa Internacional da Europa Central. A primeira tinha como objetivo reunir os principais clubes dos países da Europa central, uma espécie de torneio intercontinental de clubes. Notou a semelhança? Sim, ela foi a semente do que seria a Liga dos Campeões da UEFA, criada nos anos 50. A outra competição (Copa Internacional) era semelhante à Mitropa, mas com seleções também da Europa Central disputando o título de melhor equipe do continente. Essa Copa inspirou a criação, em 1960, da Eurocopa.
Esses torneios começaram a demonstrar um grande interesse do público e foram fundamentais para mostrar a todos que não era apenas o Reino Unido que tinha futebol, mas também os países centrais da Europa. Grandes jogadores e clubes ganharam notoriedade e destaque e conseguiram sair do anonimato. Mas Meisl ainda não estava contente. Ele queria, também, evoluir o futebol de seu país e fazer da Áustria uma potência. Foi então que naquele final de década de 20 nasceria o selecionado mais encantador do começo dos anos 30 no Velho Continente.
O Wunderteam
A seleção da Áustria que faria história começou a ser modelada por Hugo Meisl e Jimmy Hogan com o intuito de fazer o futebol austríaco competitivo e ao mesmo tempo inovador, capaz de enfrentar de igual para igual qualquer equipe. Meisl começou a se espelhar no trabalho de seu amigo Hogan, com foco no esquema 2-3-5, na troca rápida de passes, nas jogadas de efeito e na movimentação constante de seus jogadores de meio campo e ataque, fugindo dos “chuveirinhos” na área adversária, como ele mesmo dizia:
“Os jogadores devem estar em constante movimento para impedir que o adversário adivinhe as suas intenções. Um defesa ou um médio, se tiverem a oportunidade, devem avançar no terreno e surgir, de surpresa, na área adversária, mas, nesse exato instante, é dever de um colega seu ocupar imediatamente a sua posição, resguardando o seu envolvimento no ataque.” – Hugo Meisl.
Para Meisl, “o sistema era não ter nenhum sistema”. A inteligência, velocidade e surpresa eram os fatores de sucesso. Mal sabia ele que seu ideal faria nascer, anos depois, o Futebol Total.
Depois de ouvir a opinião de jornalistas em um encontro num café de Viena naquele começo de anos 30, Meisl atendeu aos pedidos da imprensa e montou uma seleção com tudo o que de melhor havia no futebol austríaco na época. Craques como Smistik, Nausch, Bican e, sobretudo, Matthias Sindelar, o maior gênio do futebol no país, foram chamados. Estava montado o Wunderteam.
Invictos e campeões
Em 1931, a seleção da Áustria começou a protagonizar partidas exuberantes pela Europa graças ao futebol ofensivo e criativo proposto pelo técnico Hugo Meisl. A equipe ficou 14 partidas invictas entre abril de 1931 e dezembro de 1932. Nesse tempo, a Áustria conquistou a Copa Internacional da Europa Central de 1931-1932, com grandes vitórias sobre a Suíça, por 8 a 1, e Itália por 2 a 1 (com dois gols de Sindelar). O time venceu o torneio com quatro vitórias, três empates e uma derrota em oito jogos, marcando 19 gols e sofrendo nove. Foi nessa época que a rivalidade entre Áustria e Itália ficou ainda mais evidente, com muito equilíbrio e jogos históricos, como uma vitória por 4 a 2 dos austríacos em plena cidade de Turim.
O jogador italiano Monti era um dos que mais “odiavam” aquela seleção, principalmente o craque Sindelar, por ter que marcar o atacante nos duelos entre as seleções. O modo arisco e letal como jogava Sindelar fazia o argentino naturalizado italiano perder a cabeça muitas vezes, a ponto até de bater no craque austríaco. Dizem que o mesmo Monti pediu para Vittorio Pozzo, técnico da Itália, para não jogar contra a Áustria em uma determinada ocasião justamente por não suportar o craque austríaco.
Além do título continental, a Áustria atropelou outros adversários antes da Copa do Mundo de 1934: fez 5 a 0 e 6 a 0 na Alemanha, 6 a 0 na Suíça e aplicou uma histórica goleada de 5 a 0 sobre a Escócia, na primeira derrota dos escoceses para uma seleção de fora do Reino Unido. O ponto alto foi um emblemático 8 a 2 na rival Hungria, com três gols de Sindelar e passes do gênio para os outros cinco tentos. Irresistíveis, os austríacos pareciam ser os grandes favoritos para o Mundial da Itália. E ganharam o apelido de Wunderteam (“time maravilha”) por parte da imprensa europeia.
