Data: 04 de julho de 1954
O que estava em jogo: o título da Copa do Mundo da FIFA de 1954.
Local: Estádio Wankdorf, Berna, Suíça.
Juiz: Willian Ling (ING)
Público: 62.500 pessoas
Os Times:
Alemanha: Turek; Liebrich, Posipal e Kohlmeyer; Eckel e Mai; Rahn, Morlock, Ottmar Walter, Fritz Walter e Schäfer. Técnico: Sepp Herberger.
Hungria: Grosics; Buzánski, Lóránt e Lantos; Bozsik e Zakarías; M. Tóth, Kocsis, Hidegkuti, Puskás e Czibor. Técnico: Gusztáv Sebes.
Placar: Alemanha 3×2 Hungria (Gols: Puskás-HUN, aos 6´, Czibor-HUN, aos 8´, Morlock-ALE, aos 10´e Rahn-ALE, aos 18´do 1º T; Rahn-ALE, aos 39´do 2º T).
“O Milagre de Berna? Nem tanto…”
Por Guilherme Diniz
Já eram mais de quatro anos sem uma derrota sequer. Incríveis 31 jogos invictos. Adversários derrotados. Times antes imbatíveis destruídos como se fossem comuns. A seleção inglesa, então invicta jogando em sua casa, o estádio de Wembley, fora massacrada na chamada “partida do século” por 6 a 3. Naquele dia 04 de julho de 1954, mais um capítulo daquela história mágica dos magiares estava prestes a ser escrito com caneta de ouro. O esquadrão de Kocsis, Hidegkuti, Czibor e a lenda Puskás iria vencer facilmente a seleção da Alemanha e conquistar o maior dos títulos, a maior das taças, a maior das consagrações. Eles iriam entrar para a história como os campeões da Copa do Mundo da FIFA. Era mais do que merecido. Mais do que natural. Mais do que previsível. Mas no futebol não existe nada previsível.
Será que aquele povo todo não havia aprendido a lição quatro anos antes, na final da Copa de 1950, quando o favorito Brasil foi derrotado em sua própria casa pela seleção uruguaia? Será que eles não viam que o gramado do estádio Wankdorf estava encharcado e péssimo para a prática do futebol leve e cheio de toques dos húngaros? Será que eles haviam se esquecido de que Puskás não estava nem com 60% de sua plena forma física? Será que eles não viram que a Alemanha havia jogado com meio time reserva contra a mesma Hungria na primeira fase só para preservar o fôlego para os jogos mais agudos que viriam pela frente? Pois é. Todo mundo fechou os olhos para esses e muitos outros fatos, a Alemanha venceu a Hungria por 3 a 2 e ficou com a taça da Copa do Mundo de 1954. Zebra? Milagre? Pode até ser. Mas a enxurrada de fatos que cercaram aquele jogo faz com que o milagre se torne bem mais mortal e pouco espiritual. É hora de relembrar um dos jogos mais famosos da história do futebol mundial.
Pré-jogo
Alemanha e Hungria chegaram à final da Copa do Mundo de 1954 em condições totalmente opostas. Os húngaros simplesmente atropelaram seus rivais ao marcar 25 gols em apenas quatro jogos (!) e encantar o público suíço com partidas maravilhosas e as assinaturas de craques como Kocsis, Czibor, Hidegkuti e Puskás. Já a Alemanha avançou sem grandes exibições nem o futebol arte e letal dos rivais, mesmo tendo goleado Turquia (7 a 1) e Áustria (6 a 1) pelo caminho. Um fato que ocorreu lá na primeira fase do mundial e que seria determinante para aquela decisão foi o jogo entre as duas seleções realizado em 20 de junho, na cidade de Basel.
O técnico Sepp Herberger escalou apenas seis titulares a fim de poupar seus jogadores para o duelo que realmente interessava – o jogo contra a Turquia, que seria realizado três dias depois. Não valeria a pena sacrificar fisicamente os atletas alemães num jogo em que a derrota era mais do que certa. Dito e feito, os húngaros jogaram com seus titulares e massacraram a Alemanha por 8 a 3. No entanto, foi naquela partida que a Alemanha praticamente garantiu um ponto extra para a decisão quando o zagueiro Liebrich deu uma entrada por trás do astro Puskás, que machucou o tornozelo e ficou de fora das partidas seguintes. Ele até jogaria a final, mas bem abaixo de sua condição física ideal.
No dia da final, uma chuva encharcou o gramado do estádio Wankdorf, em Berna, o que certamente prejudicaria o desempenho dos húngaros, adeptos do futebol rápido, repleto de passes curtos e jogadas de efeito. Outro ponto de destaque foi o deslocamento de mais de 30 mil alemães para a final, o que transformou o estádio suíço num palco de uma torcida só, afinal, os húngaros não podiam deixar seu país por causa do bloqueio imposto pelo regime em vigor. Mesmo num ambiente hostil, ruim para seu jogo e com seu maior astro e capitão baleado, a Hungria entrou em campo como imensa favorita e pronta para ser campeã do mundo. A Alemanha era apenas uma coadjuvante e espectadora de luxo do baile anunciado pelos “especialistas”.
