Data: 18 de dezembro de 2005
O que estava em jogo: o título do Mundial de Clubes da FIFA de 2005
Local: International Stadium Yokohama, Yokohama, Japão.
Árbitro: Benito Archundia (MEX)
Público: 66.821 pessoas
Os Times:
São Paulo FC-BRA: Rogério Ceni; Fabão, Lugano e Edcarlos; Cicinho, Mineiro, Josué, Danilo e Júnior; Aloísio Chulapa (Grafite) e Amoroso. Técnico: Paulo Autuori.
Liverpool FC-ING: Pepe Reina; Finnan, Hyypiä, Carragher e Warnock (Riise); Xabi Alonso, Sissoko (Sinama Pongolle), Gerrard e Kewell; Morientes (Peter Crouch) e Luis García. Técnico: Rafa Benítez.
Placar: São Paulo 1×0 Liverpool (Gol: Mineiro-SPA, aos 27’ do 1º T).
“Místico é o TRIcolor!”
Por Guilherme Diniz
Depois de alguns anos de incertezas, enfim, a FIFA assumiu em definitivo a realização do Mundial de Clubes naquele ano de 2005. Era o início de uma nova era na competição realizada desde 1960 e com tantas histórias marcantes e esquadrões emblemáticos. E, naquela edição, o futuro campeão era tido como uma barbada: o Liverpool, que havia conseguido realizar o Milagre de Istambul meses antes ao derrotar o lendário Milan de Dida, Maldini, Kaká, Pirlo, Gattuso, Shevchenko e Crespo na final europeia após estar perdendo por 3 a 0, empatar e vencer nos pênaltis. Mais do que isso e a mística de sua camisa, a equipe inglesa vinha em uma crescente na temporada e estava há 11 jogos sem levar gols. O capitão dos Reds, Steven Gerrard, chegou a dizer que seu time “se sentia imbatível” naquele mês de dezembro de 2005. Só que ele não sabia quem estava do outro lado…
Na final, o Liverpool teve pela frente um clube que já havia derrotado o Dream Team do Barcelona em 1992. O temido Milan de Capello em 1993. O brasileiro com maior número de títulos internacionais: o São Paulo. Em finais daquele tamanho, o tricolor sempre se agigantou e conseguiu feitos impressionantes e até sobrenaturais. Vide a cobrança de falta de Raí, em 1992. Vide o gol “sem querer” de Müller, em 1993. Pois em 2005 um novo capítulo foi escrito com muito mais misticismo. Se o Liverpool estava há 11 jogos sem levar gols, tomou um logo aos 27’ do pequenino Mineiro, que recebeu de trivela de Aloísio e bateu, bateu, bateu. E, por mais que o Liverpool quisesse empatar ou virar, ele encontrou pela frente um goleiro chamado Rogério Ceni, que defendeu tudo e fez uma das defesas mais espetaculares da história em uma cobrança de falta de Gerrard. Além dele, o tricolor contou com uma atuação impecável de sua defesa e também com atuações soberbas da arbitragem, que anulou corretamente três gols dos ingleses por impedimento. Naquela noite em Yokohama, não teve jeito. Místico era o tricolor. É hora de relembrar.
Pré-jogo
Após organizar seu Mundial de Clubes em 2000, a FIFA até tentou seguir com o torneio em 2001, mas a quebra financeira de sua parceira, a ISL, ruiu as pretensões e a competição foi engavetada. Com isso, naquele mesmo ano de 2000, o Mundial Interclubes aconteceu normalmente, com a vitória do Boca sobre o Real por 2 a 1. Entre 2001 e 2004, o Mundial seguiu vivo no Japão, que viu os títulos do Bayern-ALE, Real Madrid-ESP, Boca Juniors-ARG e Porto-POR. Em 2004, após o caneco dos portugueses sobre o Once Caldas-COL, o Japão iria ver, a partir de 2005, o Mundial de Clubes da FIFA em definitivo. Naquele ano, enfim, participaram apenas campeões continentais vigentes, nada de time convidado nem campeão do país-sede. Era o formato tão desejado pela FIFA e por dirigentes.
O regulamento deixava bem claro a força dos times da Europa e América do Sul, que entrariam apenas nas semifinais. Nas “quartas”, os campeões das outras quatro confederações (Ásia, África, Oceania e América do Norte e Central) se enfrentaram para definir os adversários dos gigantes. Naquele ano, São Paulo-BRA e Liverpool-ING fizeram a decisão após derrotarem Al-Ittihad, da Arábia Saudita (3 a 2), e Deportivo Saprissa, da Costa Rica (3 a 0), respectivamente. Do lado tricolor, a equipe era praticamente a mesma que havia goleado o Athletico-PR na final da Libertadores por 4 a 0, com pequenas mudanças na zaga (Edcarlos no lugar de Alex) e no ataque (Aloísio no lugar de Luizão).
