Data: 22 de outubro de 1969
O que estava em jogo: o título do Mundial de Clubes de 1969.
Local: La Bombonera, Buenos Aires, Argentina.
Juiz: Domingo Massaro (CHI)
Público: 45.000 pessoas
Os Times:
Club Estudiantes de La Plata: Alberto Poletti; Eduardo Luján Manera, Ramón Aguirre Suárez, Raúl Madero e Oscar Malbernat; Carlos Bilardo (Juan Echecopar, aos 8’ do 2º T), Daniel Romeo e Néstor Togneri, Marcos Conigliaro, Juan Taverna e Juan Ramón Verón. Técnico: Osvaldo Zubeldía.
Associazione Calcio Milan: Fabio Cudicini; Angelo Anquilletti, Saul Malatrasi (Aldo Maldera, aos 8’ do 2º T), Roberto Rosato e Karl-Heinz Schnellinger; Giovanni Lodetti, Romano Fogli e Gianni Rivera; Angelo Sormani, Néstor Combín e Pierino Prati (Giorgio Rognoni, aos 37’ do 1º T). Técnico: Nereo Rocco.
Placar: Estudiantes-ARG 2×1 Milan-ITA. Gols: (Rivera-MIL, aos 30’, Conigliaro-EST, aos 43’, e Aguirre Suárez-EST, aos 44’ do 1ºT).
Expulsões: Aguirre Suárez-EST, aos 24’, e Manera-EST, aos 40’ do 2º T.
“Sangue e terror no Massacre de La Bombonera”
Por Guilherme Diniz
Fim de jogo no San Siro. Com um categórico 3 a 0, o Milan vence o Estudiantes e garante uma enorme vantagem para a partida de volta do Mundial de Clubes de 1969. O duelo seguinte está marcado para o dia 22 de outubro, em La Bombonera, Buenos Aires, Argentina. Chega o dia do jogo. Grande expectativa para um bom duelo de futebol. Do lado italiano, craques e Gianni Rivera no auge. Do outro, o atual campeão mundial com um escrete de jogadores bastante unido e difícil de se enfrentar. Porém, tudo estava diferente naquela noite. Não havia “fair play” ou cantos de entusiasmo. Havia ira, fervor. La Bombonera estava sob uma nuvem de guerra. Ela, por si só, já amendronta qualquer adversário. Lotada, com 45 mil pessoas, mais ainda. Imagine com toda aquela gente ensandecida, como se estivesse num Coliseu à espera das feras e gladiadores?
Em campo, os vestidos em alvirrubro do Estudiantes pareciam prontos para uma luta. Ao invés de apertos de mãos, chutes na bola em direção aos italianos que simplesmente se aqueciam do outro lado. Ao invés de ajudar um adversário no chão, cotoveladas, chutes. Ao invés de suor, sangue. Olho inchado (!). Nariz quebrado (!!). Café quente arremessado (!!!). Concussão cerebral (!!!!). Jogo de futebol? Não. Pura barbárie. Naquela noite, La Bombonera foi palco de uma das (ou seria a maior?) mais selvagens partidas da história do esporte. Foi uma vergonha. Um escândalo que correu o mundo. Nem a imprensa argentina perdoou. Nem o militarismo em vigor na época perdoou. Virou caso de polícia. Com presos. Suspensos. E até um banido por toda a vida do futebol. Aliás, que futebol?
Sim, porque o que todos viram naquele dia foi brutalidade, pancadaria e o mais claro exemplo de como o ser humano pode ser tão irracional em determinados casos. Mas, como punição mor a tanta selvageria, o Estudiantes não foi campeão. O Milan, com bravura, resistência e muito equilíbrio, conquistou seu primeiro título mundial com a vitória por 4 a 2 no placar agregado, num dos triunfos mais celebrados e que o torcedor rossonero tanto se orgulha. Foi a vitória sobre o anti-futebol. Conheça agora uma das páginas mais deploráveis do futebol mundial. E que ganhou até o apelido de “La Bombonera Massacre”.