Primeiro tempo – O surpreendente equilíbrio
Quando a bola começou a rolar em Berna, era quase certo que a Hungria abriria o placar nos primeiros dez minutos de jogo. A prática estava presente no manual magiar por causa do pré-aquecimento antes dos jogos. E foi exatamente isso que aconteceu. Puskás, mesmo longe da forma física ideal, fez o primeiro gol logo aos seis minutos num chute rasteiro após cruzamento de Kocsis que desviou em Liebrich. Dois minutos depois, uma trapalhada entre o zagueiro alemão Kohlmeier e o goleiro Turek fez com que a bola sobrasse limpa para Czibor ampliar para a Hungria. O jogo tinha oito minutos e já estava 2 a 0 para a Hungria. Muitos já diziam “acabem logo essa peleja e deem a taça para os magiares!”.
Mas a Alemanha mostrou que não era nem de longe aquela equipe desinteressada da primeira fase que levara oito gols dos húngaros. Bem mais confiantes em si mesmos, os alemães deixaram a partida em pé de equilíbrio logo após o gol de Czibor, quando Zakariás recuou na fogueira para o goleiro Grosics e Morlock, de carrinho, diminuiu para 2 a 1. Aos 18´, o capitão alemão Fritz Walter cobrou um escanteio para a área, Grosics foi atrapalhado por Lóránt na hora de subir para pegar a bola e ela sobrou para Rahn, que conseguiu marcar o gol de empate num chute sem ângulo.
Para espanto geral, a Hungria não estava à frente do placar e a Alemanha jogava de igual para igual contra os magiares. Além disso, a tática armada por Sepp Herberger se mostrava muito eficiente e impecável. Fritz Walter ajudava na marcação do meio de campo, Eckel grudava no “falso nove” Hidegkuti, responsável pela construção de jogadas dos húngaros, e não deixava o jogador sequer pensar. A Alemanha não tinha pressa e esperava os ataques da Hungria para poder contra-atacar.
O que chamava a atenção era a força física dos alemães e a facilidade de domínio de bola e equilíbrio em campo dos jogadores, que eram muito beneficiados pelas chuteiras com travas parafusáveis (baixas ou altas, dependendo da condição do gramado) produzidas por Adolf “Adi” Dassler, fundador da adidas e praticamente um auxiliar técnico da seleção. Enquanto os alemães se mantinham firmes no escorregadio gramado de Berna, os húngaros sofriam com os escorregões e a impossibilidade de correr o que estavam acostumados.
Segundo tempo – Milagre! Milagre?
O intervalo fez bem para a Hungria, que começou a segunda etapa a todo vapor e por muito pouco não fez mais gols. Puskás quase fez mais um, mas o zagueiro Kohlmeier se redimiu da falha do primeiro tempo e salvou em cima da linha. Tempo depois, Kocsis, um dos maiores cabeceadores de todos os tempos, mandou uma bola na trave. Mas aí o desgaste das duríssimas partidas contra Brasil e Uruguai (esta com direito a prorrogação) começou a fraquejar os húngaros. Os magiares diminuíram o ritmo a partir dos 25 minutos e tentavam se preservar para a prorrogação. Incrivelmente, os alemães corriam e jogavam como se fossem imunes ao cansaço.
Mais veloz, mais inteiro e sem escorregar, o time de Sepp Herberger conseguiu o improvável aos 39´. Schäfer roubou uma bola no campo de defesa alemão, correu em direção ao ataque e cruzou na área húngara. Quatro jogadores subiram para tentar alcançar a bola, mas ela escapou de todo mundo e sobrou na entrada da área, onde estava Helmut Rahn. O atacante alemão dominou, pensou e executou um dos gols mais importantes da história alemã (quiçá o maior). Ele pegou a bola, driblou Lantos e chutou rasteiro, bonito, sem chance alguma para Grosics: 3 a 2.
O estádio não acreditava. A temida e imbatível Hungria levava uma virada apoteótica e incrível. A festa e o êxtase tomou conta dos alemães, que tinham que se segurar nos poucos minutos restantes para celebrarem um título inédito e improvável. A Hungria partiu para o desespero e teve duas chances para empatar. Na primeira, Czibor chutou à queima roupa e o goleiro alemão Turek fez uma defesa sensacional. Na segunda, Puskás até marcou, mas o gol foi anulado por impedimento.
Aos 45´, o inglês Willian Ling apitou o final do jogo e o resultado mais impossível para a maioria acontecia: a Alemanha derrotava a Hungria por 3 a 2, de virada, e conquistava seu primeiro título mundial. Era o imponderável! Era o Milagre de Berna! No calor do momento, era isso e muito mais. No entanto, aquele jogo foi apenas uma consequência de vários fatores que pré-determinaram o triunfo alemão.