A espinha dorsal era a forte retaguarda formada por Rogério Ceni, Fabão e Lugano, os laterais que apoiavam constantemente o ataque – Júnior e Cicinho – e um meio de campo que armava, roubava, brigava e fazia de tudo graças à dupla Mineiro e Josué e o meia Danilo. Amoroso, mais avançado, era a esperança de gols.
O time de Paulo Autuori fez um Brasileirão apenas razoável após a conquista da América e não escondeu de ninguém que o foco era mesmo o Mundial. Quando jogava com o time completo, a equipe sobrava, mas o treinador foi mesclando seus atletas para evitar desgastes em dezembro e ter o time principal em boa forma. Do lado do Liverpool, a equipe também manteve a base campeã europeia – exceto pela ausência de Cissé, contundido -, havia conquistado a Supercopa da UEFA com triunfo por 3 a 1 sobre o CSKA-RUS e vinha bem no Campeonato Inglês, no pelotão de frente e com 10 jogos sem levar gols. A sequência aumentou para 11 depois do triunfo sobre o Deportivo Saprissa e deu ainda mais favoritismo aos ingleses. Gerrard, após a classificação para a final, disse que o Liverpool “se sentia imbatível”, e que o time “não queria apenas superar marcas, mas sim conquistar troféus”.
Muito se falava na época da diferença de altura dos jogadores ingleses perto dos brasileiros, o que iria beneficiar o jogo aéreo. Porém, aquele Liverpool não era tão temido como muitos supunham. Os laterais eram fracos e a zaga não tinha técnica, apenas altura. Já o meio de campo era bom por causa de Gerrard e Xabi Alonso, craques do setor, e o ataque podia causar problemas se Luis García e Morientes estivessem inspirados. No banco, o técnico Rafa Benítez poderia explorar a altura (2,01m) do grandalhão Peter Crouch, além de dar mobilidade pela lateral com o norueguês Riise. O São Paulo podia, sim, jogar contra o Liverpool e Rogério Ceni salientou isso na preleção. “Sabemos que nosso time é bem baixo, mas cada um tem que confiar em si mesmo. Eu confio em mim, no Cicinho, no Júnior, no Josué e sei que vamos ganhar”, disse o capitão. Tais palavras mexeram com o time, que entrou focado e concentrado para um jogo histórico que poderia fazer do São Paulo o primeiro clube brasileiro tricampeão mundial.
Primeiro tempo – Mineiro bateu, bateu, bateu!
A bola mal havia começado a rolar em Yokohama e o Liverpool já partiu pra cima do São Paulo, em jogada pela direita que Gerrard cruzou e Morientes cabeceou com perigo. Na sequência, o jogo teve que ser paralisado por alguns minutos por conta de uma invasão de campo, mas rapidamente a partida foi reiniciada. Jogando mais no contra-ataque, o tricolor esperava o Liverpool, fazia linhas de impedimento e queria jogar no erro do rival. Aos 8’, Danilo teve boa chance de jogada, mas estava impedido. Aos 10’, em escanteio, Fabão tirou da área e provou que a zaga tricolor poderia, sim, superar as investidas pelo alto dos ingleses. A partir dos 11’, o São Paulo começou a equilibrar mais as ações em jogadas pelo meio e Cicinho até chapelou Xabi Alonso aos 12’, o que levantou a torcida tricolor. Aos 14’, Amoroso tentou um lançamento para Júnior, mas Carragher conseguiu interceptar. A resposta do Liverpool veio um minuto depois, mas Edcarlos conseguiu afastar o perigo.
Aos 17’, Fabão cruzou e Reina espalmou. No rebote, Cicinho cruzou novamente para a área, mas a zaga rebateu. Aos 21’, grande chance tricolor com Amoroso, em tabela com Aloísio. O atacante passou pela marcação e chutou, mas a bola foi em cima do goleiro Reina. Logo depois, Cicinho ousou e chutou de fora da área, quase surpreendendo o goleiro inglês. Só dava São Paulo àquela altura e o jogo tinha um equilíbrio que poucos previam. Aos 24’, Aloísio recebeu cruzamento de Amoroso e quase desviou para o gol. Faltava pouco. Se o tricolor conseguisse encaixar uma jogada certeira, o gol ia sair. E, aos 27’, saiu.