Pré-jogo
A 10ª edição do Mundial de Clubes colocava frente a frente Milan e Estudiantes, equipes que haviam vencido com facilidade e autoridade seus adversários em suas respectivas finais continentais. Os italianos bateram o Ajax-HOL por 4 a 1 e celebraram sua segunda Liga dos Campeões. A equipe de Milão buscava seu primeiro título mundial, já que, em 1963, perdeu a decisão para o Santos de Pelé (leia mais clicando aqui).
Já os argentinos derrotaram o Nacional-URU por 3 a 0 no placar agregado na final da Copa Libertadores e queriam o bicampeonato mundial, uma vez que a equipe havia vencido o Manchester United-ING no ano anterior. Na época, o Mundial era disputado em jogos de ida e volta, um em cada continente. O vencedor era quem somasse mais pontos, com o saldo de gols como critério de desempate e determinante para sacramentar o vencedor. Por exemplo, se o time “A” vencesse um jogo por 2 a 0 e perdesse o outro por apenas 1 a 0, esse time “A” seria campeão por ser o vencedor no placar agregado (2 a 1).
Porém, as duas equipes tinham suas particularidades. Do lado rossonero, o título europeu de 1969 foi a consagração de uma década “copeira” dos comandados de Nereo Rocco, que não ficaram nem um pouco atrás da rival Internazionale, bicampeã europeia na década, e faturaram, além dos títulos de 1963 e 1969, a Recopa da UEFA de 1968, a Copa da Itália de 1967 e os Campeonatos Italianos de 1962 e 1968. O time era muito forte defensivamente com o alemão Schnellinger, o zagueiro e líbero Malatrasi e o ótimo Roberto Rosato. Do meio para frente, o toque de bola e alto poder de finalização eram os artifícios do time, que se apoiava no talento de Gianni Rivera, o “Golden Boy”, no ítalo-brasileiro Angelo Sormani, no rápido e forte Combín e no finalizador Pierino Prati. Era uma equipe coesa e muito competitiva.
Já do lado argentino, o lema era a intimidação. Com uma filosofia controversa, o técnico Osvaldo Zubeldía pregava o futebol objetivo e a força bruta de seus jogadores, que mostravam seus “esforços” em jogadas ríspidas, encontrões e faltas duras. Valia tudo para sair com a vitória. Tudo mesmo. Além disso, a equipe usava muito sua linha de impedimento para impossibilitar qualquer ação dos rivais, artimanha que era muito criticada pela imprensa na época. No entanto, o time sabia jogar futebol quando queria e tinha alguns craques como Bilardo, Togneri e Verón – pai de Juan Sebastián Verón, que brilharia anos mais tarde, inclusive levantando uma Libertadores pelo próprio Estudiantes, em 2009. Com a arbitragem branda e a falta de mídia televisiva, não demorou muito para aquele time vencer títulos.
Após o campeonato nacional de 1967, a equipe de La Plata faturou a Libertadores de 1968 e de 1969, além do Mundial de Clubes de 1968 sobre o Manchester usando o seu jogo ríspido na partida de ida, na Argentina, e até na volta, na Inglaterra, embora o próprio Manchester e sua torcida também tenham sido rudes no duelo. Para aquela decisão, a imprensa europeia já alertava para o jogo bruto dos portenhos, que haviam dado a primeira mostra de seu estilo em 1967, quando o Racing bateu o Celtic em duelos bem conturbados. Tentando não se intimidar com tal situação, o Milan quis disputar o torneio para buscar a taça que lhe faltava e que a rival Inter havia vencido duas vezes, em 1964 e 1965, em ambas derrotando o Independiente-ARG.
Na partida de ida, o Estudiantes tentou usar e abusar de sua famosa e infame linha de impedimento, se segurou para não levar gols, mas não conseguiu aplicar a teoria na prática. Embora Rivera tenha sido bem marcado por Togneri, o Milan contou com a boa atuação coletiva de seu escrete e venceu por 3 a 0, com dois gols de Sormani e um de Combín. Para a volta, os argentinos teriam que vencer por pelo menos três gols para forçar um terceiro jogo ou por 4 a 0 para liquidar a fatura. Assim como em 1968, o Estudiantes decidiu mandar o duelo em solo sul-americano em La Bombonera, para contar com a pressão da torcida e o clima hostil que tanto ajudaram na vitória por 2 a 1 sobre os ingleses. No entanto, um clima diferente começou a ser construído para transformar o duelo em uma verdadeira guerra.
