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A época em que o Natal, não só o Boxing Day, também era uma data tradicional ao futebol inglês

Por Leandro Stein

 

O Boxing Day é a data mais aguardada do calendário no futebol inglês. Todas as principais divisões do país lotam o seu dia com partidas e levam multidões aos estádios. A tradição, porém, tinha outros contornos até a década de 1950. Afinal, o 26 de dezembro marcava apenas a segunda parte das festividades natalinas dentro de campo. Desde 1889, o 25 de dezembro também era recheado de jogos pelo Campeonato Inglês, inclusive durante as manhãs. O costume mandava que rivais se enfrentassem em jogos de ida e volta. O primeiro embate ocorria em pleno Natal, na casa de um deles. E, para igualar as condições de desgaste com viagem, os oponentes mediam forças novamente 24 horas depois, no estádio do outro clube envolvido, aí sim no Boxing Day. A intensidade da agenda, que hoje soa como completa insanidade, marcou uma era de arquibancadas abarrotadas e muitos gols no futebol local. Ingressos aos jogos serviam até como presente às crianças.

O primeiro Boxing Day futebolístico aconteceu em 1860. Não à toa, o jogo que inaugurou a tradição na modalidade também foi o primeiro disputado entre clubes, o Sheffield FC e o Hallam FC – em uma época na qual as regras sequer haviam sido unificadas, até então os duelos se limitavam a encontros de equipes estudantis. Já o costume de promover partidas no Natal seria um pouco posterior, firmado principalmente a partir de 1889/90. Naquele momento, o Campeonato Inglês vivia a sua segunda edição. Melhor time do país, o Preston North End encarava o Aston Villa, seu principal concorrente à taça. Embora os Lilywhites tivessem conquistado o título invicto da primeira edição da Football League, haviam perdido os dois confrontos anteriores ante os Villans. E diante da importância da peleja, mais de 9 mil espectadores foram ao estádio, um público bastante expressivo para a época. Assistiram à vitória do Preston por 3 a 2. O grande interesse dos torcedores logo tornou comum as rodadas no Natal.

As vantagens de 25 de dezembro, afinal, eram bastante claras. Em tempos de raros feriados nacionais, o Natal oferecia a chance de pessoas menos assíduas irem aos estádios. Além do mais, o futebol era um dos raros entretenimentos disponíveis, sobretudo à massa proletária. Os jogos integravam as festividades natalinas, com as multidões confraternizando e vibrando juntas nas arquibancadas. E, na época, os transportes públicos não diminuíam seu fluxo. Assim, ficava mais fácil para os torcedores se locomoverem até as praças esportivas, inclusive aos compromissos fora de casa.

Para facilitar as viagens, a Football League passou a reservar dérbis locais para o Natal, casados com o Boxing Day. Os rivais poderiam duelar em ida e volta, mesmo que o cansaço pesasse. Resultado disso são os placares surreais da época, com goleadas e revanches que não condiziam exatamente à diferença técnica entre as equipes. Costumava ser normal que um time, mesmo tomando uma traulitada no dia 25, comemorasse o triunfo no dia 26. “A sequência de resultados conta pouco nestes jogos. Lesões e cansaço geral desempenham um papel importante. A equipe mais feliz é aquela que possui os melhores reservas”, analisava o jornal The Times, em uma dessas rodadas natalinas.

E sequer havia um clima tão solidário nos jogos. Um episódio clássico aconteceu em 1890, durante o embate entre Blackburn e Darwen. As arquibancadas de Ewood Park estavam cheias para o clássico, mas, visando o compromisso pela Football League contra o Wolverhampton no Boxing Day, os Rovers decidiram escalar reservas. O Darwen se recusou a jogar, até aceitar entrar em campo. Todavia, a demora no consenso provocou a ira dos torcedores. Os presentes invadiram o gramado, quebraram as traves e também destruíram parte das tribunas. Diante da fúria incontrolável, o amistoso não aconteceu.

O futebol no Natal estava tão arraigado durante o início do Século XX que, em 1914, tornou-se uma das razões à confraternização entre soldados na trégua da Primeira Guerra Mundial. E se durante o conflito as competições oficiais foram paralisadas, ocorriam outras partidas para entreter a população. O futebol feminino ganhou impulso nesta época, com as jogadoras se tornando uma alternativa enquanto boa parte dos atletas profissionais estava no front. Pois foi justamente em 25 de dezembro de 1917 que aconteceu a estreia do Dick Kerr’s Ladies, principal equipe feminina da época. Formado por mulheres que trabalhavam na indústria de munições em Preston, o time goleou por 4 a 0 as adversárias, também funcionárias de uma fábrica. O amistoso com caráter beneficente reuniu 10 mil pessoas nas arquibancadas e a renda foi oferecida a um hospital local. Um alento à população em meio à dor.