Fabão tocou para Aloísio, na intermediária. O atacante ajeitou a bola com categoria no peito e, de trivela, lançou-a por cima da marcação. Como um raio, o volante Mineiro avançou livre, dominou com categoria e “bateu, bateu, bateu”, como narrou Galvão Bueno na lendária transmissão da partida. Gol do São Paulo! Era o fim da invencibilidade de 11 jogos e mais de 1000 minutos sem levar gols dos Reds! Que lindo gol de Mineiro. E que passe de Aloísio, que tirou sarro sobre o lance tempo depois.
“Brinquei que fui um Ronaldinho paraguaio e o Mineiro teve a frieza do baixinho Romário (risos). A gente treinava bastante e fazia este posicionamento. Quando dominei a bola, o neguinho (Mineiro) passou gritando. Já tentei dar este passe umas 100 vezes e não consigo mais. Deu certo na primeira vez”. – Aloísio, em entrevista ao site oficial do São Paulo.
A partir dali, o Liverpool começou a pressionar mais e, um minuto depois, Gerrard cobrou escanteio e Luis García acertou a trave de Rogério. O São Paulo tentou responder aos 31’, quando Danilo fez bela jogada pela esquerda, passou pelo marcador e tocou para Amoroso, mas o atacante foi desarmado por Xabi Alonso dentro da área. Dois minutos depois, a tabelinha Aloísio – Amoroso quase funcionou e Reina se antecipou para defender. Aos 34’, Gerrard recebeu sozinho dentro da área, mas chutou muito mal. Aos 38’, o capitão inglês cobrou falta, Luis García desviou para o gol e Rogério Ceni fez grande defesa. O Liverpool tentou roubar a bola no campo de defesa do São Paulo nos minutos seguintes, mas a retaguarda tricolor se fechou bem e garantiu a vantagem no primeiro tempo. Foi um jogo com mais chances dos Reds, mas longe da dominância esperada antes da partida. Bem, isso até vir a segunda etapa…
Segundo tempo – Angústia tricolor
Muito bem defensivamente e com a vantagem, era de se esperar que o São Paulo ficasse mais recuado na etapa complementar e jogasse no contra-ataque. Só que o time brasileiro fez seu torcedor sofrer muito, mas muito naqueles 45 minutos finais. Após uma bola alçada por Cicinho, aos 3’, em que Aloísio cabeceou para fora, o tricolor viu o Liverpool iniciar uma blitz incessante. Os ingleses não deixaram o rival brasileiro criar mais nada e só eles atacaram dali em diante. E a primeira grande chance foi aos 6’, após o Liverpool ganhar uma falta na entrada da área.
Gerrard foi para a bola. O capitão sabia que marcar um gol naquele lance deixaria o caminho aberto para os ingleses e a chance de virar seria maior. O meia chutou e a bola tinha endereço certo: o ângulo esquerdo do gol. Só que Rogério Ceni voou de maneira espetacular e defendeu, arrancando um berro do jogador inglês, que não acreditou no que viu. Foi simplesmente incrível. Uma defesa para emoldurar, cinematográfica, única. Foi praticamente um gol do São Paulo, anotado com as mãos de Ceni.
Na cobrança de escanteio, o goleirão foi buscar lá no alto e se chocou com Hyypiä. Ele recebeu atendimento médico, mas permaneceu em campo. Um minuto depois, Kewell avançou pela esquerda, ganhou de Cicinho e cruzou. A bola fez uma trajetória hostil e Rogério Ceni defendeu mais uma vez. Aos 10’, depois de minutos tortuosos, o São Paulo chegou dentro da área inglesa e Júnior foi derrubado. Os tricolores pediram pênalti, mas o árbitro mandou seguir. Na tentativa de contra-ataque, Gerrard foi derrubado por Lugano e o uruguaio levou cartão amarelo. Uma advertência barata, pois o defensor impediu de maneira brusca o ataque do rival. Hoje, seria vermelho direto. Na cobrança, a bola foi para a área e a linha de impedimento do tricolor funcionou para frear o ataque do rival.
Nos três minutos seguintes, o Liverpool viu seus ataques serem interrompidos por três impedimentos. Aos 16’, eis que Morientes, em sobra da defesa, levantou a bola para a pequena área e Luis García cabeceou no ângulo direito de Rogério. Empate? Não, o bandeirinha marcou impedimento. O time vermelho reclamou demais, mas seguiu pressionando. Estava claro que o São Paulo só ia se defender. Os ingleses tinham escanteios atrás de escanteios e levavam o torcedor tricolor ao desespero. Aos 19’, Luis García se livrou de Lugano e bateu para o gol quase sem ângulo, mas Rogério Ceni novamente fez grande defesa. Estava impecável o goleiro são-paulino.