A imprensa portenha focava em seus jornais a história de Néstor Combín, argentino de nascimento que se foi, aos 17 anos, para a Europa. Com 20 anos, começou a jogar no futebol francês, se naturalizou e acabou fazendo carreira no velho continente com um futebol rápido e espírito valente. Porém, os argentinos ficaram sabendo da história e o tinham como “traidor da pátria” pelo fato de ele ter evitado o serviço militar do país com essa “deserção”. Somado ao fato de o Estudiantes precisar desesperadamente de gols, do hostil clima da ditadura militar e de relatos de que um coronel teria dito aos alvirrubros “ganhar ou morrer”, tudo conspirou para uma mudança nos nervos dos jogadores argentinos e da torcida.
Nos túneis de acesso, os jogadores do Milan percebiam a fúria adversária, os olhares ávidos. Cusparadas, moedas e até café quente foi jogado pela torcida contra os rossoneros, causando queimaduras em alguns deles. Era uma volta aos tempos medievais, quando cavaleiros jogavam óleo quente para escaldar invasores que chegavam às muralhas dos castelos e queriam subi-las. No gramado, o goleiro Poletti jogou com força a bola em direção aos italianos que simplesmente se aqueciam. Em seguida, Aguirre Suárez repetiu o gesto, mas com os pés. Poletti, goleiro do Estudiantes, gritava para Combín: “porco traidor, vamos quebrar suas pernas!”. Era um “bem vindos ao inferno” do Estudiantes para o Milan. E um prenúncio do terror que estava por vir.
Primeiro tempo – Três minutos de futebol
Após checar as chuteiras dos jogadores e ver se estava tudo em ordem, o árbitro apitou o início do jogo. O Milan, postado em sua retaguarda, apenas observou o Estudiantes nos primeiros minutos. Na base da correria, a equipe argentina tentava chegar ao ataque e fazer um gol pelo menos antes dos dez minutos. Porém, aos oito, Cudicini, goleiro do Milan, segurou uma bola e Manera simplesmente o atropelou, sendo que a jogada já havia terminado e o camisa 1 tinha a bola sob seu domínio. Como se nada tivesse acontecido, o mesmo Manera provocou Malatrasi com xingamentos.
O Milan tentava encontrar algum equilíbrio psicológico diante daquela panela de pressão. Mas era difícil. Quando tinha a bola, apareciam os argentinos sedentos não pela redonda, mas pelos corpos dos italianos. Eram botinadas. Encontrões. Trancos. Não havia cordialidade. Apenas hostilidade e violência. Até sem a bola os rossoneros eram atingidos, principalmente Sormani, golpeado seguidas vezes por Aguirre Suárez em disputas aéreas. Na base dos chutões, o time da casa não conseguia furar a meta italiana e mandava a bola para longe do gol.
Passados vinte minutos de jogo, Prati sofre um golpe de Aguirre Suárez e cai em campo inconsciente. Poletti agride o atacante no chão com um chute nas costas. O italiano sofreu uma concussão cerebral nesse lance e ainda ficaria alguns minutos em campo totalmente confuso e sem saber o que estava falando. Era um absurdo. Com medo, o juiz nada fazia para coibir tais ações. Porém, minutos depois, veio o castigo. No primeiro lapso de futebol do jogo, Manera tocou errado para Madero e Combín interceptou o lance. Rápido, o rossonero tocou para Rivera. O Estudiantes tentou fazer a linha de impedimento, mas ela saiu errada e deixou o milanista sozinho. Ele avançou, chegou até a área, driblou Poletti com categoria e esnobou aqueles selvagens praticamente entrando com bola e tudo: 1 a 0.
