Data: 24 de abril de 2003.
O que estava em jogo: a vitória, claro, na primeira partida das oitavas de final da Copa Libertadores da América de 2003.
Local: Estádio Alberto J. Armando (La Bombonera), em Buenos Aires, Argentina.
Juiz: Carlos Amarilla (PAR)
Público: 47.000 (estimado)
Os times:
CA Boca Juniors-ARG: Abbondanzieri; Ibarra (Calvo), Burdisso, Crosa e Clemente Rodríguez; Battaglia (Moreno), Cascini, Cagna (Tevez) e Donnet; Guillermo Schelotto e Delgado. Técnico: Carlos Bianchi.
Paysandu SC-BRA: Ronaldo; Rodrigo (Gino), Jorginho, Tinho e Luís Fernando; Sandro, Lecheva (Bruno), Vanderson e Iarley; Vélber (Rogerinho) e Róbson. Técnico: Dario Pereyra.
Placar: Boca Juniors 0x1 Paysandu. (Gol: Iarley-PAY aos 23 minutos do 2º tempo).
Expulsões: Clemente Rodriguez-BJR, Róbson-PAY e Vanderson-PAY.
“O sobrenatural Papão da Bombonera”
Por Guilherme Diniz
Enfrentar o Boca Juniors em La Bombonera pela Copa Libertadores é uma missão ingrata. Sair vivo dali, ou pelo menos com um empate no bolso, é quase impossível. Às vezes, uma derrota por pouco já pode ser considerada um bom resultado. Até 2003, apenas dois clubes brasileiros haviam conseguido derrotar os xeneizes e sua apaixonada torcida naquele caldeirão pulsante em uma Libertadores: o Santos de Pelé, em 1963, e o Cruzeiro de Ronaldo e Dida, em 1994. E foi só. Todos os outros que lá entraram ou perderam ou empataram. Ganhar, jamais. Só que a escrita foi quebrada na noite do dia 24 de abril de 2003. O Boca enfrentava um desconhecido e pequenino clube brasileiro sensação da fase de grupos, um tal de Paysandu. Todos esperavam uma goleada inapelável dos comandados de Carlos Bianchi. Algo bem normal, ainda mais com jogadores como Battaglia, Donnet, Delgado, Schelotto e Tevez.
Mas do outro lado estava o imponderável o sobrenatural, o Papão da Curuzu que, por um dia, foi o Papão da Bombonera. Com uma tranquilidade incrível, garra, disciplina tática e força de vontade, a equipe nortista fez história ao derrotar o poderoso Boca, com quatro Libertadores e dois Mundiais no currículo na época (hoje são seis e três, respectivamente), por 1 a 0, gol de Iarley, herói e craque maior daquele jogo. A façanha do Papão, que terminou o jogo com apenas nove jogadores, foi digna de filme, de carreatas pelas ruas de Belém, de emoldurar para sempre todas as capas de jornais dos dias seguintes. É hora de relembrar a épica vitória alviceleste naquele que foi o maior jogo da história do clube.
Pré-jogo
Campeão da extinta Copa dos Campeões de 2002, que dava uma vaga na Copa Libertadores, o Paysandu vivia um momento único e sublime que deixava qualquer torcedor do Remo louco da vida. A equipe era a primeira da região norte do Brasil a disputar uma Libertadores e, ao contrário do que muitos pensavam, o clube não fez feio. Na primeira fase, foram seis jogos, quatro vitórias e dois empates, incluindo triunfos magistrais fora de casa em cima de equipes tradicionais do continente como Sporting Cristal-PER (2 a 0) e Cerro Porteño-PAR (6 a 2). O Papão teve a terceira melhor campanha da primeira fase, atrás apenas de Corinthians e Santos, e foi com a vantagem de decidir em casa o primeiro jogo das oitavas de final.
Mas o adversário do Paysandu seria o Boca Juniors-ARG, comandado por Carlos Bianchi e com vários bons jogadores como o goleiro Abbondanzieri, o volante Battaglia, e os meias e atacantes Donnet, Delgado, Schelotto e Carlitos Tevez. O primeiro jogo seria na mítica La Bombonera, casa do Boca e palco de várias derrotas dos clubes brasileiros. A equipe viajou confiante para a Argentina, mas os torcedores não esperavam muita coisa. Um empate seria como goleada. Uma derrota por pouco também poderia ser comemorada. Já uma vitória era quase impossível. Os jogadores do Papão, ao chegar a Buenos Aires, fizeram questão de visitar o museu do Boca e conhecer melhor o tamanho da história e da tradição que teriam pela frente, além de visitar uma sala que reproduzia o barulho da torcida pulsando a Bombonera. Era de arrepiar. E também de temer pelo pior: uma goleada.
