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Quando o futebol ajudou a salvar um prisioneiro de Auschwitz

 

Por Leandro Stein

 

Nenhum outro local representa tanto a barbárie ocorrida na Segunda Guerra Mundial quanto Auschwitz. Mais de um milhão de pessoas foram exterminadas no campo de concentração nazista na Polônia. A maioria das vítimas era de origem judia, embora também estivessem presos inimigos de guerra, bem como outras populações execradas pelo Terceiro Reich – como ciganos, homossexuais e testemunhas de Jeová. Há 78 anos, porém, o pesadelo chegava ao fim. Em 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou os prisioneiros de Auschwitz, embora muitos tivessem sido mortos pelos nazistas com a aproximação dos soviéticos. Atualmente, a data marca o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.

O passado tenebroso de Auschwitz-Birkenau marca diversas histórias. A mais famosa delas, a da garota Anne Frank, cujo diário permanece ainda hoje como uma das principais referências sobre o massacre. Outra notável é a do italiano Rubino Romeo Salmonì, que inspirou o filme A Vida é Bela, que deu a Roberto Benigni o Oscar de Melhor Ator. Alguns episódios no campo de concentração, no entanto, também se envolvem com o futebol. E para um dos sobreviventes, o esporte ajudou a salvar a vida de muitos prisioneiros de guerra dentro da máquina de extermínio nazista.

O galês Ron Jones viveu em Auschwitz entre outubro de 1943 e janeiro de 1945. O soldado britânico não estava entre os mais oprimidos pelos nazistas, mas ainda assim convivia diariamente com o medo da morte. Ele sobreviveu e contou a sua passagem pelo mais temido dos campos de concentração até sua morte, aos 102 anos, em setembro de 2019. História que se tornou o livro intitulado “O goleiro de Auschwitz: a verdadeira história de um prisioneiro de guerra”.

A captura de Jones aconteceu no front da Líbia, quando tinha 23 anos. Levado inicialmente à Itália, o galês foi transferido posteriormente ao campo de trabalhos forçados E715, que fazia parte do complexo de Auschwitz. Trabalhava 12 horas por dia com substâncias químicas perigosas, ainda que tivesse permissão para jogar futebol com outros prisioneiros aos domingos.

“Acho que os alemães pensavam que aquele era o melhor jeito de nos manter quietos. Eles nos deram quatro uniformes, para times da Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda. Eu era sempre o goleiro galês. Acho que isso manteve a nossa sanidade, por mais que soe estranho como eu me lembre do futebol, considerando tudo o que acontecia além das cercas”, afirmou Jones, em entrevista à BBC em 2012.

Para Jones, o futebol também os salvou da morte tempos antes da libertação. Durante os últimos meses da guerra, eles eram forçados a longas caminhadas entre os campos, e muitos acabavam morrendo nestas marchas. “Podemos dizer que o futebol salvou as nossas vidas. Quem jogava estava mais em forma, claro. Mas, além disso, eles pertenciam a um grupo em que todos se ajudavam durante as marchas”, explica. “Quando você está nestas condições, o único prazer real era o futebol. Marcar um gol, fazer uma defesa ou discutir um impedimento eram as únicas maneiras de tentar se distrair daquela realidade”.

Em Auschwitz-Monowitz, onde a maioria dos concentrados eram prisioneiros de guerra, o galês era perturbado todas as noites por som de tiros – incomodado não pelo barulho, mas por saber que outros em situação parecida estavam sendo executados pelos alemães. Com o tempo, os britânicos ganharam permissão para jogar futebol em campos fora de seus campos de concentração. Por vezes, iam para as proximidades de Auschwitz-Birkenau, onde o extermínio de judeus em larga escala acontecia.

“No primeiro domingo em que jogamos lá, vimos as pessoas. Pareciam esqueletos humanos cavando trincheiras. Perguntamos quem eram, e os alemães falaram que eram judeus. A primeira coisa que você sentia era o cheiro das câmaras de gás. Se o vento tivesse em sua direção, o cheiro era terrível. Estávamos sempre com medo de quem poderia ser o próximo”, contou em outro artigo, publicado pelo Daily Mail.

Ron Jones pôde deixar o campo de concentração em 21 de janeiro, seis dias antes da chegada dos soviéticos. De certa forma, também teve a vida salva, já que o Exército Vermelho também matou milhares de prisioneiros de guerra aliados. “Caminhamos por 17 semanas e Deus sabe o quanto andamos entre Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha e Áustria. Talvez eu seja o último dos que jogavam futebol. Eu recebia cartões de Natal dos outros, mas nenhum neste ano. Então, aos 94 anos, achei que era hora de contar a história antes que fosse tarde demais”.

Somente a partir de 1993, depois de assistir ao filme “A Lista de Schindler”, é que Jones voltou a falar sobre a guerra. “Era muito difícil fazer qualquer menção, relembrar aquilo. Além disso, tínhamos vergonha por sermos prisioneiros”, contou ao site de notícias Wales Online. Já nos últimos anos, o galês fez parte de um filme da BBC, em que ex-prisioneiros retornaram ao campo de concentração. “Quando voltei lá, ainda podia ver os pobres judeus. Um dia, eu vi quatro ou cinco balançando em um poste. Eles tinham sido mortos pelos alemães. Nunca pude entender o motivo do ódio”.

A história de Ron Jones, quase 80 anos depois do fim de Auschwitz, é um livro aberto. Importante não somente para evidenciar as atrocidades cometidas no local. Também ressalta como o futebol pode ser uma válvula de escape. Mais que um jogo, pode ser uma razão de vida em meio ao terror.

 

 

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