Quando o English Team tremeu
Para provar que a Áustria era mesmo uma das maiores forças da Europa, os ingleses convidaram o time de Hugo Meisl para uma partida amistosa em 1932, em Londres, no Stamford Bridge. Sempre imponente e “dono da bola”, o English Team esperava golear os austríacos. Mas sofreram um susto homérico. A Inglaterra venceu por 4 a 3, mas por pouco, mas muito pouco, não perderam sua invencibilidade histórica jogando em casa. Aquela foi a primeira vez que os ingleses levaram mais de um gol dentro de sua ilha e que o craque Matthias Sindelar provou ser mesmo um gênio quando pegou a bola no meio de campo e driblou todos os que apareceram à sua frente antes de fuzilar o goleiro inglês, um gol antológico que poderia ser comparado ao de Maradona na Copa de 1986. Sindelar se imortalizou depois daquele jogo como um dos maiores craques de seu tempo. O árbitro naquela ocasião, o belga John Langenus, descreveu na sua súmula o grande gol do atacante:
“Zischek (jogador da Áustria) balançou as redes duas vezes, mas o gol de Sindelar foi uma verdadeira obra de arte, um feito que ninguém conseguiria alcançar contra um adversário como os ingleses. Nem antes nem depois dele. Sindelar pegou a bola no meio do campo e disparou com a sua incomparável elegância, driblando tudo que aparecia pela frente, e concluiu para o fundo do gol”.
O resultado arrancou aplausos dos torcedores ingleses, que percebiam que o esporte já havia evoluído consideravelmente pelo planeta. Depois do brilho do Uruguai de 1924-1930, era a vez da Áustria ser a seleção mais admirada do mundo.
A primeira e única Copa do Wunderteam
Até o verão de 1934, o Wunderteam da Áustria tinha vencido ou empatado 28 dos 31 jogos que havia disputado, feito que credenciou Sindelar e companhia ao favoritismo na Copa da Itália daquele ano. Mesmo sem vários nomes que haviam brilhado entre 1931 e 1933, o técnico Hugo Meisl tinha esperanças que o seu time podia levantar o caneco. Mas não seria nada fácil, ainda mais por ter de jogar em território tão hostil quanto a Itália de Benito Mussolini, além de ter de enfrentar os anfitriões numa hipotética final.
A Áustria estreou na Copa contra a França e venceu por 3 a 2 após empate em 1 a 1 no tempo normal. Sindelar, Schall e Bican fizeram os gols dos austríacos. Na fase seguinte, duelo contra a grande rival Hungria e vitória por 2 a 1, gols de Horvath e Zischek. Classificada, a Áustria tinha pela frente o tão esperado e temido confronto contra a Itália, na semifinal. Debaixo de muita chuva e num campo pesadíssimo e enlameado, os austríacos, mais técnicos e velozes, foram presas fáceis para a força dos jogadores italianos, que venceram por 1 a 0. Como esperado por Mussolini, a Azzurra estava na final. Já a Áustria teve de se contentar com a disputa pelo terceiro lugar, perdida (sem Sindelar) para a Alemanha por 3 a 2.
A ascensão do nazismo e a prata em Berlim
Depois da Copa, o grande time da Áustria começou a se enfraquecer com a saída de seus craques e o avanço do nazismo na Europa. Em 1936, com um time completamente diferente daquele da Copa de 1934 (e sem Sindelar), os austríacos alcançaram a final das Olimpíadas de Berlim, depois de passar por Egito, Peru e Polônia. Na decisão, outra vez a Itália de Vittorio Pozzo cruzou o caminho dos austríacos e venceu por 2 a 1, ficando com o ouro. Foi nessa época que os futebolistas austríacos começaram a sentir na pele a chegada dos nazistas e ver os alemães tomarem gosto pelo futebol, querendo agregar os craques da Áustria ao selecionado alemão. Vários jogadores judeus foram perseguidos e expulsos de clubes do país com a crescente ocupação nazista, que se sacramentou em 1938, ano de Copa e que a Áustria não participou por já fazer parte do império do Reich.
O adeus prematuro de um imortal
Em 24 de janeiro de 1937, Hugo Meisl comandou a seleção da Áustria pela última vez, num jogo contra a França. Sua seleção derrotou os franceses por 2 a 1 e Meisl ficou feliz, estampando o sorriso debaixo do característico chapéu coco que usava. Semanas depois, com apenas 55 anos, o mentor da profissionalização do futebol austríaco, da revolução no futebol europeu e do Wunderteam, morreu vítima de uma parada cardíaca. Quis o destino que Meisl desse adeus ao mundo da bola antes de ver sua Áustria ser anexada pelo nazismo, poupando-lhe da dor do Reich. A Áustria ficou órfã prematuramente de seu ídolo, o homem que mudou para sempre o esporte no país.
Os anos se passaram, a Guerra assolou o continente e nunca mais a Áustria voltou a ser o que era. Mas o futebol mudou para melhor. As competições foram aprimoradas e consolidadas, o profissionalismo se concretizou por completo e as táticas esportivas se emanciparam e evoluíram constantemente nas décadas seguintes. Lá de cima, Hugo Meisl assistiu a tudo de camarote, feliz e realizado, com sua bengala, seu sobretudo e seu chapéu coco. O icônico mestre futebolístico dos anos 20 e 30 deixou saudades e é, para o todo e sempre, um imortal.
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