Primeiro tempo – Valentes
Na noite do dia 24 de abril de 2003, o Paysandu entrou em La Bombonera diante de uma pressão psicológica gigantesca. Em campo, eles teriam que encarar um adversário copeiro, mítico e quase invencível jogando em casa. Nas arquibancadas, mais de 45 mil torcedores fanáticos cantavam, pulavam e transformavam o estádio num verdadeiro caldeirão. Mas os jogadores brasileiros pareciam não se importar com tudo aquilo. Eles entraram em campo primeiro que o Boca e ostentavam um semblante sério, concentrado e frio. O Boca entrou, a torcida enlouqueceu, mas o Paysandu continuou lá, na dele, ignorando por completo aqueles argentinos.
A bola rolou e foi o Papão quem se arriscou pela primeira vez no ataque. O time brasileiro deixava claro que não seria presa fácil e que o Boca não teria a liberdade habitual de criar chances de gol. Iarley, que na época não tinha a fama de tempos posteriores, era a principal arma do time pela esquerda com dribles, arrancadas e chutes venenosos. Um desses chutes já fez Abbondanzieri trabalhar aos 17´, que espalmou uma bola que tinha como destino o gol. Tempo depois, o jogo começou a ganhar drama com a expulsão do artilheiro Róbson, o Robgol, e do lateral Clemente Rodríguez. Eram agora 10 jogadores para cada lado.
O time brasileiro ficou ainda mais compacto, marcando muito e tirando todas as bolas de perto da área. O Boca pecava na falta de objetividade e criatividade, ainda mais com Tevez no banco por teimosia de Bianchi. Sandro, Lecheva, Jorginho e o goleiro Ronaldo jogavam muito lá atrás e anulavam as investidas de Schelotto, Delgado e Battaglia. Nos contra ataques, Iarley era o perigo, sempre amparado pelo veloz Vélber e por Vanderson. Ao apito do juiz Carlos Amarilla, o placar em 0 a 0 era tudo o que o Papão queria.
Segundo tempo – Místico é o Papão!
Se o jogo já era difícil por vários fatores para o Paysandu ele ficou ainda pior no segundo tempo. Aos 10 minutos, Vanderson acertou uma cotovelada no atacante Schelotto e foi expulso de campo. O Papão ficava com apenas nove jogadores em La Bombonera com mais de meia hora de jogo pela frente. Num campo tão grande, seria dificílimo segurar o ímpeto do Boca com um homem a mais. Mas o Paysandu foi valente. Mesmo com pressão e os habitais chuveirinhos do time argentino, o esquadrão alviceleste tirava todas e neutralizava os perigos. Foi então que aos 23 minutos o imponderável aconteceu. Após uma saída errada da zaga, Moreno, do Boca, ia ficar cara a cara com o goleiro Ronaldo, mas o zagueiro Jorginho conseguiu recuperar a bola de maneira espetacular e aliviar o perigo. O Papão foi trabalhando a bola como se jogasse em casa uma partida do Campeonato Paraense. De toque em toque, a bola chegou a Sandro, que esperou a passagem de Iarley na esquerda e tocou para o atacante. Com toda sua habilidade, Iarley se livrou dos dois marcadores argentinos à sua frente e chutou no canto, sem chances para o goleiro Abbondanzieri: Paysandu 1 a 0.
A Bombonera emudeceu por alguns segundos e o lado celeste e branco de Belém enlouqueceu! Com nove em campo, o Papão abria o placar. O gol chocou os argentinos, que tinham pouco tempo para tentar a virada. Tevez, Schelotto, Moreno, Delgado, todos se lançaram ao ataque, mas o Paysandu tratou de ficar fechadinho, marcando como se não houvesse amanhã. Pesava também a falta de talento dos argentinos, que ficavam apenas no “toco que me voy” e não atacavam de maneira mais aguda. Mesmo com seu time atrás do placar, a torcida do Boca dava um show à parte cantando e empurrando os jogadores argentinos. Mas o Boca não correspondia em campo, Carlos Bianchi era o retrato da incredulidade plena e o Paysandu o da maturidade. Aos 47´, Moreno ainda cabeceou uma bola perigosíssima pra fora, no último suspiro dos xeneizes. E foi isso. Boca Juniors 0x1 Paysandu.