A equipe de Sepp Herberger entrou em campo beneficiada pelos jogos fáceis que teve antes da final e bem melhor fisicamente que os húngaros. O gramado molhado facilitou o futebol força da equipe alemã e foi terrível para a velocidade húngara. A plena marcação de Eckel em Hidegkuti e a contusão de Puskás foram outros pontos cruciais para a vitória dos alemães, que jogaram de maneira mais inteligente e sem a soberba do rival. Um fato polêmico e questionado por muitos na época foi o suposto doping dos jogadores alemães (que correram anormalmente demais naquela partida), principalmente depois de vários deles terem sido internados em uma clínica por causa de uma “epidemia não esclarecida” e de Walter Brönninmann, um dos suíços responsáveis pela manutenção do estádio Wankdorf, ter de desentupir os ralos dos vestiários por causa de ampolas vazias.
Nos anos 2000, o médico da seleção naquela Copa, Franz Logan, então com 88 anos, confirmou que havia injetado vitamina C e glicose nos alemães, substâncias que não podiam (e nem podem) ser consideradas doping. Numa época em que não existiam exames para detectar substâncias ilícitas no sangue e na urina, fica difícil saber exatamente se os alemães tomaram mesmo algo para baterem os húngaros naquela final de Copa. Mas o fato é que naquele dia nasceu a fama e sina alemã de derrotar equipes tidas como imbatíveis e irresistíveis. E, embora seja difícil admitir, eles jogaram melhor do que os húngaros. A melhor avaliação daquele suposto “Milagre de Berna” está na frase de José Amádio, da histórica revista O Cruzeiro: “A Hungria merecia ganhar a Copa. Mas a Alemanha mereceu ganhar o jogo. E o jogo valia a Copa”. Ponto final.
Pós-jogo: o que aconteceu depois?
Alemanha: o time que entrou em campo contra a Hungria e conquistou o título mundial de 1954 nunca mais jogou junto depois daquela final. O futebol alemão se engrandeceu, passou a revelar craques do mais alto nível e a seleção voltou a uma final de Copa em 1966, quando perdeu para a Inglaterra. Em 1970, os alemães deram outra mostra de superação ao eliminar os ingleses do mundial do México ao vencer de virada por 3 a 2. Quatro anos depois, eles voltaram a conquistar uma Copa num filme bem parecido com o de 1954: enfrentaram uma seleção irresistível e favorita (a Holanda de Cruyff), saíram atrás do placar, mas viraram e venceram por 2 a 1. Não foi um milagre, mas também valeu uma Copa.
Hungria: depois da improvável derrota na final de 1954, o futebol húngaro jamais produziu jogadores do mesmo talento que aqueles comandados por Guzstáv Sebes. Em 1956, o país foi invadido pelas tropas soviéticas e o esquadrão magiar foi desfeito com a ida de várias estrelas para outros países (em especial à Espanha). Se a taça ficou com a Alemanha, a Hungria conseguiu a proeza de ser a seleção mais lembrada daquele mundial e uma das maiores de todos os tempos, ganhando a alcunha de um time que “não levou a Copa, mas conquistou o mundo”. As proezas e números daquela seleção seguem intactos na memória de muita gente e fica a dúvida se o futebol do país realmente seria uma potência nos dias de hoje se a Copa de 1954 tivesse ficado com os magiares. O vice foi amargo, mas o futebol húngaro naquela primeira metade dos anos 50 foi doce. E inesquecível.
Leia mais sobre a Alemanha de 1954 clicando aqui.
Leia mais sobre a mágica Hungria clicando aqui.
O trabalho Imortais do Futebol – textos do blog de Imortais do Futebol foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em imortaisdofutebol.com.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença.
HAHAHA em 50 Brasil era favorito, mas o Uruguai tinha um timaço tambem, A Hungria atropelaria a Alemanha. Agora pensem cm..
Hungria era tipo uma colonia da Alemanha, naqueles tempos de ”nazismo”, tenho a plena certeza de que os hungaros foram ameaçados..
Que artigo bem escrito! Parabéns que história linda da Alemanha superação, inovação ( as travas das chuteiras) e sobretudo muita auto estima.
deus te ouça meu caro
Deus te ouça meu caro!
Um dos jogos mais emocionantes da história das copas e da história do futebol. História linda demais! Excelente matéria! A Seleção Alemã é, sem dúvida, a seleção com mais tradição entre todas as outras. É a seleção que tem mais jogos em copas do mundo (99) e é a seleção que vencerá a copa ano que vem, no Brasil.
E ganhou mesmo, fora o 7×1! Este jogo teve o resultado mais injusto da história do futebol, mas justiça nunca foi a maior virtude deste esporte