Furioso, o goleiro Polleti pegou a bola e a chutou violentamente contra as costas de Prati. Pior ainda, foi pra cima dos italianos, que comemoravam o gol dentro da área argentina, bradando para que eles saíssem de lá. Parecia uma fera tomando conta de seu território. Naquele momento, o Estudiantes precisava de uma goleada. O ambiente ficou ainda mais pesado, ainda mais furioso. Combín, o “desertor”, recebia pontapés e golpes quando não tinha a bola, sempre por trás. Aos 38’, Prati não aguentou as pancadas e teve que ser substituído por Rognoni. Com apenas um minuto de futebol até então, a partida ganhou mais dois: aos 43’, Malatrasi não cortou uma bola na área do Milan e Conigliaro, de cabeça, empatou.
O Milan deu a saída, e, em poucos segundos, perdeu a bola. De pé em pé, o Estudiantes foi avançando pela esquerda até um cruzamento para a área ser afastado pela zaga do Milan. Escanteio. A torcida pulsava a Bombonera. Será que o futebol havia voltado? Parecia que sim! Após a cobrança, Aguirre Suárez, que tanto batia os rossoneros, acertou um petardo de primeira e marcou um golaço: 2 a 1. Virada argentina em menos de dois minutos! Quando queriam, os alvirrubros sabiam jogar bola. Mas por que não fazer isso desde o início? Ao apito do árbitro, os jogadores foram para os vestiários e pairava a esperança de um ótimo segundo tempo, com o Estudiantes buscando mais gols para manter o embalo dos minutos finais da primeira etapa. Mas a tal esperança viraria pó. Ou pior, sangue.
Segundo tempo – O terror
Em um jogo normal de futebol, quando um time consegue uma virada no final do primeiro tempo e precisa de pelo menos dois gols, ele vai colocar a bola no chão para conseguir o placar desejado, certo? Pois bem. Era isso que muitos acreditavam que aconteceria com o Estudiantes na etapa complementar da decisão. Mas nada, absolutamente nada parecido foi visto em campo. Sem padrão, com correria, chutões e bolas espichadas, os argentinos não levavam nenhum perigo ao goleiro Cudicini. Somente aos dez minutos que o goleiro rossonero fez uma defesa, após um chute de fora da área do adversário. Com a linha de impedimento praticamente no meio de campo, o Estudiantes quase não deixava o Milan atacar, embora os italianos não tivessem pressa, se defendiam bem e claramente queriam apenas que o tempo passasse.
Percebendo que seria difícil marcar um gol, o Estudiantes começou a apelar para a fuerza bruta. Aguirre Suárez e Manera eram os mais descontrolados. O primeiro fazia questão de mirar suas ações em Sormani e Combín, que recebeu uma dura cotovelada e uma joelhada do defensor, que lhe quebrou o nariz, além de já ter sofrido um chute do goleiro Poletti. Com o uniforme ensanguentado, era chocante ver o jogador rossonero. E o pior de tudo aquilo era a parcimônia do juiz, que só tomou uma atitude aos 24’, quando Suárez agrediu Rivera, que tinha feito falta em Echecopar, e foi expulso. Irônico, ele saudou a torcida, que retribuiu com palmas. Nestor Combín, o agredido, falou à época sobre o que sofreu:
“No primeiro tempo, só conseguiram me dar dois chutes e um golpe nas costas. No segundo, com a bola longe, Aguirre me xingou. Eu me virei, ele me empurrou e me fez perder o equilíbrio. Enquanto eu estava caindo, ele me deu uma joelhada. Quase desmaiei. Continuava a sangrar. Falava com os outros sem entender o que estava falando. Para mim, não tenho medo de dizer, os jogadores do Estudiantes estavam drogados. O deles não era futebol, nem violência. Era delinquência.” – Nestor Combín, em entrevista à revista Domenica del Corriere, 04 de novembro de 1969.