Aos 21’, em novo escanteio, a bola saiu, mas fez curva e Hyypiä mandou para dentro, no entanto, o gol foi anulado. Os Reds continuaram na tática do chuveirinho a todo momento, mas erravam muito e a zaga tricolor ou tirava ou contava com as saídas precisas de Rogério. Um gol inglês parecia certo. Na transmissão, Galvão Bueno indagava: “até quando o São Paulo vai aguentar?”. Aos 30’, Grafite entrou no lugar de Aloísio para tentar algo diferente lá na frente com Amoroso, só que a bola insistia em permanecer no campo de defesa tricolor. Após alguns minutos sem grandes chances claras, o Liverpool mexeu e colocou Riise, Sinama Pongolle e Crouch em campo. No tudo ou nada, os ingleses tentavam como podiam, mas a fortaleza armada pelo São Paulo na área era algo impressionante. Nada passava. Fabão cortava tudo. Mineiro se desdobrava no meio. Lugano era o Dios da raça tão amado pelo torcedor. E Rogério Ceni era o guardião-mestre.
Aos 43’, uma enésima bola foi levantada na área, Crouch cabeceou para Luis García, que cruzou para Sinama completar para o gol. Gol? Não, outro impedimento! Era o sétimo impedimento do Liverpool no jogo. Àquela altura, o time inglês teve impressionantes 17 escanteios (contra nenhum do tricolor). Nos três minutos de acréscimos, o Liverpool apelou para o chutão, com Gerrard e Luis García isolando suas tentativas de gol. Aos 48’, Rogério Ceni cobrou o tiro de meta. E o árbitro apitou o final do jogo. São Paulo FC, tricampeão mundial de futebol.
Fim da tortura. Aos prantos, torcedores celebravam nas arquibancadas e nas mais diversas cidades do Brasil. Foi uma angústia absurda. O maior teste da mística tricolor em solo internacional. Pois aquele clube passou de maneira impressionante e sobre um outro clube tão místico, tão lendário. Em Mundiais, não tinha pra ninguém. Nem Barcelona, nem Milan, nem Liverpool. Só o São Paulo, místico e dono do Milagre de Yokohama naquela noite de 18 de dezembro de 2005.
Pós-jogo: o que aconteceu depois?
São Paulo: óbvio que vencer do jeito que venceu gerou críticas adversas após o título. Para alguns jornais, o time brasileiro “sofreu, mas foi campeão”, enquanto outros – mais especificamente os ingleses -, não gostaram da tática de “só defender ou invés de entreter”. Mas, como disse Amoroso tempo depois, não adiantaria nada “jogar bonito e ter a posse de bola se o título ficasse com o Liverpool”. Muito exaltado pelo gol, Mineiro destacou: “foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Vi o posicionamento do goleiro e toquei. Sabíamos que os ingleses marcariam nossas jogadas de ataque, então teria de ter uma surpresa”. Como não poderia deixar de ser, Rogério Ceni venceu a Bola de Ouro de melhor jogador do Mundial e alcançou o auge da carreira e a idolatria eterna dos tricolores.
O caneco só aumentou o retrospecto positivo do tricolor em Mundiais, com três vitórias em três disputas. No ano seguinte, a equipe perdeu algumas peças importantes como Cicinho, Amoroso e o técnico Paulo Autuori, mas trouxe Muricy Ramalho e seguiu competitivo. Na Libertadores, disputou outra final, porém, foi derrotado pelo Internacional, que se vestiu todo de vermelho para vencer o tricolor em pleno Morumbi por 2 a 1, e, depois, segurar o empate no Beira-Rio por 2 a 2 para conquistar a América pela primeira vez.
Liverpool: diziam que europeu não dá a mínima para Mundial, mas não foi bem isso o que se viu após o apito final. Desolados, os ingleses não escondiam a frustração pela perda do título após 17 escanteios e 21 chutes a gol contra 7 do rival, além dos questionamentos sobre a arbitragem. Os Reds tentaram retornar ao Mundial em 2007, quando disputaram a final da Liga dos Campeões da UEFA. Porém, os ingleses perderam para o Milan, que se vingou do revés de 2005. Só em 2019 que o Liverpool conseguiu, enfim, seu primeiro título mundial ao derrotar o Flamengo na decisão do Mundial com um gol, quem diria, de um brasileiro: Roberto Firmino. Além do título, os Reds vingaram a derrota para o rubro-negro na decisão de 1981.
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