O fim da Primeira Guerra Mundial retomou a tradição de Natal no Campeonato Inglês. Se havia alguma resistência à ideia, estava apenas entre aqueles que não gostavam de atuar no feriado religioso. A Football Association garantia que nenhum clube era obrigado a participar dos compromissos natalinos. Além disso, alguns jogadores se recusavam a jogar, incluindo estrelas da seleção. O caso mais curioso era o do Arsenal. O terreno onde Highbury foi erguido havia sido arrendado por uma escola de teologia e, em contrato, os Gunners não tinham permissão para atuar em datas religiosas. A situação mudou apenas em 1925, quando o clube comprou o terreno e pôde jogar no Natal. Mais de 33 mil londrinos viram a vitória por 3 a 0 sobre o Notts County.

Além do mais, as celebrações natalinas causaram outros episódios peculiares. Em 1931, o Clapton Orient (atual Leyton Orient) encararia o Bournemouth no Natal, em jogo válido pela terceira divisão do Campeonato Inglês. Para comemorar a data, o técnico do clube londrino deu um barril de cerveja aos seus jogadores na noite anterior. Resultado: o elenco chegou bêbado para disputar a partida e entrou em campo claramente trançando as pernas. Alguns jogadores, inclusive, caíam em campo de tão embriagados. A derrota por 2 a 1 ficou barata pelas condições deploráveis. E o Clapton se reergueria na ressaca do Boxing Day, com triunfo por 1 a 0.

Nem mesmo a Segunda Guerra Mundial parou os jogos realizados no Natal. Em 1940, as 40 partidas das ligas paralelas da época terminaram com incríveis 210 gols. E o armistício, que marcou nos anos posteriores o aumento exponencial do público nos estádios ingleses, tinha nas rodadas de Natal a maior expressão da legião de torcedores que tomava as arquibancadas. Em 1948, os duelos natalinos levaram um milhão de ingleses aos estádios. Já em 1949, cerca de 3,5 milhões de pessoas viram as partidas realizadas nos quatro dias ao redor do Boxing Day. Nesta época, era comum que os espectadores fizessem sua própria festa nas tribunas, entoando canções natalinas tradicionais, além de compartilharem cigarros e bebidas. Já os clubes ofereciam programas de jogos com enfeites especiais e saudações de seus jogadores. Os torcedores costumavam atirar aos atletas cascas de laranja – fruta racionada nas penúrias da guerra e muitas vezes entregue como presente de Natal.

O que parecia o apogeu do futebol no Natal, entretanto, logo entraria em desgraça. O gélido dezembro de 1956 seria decisivo para isso. O mau tempo e a crise de combustíveis impactaram diretamente na Football League. O gelo tomou os gramados e as tempestades de neve provocaram o adiamento de 15 jogos. Em consequência, o público no Natal e no Boxing Day de 1956 foi 50% menor do que no ano anterior. Além disso, os próprios jogadores sofreram problemas nas viagens. O ônibus do Torquay ficou preso em uma nevasca durante o Natal e os atletas tiveram que desatolar o veículo, chegando ao destino apenas na manhã do dia seguinte. Mesmo sem muitas horas para dormir antes do pontapé inicial, venceram o Brentford no Boxing Day.

Em 1957, as bilheterias do Boxing Day voltaram a subir, mas as do Natal sentiram a queda. Sem o mesmo atrativo financeiro, o 25 de dezembro passou a ser ignorado pelos clubes e reclamado pelos jogadores. Autor de quatro gols na vitória do Chelsea por 7 a 4 sobre o Portsmouth naquele ano, Jimmy Greaves usou sua notoriedade para escrever uma coluna contra as rodadas natalinas. “A maioria de nós gostaria de ver o fim do futebol no Natal. Não atrai grandes multidões e perturba a vida familiar de todos os atletas. Não podemos comer um pudim natalino. E se há um jogo fora de casa, também não há um Natal em nossos lares”, argumentou em setembro de 1958, ao Daily Express.

Como resultado da insatisfação geral, apenas 13 jogos da liga (três da primeira divisão) aconteceram em 25 de dezembro de 1958, após uma série de remarcações. No ano seguinte, enfim, os clubes da Football League decidiram acabar oficialmente com o futebol no Natal. Manteriam o Boxing Day, mas deixariam o feriado livre aos jogadores. Exceção feita a alguns duelos remarcados em 1959 e de um jogo do Blackpool em 1965, a rodada natalina não mais aconteceu. Até havia apoio do público e mesmo de algumas personalidades, como o lendário técnico Stan Cullis, para retomar a data no calendário boleiro. De qualquer forma, os apelos não eram suficientes.

O contexto do futebol inglês, além do mais, sufocava a rodada de Natal. Com os refletores se tornando mais comuns nos estádios, os clubes percebiam a vantagem de aumentar o número de partidas em épocas de temperaturas mais amenas e, assim, encher as arquibancadas. Ainda haveria a mudança no sistema de transportes do país durante a década de 1960, que atrapalharia as viagens dos espectadores no feriado. Por fim, o crescimento das transmissões no rádio e na televisão também influenciava o comportamento dos torcedores. Temendo perder seus dias de bilheterias mais lucrativas, a liga passou anos impedindo que os jogos do Boxing Day fossem exibidos na TV. A quebra só ocorreu em 1988, quando finalmente houve um acordo com as emissoras. Hoje em dia, é exatamente pela tela que a tradição se torna conhecida além das fronteiras.

 

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