Mesmo com um a menos, o Estudiantes continuava sua carnificina. Os jogadores não tentavam tocar a bola nem roubá-la do adversário de maneira esportiva. Era na base da brutalidade, dos carrinhos por trás (no vídeo ao final deste texto, veja a partir do minuto 12:53 o carrinho que um jogador do Estudiantes aplica em um do Milan…). Com sua defesa muito bem protegida, o Milan se segurava e clamava pelo fim do jogo. Era possível perceber que os rossoneros não ficavam muito perto dos argentinos. A chance de levar uma “saraivada” era enorme. Cudicini e seus companheiros tiravam toda e qualquer bola alçada na área e não queriam deixar a selvageria vencer. Eles queriam aquela taça. Já era questão de honra levar o troféu para a Itália depois de tanta coisa. O tempo ia passando e nada de gol nem de futebol. Cudicini, quando agarrava a bola, tinha que fugir para mandá-la para frente. Motivo? Sempre tinha um argentino sedento para mostrar-lhe a trava da chuteira, empurrá-lo ou atrapalhar seu chute.
Aos 40’ Rivera, partiu em direção ao gol mesmo com o jogo paralisado. Manera, furioso, desferiu um soco no italiano, que caiu no chão. Após muitas queixas, o juiz, enfim, expulsou o argentino. O Milan se arriscou mais nos minutos finais e continuou sofrendo com a brutalidade rival. Em um momento, o goleiro Poletti foi simplesmente nas pernas de um rossonero para tirar a bola e, claro, o juiz não marcou pênalti. Nos minutos finais, o goleiro argentino ficou no meio de campo quase como um líbero com todo o time italiano no campo de defesa.
Mais um tempo se passou, e, ao apito do árbitro, o Milan era campeão. O alívio dos jogadores italianos era visível desde o obelisco da Avenida 9 de Julio! A festa da comissão técnica, comovente. Porém, a frenesi rossonera durou pouco. Romeo, de apenas 22 anos, talvez o único lúcido do time do Estudiantes, foi cumprimentar Lodetti pela conquista. Prontamente o tal fair play foi interrompido por Poletti, que foi de encontro aos dois e agrediu o italiano. Até o técnico argentino Zubeldía correu para conter o destemperado arqueiro. A balbúrdia tomou conta do gramado, com fotógrafos, dirigentes e curiosos. Com isso, não teve solenidade, medalhas, nada. A polícia teve que conter os argentinos, que não deixaram o Milan comemorar seu primeiro título mundial. Angelo Sormani, que sofreu com os argentinos durante o jogo, falou sobre o ocorrido:
“A reação foi de muita preocupação. Acabou o jogo, fomos todos para dentro do vestiário. Não teve premiação solene, entortaram até a copa (troféu). Parecia que bateram com ela no chão antes de entregarem para a gente. Na Itália mandamos arrumar, foi um título muito importante para o Milan”. – Angelo Sormani, em entrevista ao Globoesporte.com, 19 de agosto de 2014.
O médico do Milan Ginko Monti disse na época que os argentinos estavam dopados, por isso a ira extrema. Zubeldía, em entrevista ao “El Gráfico”, disse que seus jogadores “recebiam injeções de vitaminas para fortalecê-los, nunca para dopá-los”, e que Aguirre Suárez, por “sua força física”, e Poletti, “por ser goleiro”, não precisavam, declarações bem vagas e que sempre levantaram suspeita, ainda mais naquela época. Porém, a partida ainda estava longe de terminar, conforme você lerá mais abaixo no pós-jogo. O fato é que a vergonha protagonizada na decisão foi notícia em todo mundo. O jornal italiano La Gazzetta dello Sport foi categórico em sua manchete: “90 minutos de caçada humana”. O El Gráfico, da própria Argentina, estampou: “A página mais negra do futebol argentino”. Para piorar, tais fatos quase exterminaram o Mundial de Clubes.
A competição começaria a sofrer boicote dos clubes campeões europeus na década de 70, que participaram em apenas três das dez competições da década: 1970, 1972 e 1976. Nas outras sete, em cinco disputaram o vice-campeão europeu (1971, 1973, 1974, 1977 e 1979) e em duas não houve disputa (1975 e 1978). Somente em 1980 que o torneio foi ressuscitado graças aos japoneses, que levaram a disputa para um jogo único no Japão, com ampla cobertura midiática e transmissão televisiva. Com isso, os europeus puderam disputar sem medo o torneio. Afinal, ali, a selvageria jamais iria prevalecer. Só havia lugar para o esporte. Ainda bem.