Estava feita a história mais incrível e marcante do Paysandu Sport Club. Fora de casa, em La Bombonera, contra um adversário cheio de tradição e com apenas nove jogadores, o Papão conseguia uma vitória emblemática. Os torcedores saíram às ruas de Belém para celebrar aquela façanha épica como se fosse um título. A repercussão foi enorme e tida como uma grande zebra mesmo com a boa fase do time naquela Libertadores. Uma pena que a intensidade e brilho apresentados em La Bombonera não se repetiriam na partida de volta, no Mangueirão.
Pós-jogo: o que aconteceu depois?
Boca Juniors: a derrota em casa para uma equipe sem tradição alguma mexeu com os brios do Boca. Na partida de volta, diante de 40 mil pessoas no Mangueirão, em Belém, a equipe entrou com a faca entre os dentes, contou com uma atuação mágica de Guillermo Schelotto e goleou o Papão por 4 a 2. O triunfo embalou o esquadrão de Bianchi que chegou até a final, derrotou o Santos de Diego e Robinho e ficou com o pentacampeonato da América. No final do ano, a equipe derrotou nos pênaltis o Milan-ITA e foi tricampeã mundial, graças ao futebol de Iarley, aquele mesmo que calou a Bombonera em 24 de abril de 2003 e que foi contratado pelo Boca logo após a Libertadores, aquisição que fez valer a máxima “se não pode com ele, junte-se a ele”. Nunca um ditado caiu tão bem…
Paysandu: a vitória sobre o Boca parece ter mexido com a cabeça dos jogadores do Papão, que esqueceram nos vestiários da Bombonera todo o brio, garra e concentração demonstrados na partida de ida. A equipe não jogou absolutamente nada, cometeu erros bobos e perdeu em casa por 4 a 2. Mesmo com a derrota, a torcida aplaudiu seus bravos guerreiros que já tinham entrado para a história com a campanha continental daquele ano. Eliminado, o Paysandu voltou à realidade no futebol brasileiro, entrou em franco declínio e jamais conseguiu montar uma equipe como aquela de 2002-2003. A torcida espera que o clube volte aos tempos de glória em 2014, ano do centenário. Enquanto a data não chega, resta celebrar em 2013 o aniversário de 10 anos da maior façanha do clube: a noite em que o “Papão da Curuzu” virou o “Papão da Bombonera”.
Leia mais sobre o Paysandu 2001-2003 clicando aqui!
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Por favor, escreva sobre o esquadrão imortal do papão de 2002-2003.
Chegou! 😀 https://www.imortaisdofutebol.com/2020/06/30/esquadrao-imortal-paysandu-2001-2003/
Esse Paysandu 2002-2003 Pode ser considerado um esquadrão imortal?
Considerando os títulos e feitos conquistados, sim, João Guilherme. Ele será relembrado em breve pelo blog. 😀
Sim! Chegou! https://www.imortaisdofutebol.com/2020/06/30/esquadrao-imortal-paysandu-2001-2003/
Ganhar do boca para os times brasileiros é o mesmo que conquistar um título e quando o boca vence um brasileiro , foi só mais um, aí dar pra medir a diferença da qualidade do futebol.
Na verdade, foram 59.930 pessoas no Mangueirão.
Parabéns, belo texto.
isso é épico,time nenhum do norte jamais conseguiu ou conseguirá um feito desses,só se for o próprio paysandu novamente.
Belíssima reportagem. Só o papão mesmo pra dar alegria ao Pará, ao norte e à Amazônia. Feito heroico papão, valeu.
meus parabéns, um belíssimo texto
Realmente, não há quem diga que não foi um feito grandioso. Times com muito mais estrutura e história caíram diante do boca na bombonera. É o tio de coisa que acontece de 100 em 100 anos.
É rapaz, e nessa época não era mole vencer o Paysandu não, principalmente jogando em casa, no Mangueirão, vale lembrar que o Iarley foi Campeão Mundial com o Internacional em 2006, e foi um dos grandes protagonistas daquela Final contra o Barcelona, já no Corinthians, ele marcou alguns gols, mas não foi tão bem quanto esperado.
Obs: Nessa época o Amarilla já roubava para o Boca?!