Pós-jogo – O que aconteceu depois?
Estudiantes: o clube argentino viu seus principais “carniceiros” receberem severas punições após o jogo, inclusive com intervenção do governo. Como o regime militar de Juan Carlos Onganía usava as glórias esportivas para ocultar as coisas ruins do país, a selvageria apresentada em La Bombonera ganhou uma punição para dar “exemplo”, principalmente para abafar a crise do Cordobazo, insurreição popular ocorrida em março daquele ano, na cidade de Córdoba, que culminaria com a saída do ditador no ano seguinte. Aguirre Suárez, Poletti e Manera foram presos por 30 dias na penitenciária de Villa Devoto e pegaram severas suspensões: Suárez foi suspenso por 30 jogos em torneios nacionais e cinco anos de torneios internacionais, Manera foi suspenso por 20 jogos em casa e por três anos fora, e Poletti foi banido do futebol, mas teve a pena abrandada após a queda do regime.
O técnico Zubeldía deixou bem claro que em nenhum momento ordenou seus jogadores a fazerem uso da violência e pediu-lhes “serenidade” no intervalo do jogo. Em vão… No ano seguinte, o Estudiantes, acredite, ganhou o tricampeonato da Libertadores e disputou mais uma vez a final do Mundial. O adversário foi o Feyenoord, da Holanda, que conseguiu buscar um heroico empate em 2 a 2 no primeiro jogo, em La Bombonera, após estar perdendo por 2 a 0, e vencer por 1 a 0 o duelo da volta, na Holanda. E, mais uma vez, teve selvageria. O autor do gol do título holandês, Van Daele, que usava óculos para jogar a exemplo do compatriota Edgar Davids, teve os óculos roubados por Malbernat, sem o juiz ver. Van Daele correu atrás do argentino, que entregou o objeto para o colega Pachamé, que o quebrou. Pura pirraça inútil. Ajudou em alguma coisa? Será que eles acharam que o óculos eram a kriptonita que iria destruir Van Daele e o Feyenoord? Não. O Feyenoord foi campeão, os óculos foram encontrados e estão até hoje no museu do clube.
Em 2009, o Estudiantes voltou a uma final de Mundial, dessa vez organizado pela FIFA em Abu Dhabi. Mesmo cometendo 29 faltas, o time foi um “santo” na derrota por 2 a 1 para o Barcelona, com gol decisivo do argentino Messi. Se, lá no oriente, o time se comportou, na Argentina, muros foram pichados criticando o gol do craque do Barça por ele ser argentino e marcar contra um time de seu país (!). Dá pra acreditar?
Milan: o primeiro título mundial do clube rossonero só foi comemorado devidamente na Itália, com recepção calorosa da torcida e até desfile em carro aberto. Antes disso, a equipe viveu momentos de tensão por causa de Combín, o mais violentado pelos argentinos. Após o jogo, ele foi encaminhado para um hospital para curar seus ferimentos e ser tratado adequadamente. Porém, ele acordou em um hospital… policial! O jogador rossonero foi preso acusado de deserção do exército por não ter se alistado quando jovem. Ele ficou cerca de dez horas preso e foi interrogado diversas vezes. Ele mesmo confessou, em 1969, que tinha medo de prestar o serviço militar na Argentina quando deixou o país ainda adolescente. “Quando acordei, acordei na prisão. Lá, eles me medicaram, me questionaram três vezes. Passei a noite e parte do dia em uma maca”, disse o atleta. Porém, Combín prestou o serviço militar na França, e, com esse argumento, o Milan trabalhou nos bastidores junto à AFA (Associação de Futebol Argentino) para libertar o atleta.
Com todos os jogadores milanistas já no aeroporto, Combín chegou em uma caminhonete da polícia para, enfim, ver a taça que ele derramou sangue para conquistar. Aliviado, já na porta do avião, ele fez questão de cantar o hino da França, entrou e nunca mais voltou. Depois do título, o Milan esperou 20 anos para vencer uma nova Liga dos Campeões e disputar o Mundial. Para o alívio dos italianos, o jogo foi no Japão contra o Atlético Nacional, da Colômbia, com transmissão televisiva e cobertura midiática adequada. Os rossoneros venceram por 1 a 0 e puderam celebrar propriamente, enfim, seu segundo título mundial. Sem bagunça. Sem sangue. Sem polícia. Apenas com futebol.
Leia mais sobre aquele Estudiantes clicando aqui.
Leia mais sobre o Milan dos anos 60 clicando aqui.
Leia mais sobre a história dos Mundiais de Clubes clicando aqui.
O trabalho Imortais do Futebol – textos do blog de Imortais do Futebol foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em imortaisdofutebol.com.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença.
Amigos brasileños. Este partido fue realmente trágico para el fútbol. Incluso como hincha y socio del Club Estudiantes de La Plata no pueda dejar de reconocer que nuestro equipo no estuvo a la altura de la competencia y muchos de sus jugadores se dedicaron más a agredir rivales que a jugar al fútbol.
Si bien alguien podrá decir que las copas en aquellos tiempos se jugaban así, que los partidos de la Copa Libertadores eran verdaderas batallas (especialmente entre argentino y uruguayos) o que en la Copa Intercontinental de 1968 Estudiantes la pasó realmente mal en Manchester, donde hubo agresiones de todo tipo a los jugadores y público argentino, lo que ocurrió en ese partido de 1969 entre Estudiantes y Milan fue realmente un bochorno que superó todos los casos anteriores.
No hay justificación posible para esa violencia extrema, que significó una mancha para el club Estudiantes difícil de borrar.
Es mucho más meritorio perder como se perdió ante el Barcelona en 2009 que lo que se vivió en 1969 contra el Milan.
Saludos desde La Plata.
Primeiro, mais um trabalho, não se tem um artigo decente de jornal que fale a enésima parte (histórica e jornalisticamente falando) sobre certos eventos, essa matéria quem quiser fazer doutorado sobre história do futebol e correlatos, é pesquisa obrigatória, de cunho quiçá fundamental!!! Para mim, o trabalho do Imortais estabelece a continuidade, o vínculo e mesmo a herança do futebol mundial. Espero que Guilherme e equipe entendam como esse trabalho deles é precioso!!! Mais e mais vezes, totais parabéns!!!
Sobre esse jogo, nada muito mais a comentar, já foi dito melhor do que eu diria. Cabe entretanto lembrar que o que se deu lançou uma mácula que demorou demais a ser esquecida sobre o povo argentino, e sobre o futebol local: estes que passaram a ser vistos de vez como animais, ganharam outras alcunhas como a de drogados (videm Diego Maradona), delinquentes, carniceiros, abrigadores de nazistas… O povo argentino não merecia isso, e essa visão negativa só começou a ser desfeita, primeiro, no aspecto além do futebol com o fim da ditadura militar, e apenas dentro do futebol, com as grandes gerações de argentinos pós Maradona (Gabriel Batistuta, Juan Riquelme, Angel Di Maria… e óbvio, Lionel Messi, que era um caso até certo ponto similar ao do pobre Combin)…
Abraço a todos!!!
Muito obrigado pelos elogios e prestígio, Diogo! Fico muito feliz quando vejo esse tipo de reconhecimento! Obrigado mesmo, de coração!
Esses argentinos e os uruguaios sempre usaram de artimanhas para tentar vencer a qualquer custo, já que não tem um futebol refinado como o brasileiro. Gostaria que vocês publicassem também sobre os jogos complicados que ocorreram no mundial de 1968 (Estudiantes e Manchester)e 1970 (Estudiantes e Feyenoord). Esse site é maravilhoso para os mais experientes que recordam muitos fatos que não podem perder no tempo e para os mais jovens que tomam conhecimento do futebol mundial em geral.
Muito obrigado pelo ótimo comentário e elogios, Dirvan! 😀
Eu que agradeço pelo excelente site, que Deus esteja com vocês. Muito obrigado por nos darem a oportunidade de recordarmos de craques, grandes jogos, esquadrões, histórias em geral que devem ser documentadas para a apreciação de todos nós.