Por Ubiratan Leal
Ayrton Senna era corintiano, isso era público. Ele também jogou uma pelada tradicional entre pilotos e jornalistas na Itália, há fotos disso. E também deu o pontapé inicial para um amistoso entre Brasil e Paris Saint-Germain no Parque dos Príncipes. Mas, por mais que alguém queira acreditar que o tricampeão da Fórmula 1 fosse um grande torcedor, isso não é verdade. Ele raramente mostrava muita preocupação com o que acontecia nos gramados. O que torna até curioso o fato de que sua imagem mais marcante tenha surgido devido ao futebol.
Era 1986. Senna era um piloto na terceira temporada na F-1. Ainda era uma promessa, mas daquelas que todos já percebiam que ia vingar. Tinha três vitórias, e mais um punhado de grandes atuações que só os muito acima da média são capazes. Naquela temporada, estava a bordo de um Lotus, um carro rápido, mas que não conseguia manter a competitividade em todas as corridas. Ainda assim, o brasileiro conseguia se manter na briga pelo título. Ele chegou a Detroit, onde se realizaria o Grande Prêmio dos Estados Unidos, como vice-líder do campeonato, com 27 pontos, ao lado do inglês Nigel Mansell, da Williams. Na frente de ambos estava o francês Alain Prost, McLaren, com 29 pontos. A disputa pelo título contava também com o também brasileiro Nelson Piquet, Williams, 19 pontos.
Mas era um momento em que a F-1 estava sem tanto espaço no noticiário, pois as atenções estavam no México, na Copa do Mundo. O Brasil havia começado com um futebol pouco convincente, mas passou confiança após fazer 4 a 0 na Polônia (terceira colocada no Mundial anterior) nas oitavas de final. Nas quartas, enfrentaria a grande seleção europeia do momento: a França de Platini. O brasileiro tem o costume de se sentir melhor e superior em tudo quando se fala em futebol, mas era um outro momento. Após o título de 1970, o Brasil teve uma década opaca e uma decepção gigantesca em 1982. A sensação era a de que o futebol brasileiro já não era o melhor do mundo, ainda mais naquela Copa mexicana. A França era a campeã europeia e tida como a favorita. Julio César, zagueiro da Seleção, chegou a declarar que “a raça vai vencer a técnica” antes do confronto de Guadalajara. Sim, a equipe dona da técnica era a francesa.
Naquele momento, uma fronteira acima, Senna disputava a segunda sessão oficial para o GP dos Estados Unidos. O brasileiro já estava se acostumando a ser o pole position, e não foi diferente naquele dia. Com 1min38s301, ele ficou com o melhor tempo. Mansell foi o segundo, 0s538 atrás. Logo após registrar sua volta mais rápida, Senna retornava aos boxes quando um mecânico da Lotus mostrou a placa: “Brasil 1, França 0”. O favoritismo francês parece ter motivado o Brasil a crescer naquela tarde de sábado, 21 de junho. Foi a melhor partida da Seleção, e a França respondeu à altura. O resultado foi um dos melhores jogos das Copas do Mundo, com diversas oportunidades criadas dos dois lados, grandes defesas dos dois goleiros e muitas emoções.
Senna contou o que ocorreu naquele dia em entrevista ao programa Roda Viva no final daquele ano:
“Eu saí do carro, fui direto para o meu apartamento no hotel para assistir ao jogo. E tinha uma conferência de imprensa que eu tinha que ir. Me meteram o pau! Disseram que eu não dava bola para imprensa. Eu estava a fim de assistir ao jogo do Brasil. Fui lá assistir ao jogo do Brasil e o meu projetista é francês, os mecânicos da Renault eram todos franceses. Conclusão: depois do jogo eu nem fui à garagem onde o pessoal trabalha durante a tarde toda preparando o carro pro dia seguinte, porque eu sabia que eles iriam me alugar, né? E nem apareci na garagem, só apareci no domingo cedo na pista, porque o Brasil tomou pau, né?”
Pois é… Após o gol de Careca, a França empatou com Platini. A Seleção acertou duas vezes a trave, Zico perdeu pênalti no segundo tempo, Carlos salvou o Brasil em falta como último homem não marcada sobre Bellone na prorrogação e a decisão foi para os pênaltis. Bats defendeu a cobrança de Sócrates, Platini chutou por cima, a cabeça de Carlos botou para dentro um chute na trave de Bellone e Júlio César acertou o poste direito. França 4 a 3.
Senna não participou dos ajustes de seu carro no fim da tarde de sábado, mas isso não parece ter atrapalhado muito no domingo, 22 de junho. O brasileiro manteve a ponta nas primeiras voltas. Foi ultrapassado por Mansell na segunda, recuperou a liderança pouco depois e teve de parar prematuramente nos boxes no 14 º giro, com um furo no pneu. Jacques Laffite (Ligier) era o primeiro, seguido por René Arnoux (Ligier), Mansell, Prost e Piquet. Senna era o sexto, mas tinha pneus novos e se aproximava do pelotão de frente.
O brasileiro da Lotus retomou a primeira posição quando os cinco primeiros foram aos boxes. Ele abriu grande vantagem e troca mais uma vez de compostos. Piquet assumiu a liderança, mas uma trapalhada da Williams em sua parada nos pits o fez perder 18 segundos e ficou bem atrás de Senna. Piquet tentou se recuperar. Fez a volta mais rápida e dava a impressão de que haveria uma briga brasileira nas voltas finais, mas acabou se chocando com o muro. O curioso é que seu carro atrapalhou o de Arnoux, que vinha em terceiro lugar e bateu também.
A vida ficou tranquila para Senna nas voltas finais. O brasileiro administrou a vantagem, e acompanhou de longe a briga entre os franceses Prost e Laffite, com o da Ligier levando vantagem a dez voltas do final. O italiano Michele Alboreto, da Ferrari, foi o quarto colocado, e Mansell, com problemas nos freios, o quinto. A zona de pontuação foi completada com o italiano Riccardo Patrese, da Brabham. Vencer a corrida no dia seguinte à eliminação do Brasil foi uma grande oportunidade para Senna ir à desforra com os mecânicos e engenheiros franceses que povoavam os boxes da Lotus. Aí, ele se aproveitou que havia visto um torcedor brasileiro nas arquibancadas. Ele conta, ainda na entrevista ao Roda Viva em 1986:
“Tinha muito brasileiro lá, sabe? Eu notei que tinha muito brasileiro. E quando eu passei na linha de chegada, que eu diminuí, eu estava esgotado, foi uma corrida dura fisicamente, eu vi um brasileiro do lado de lá da cerca, pra trás do bandeirinha, com uma bandeirinha do Brasil. E então foi instinto, eu parei e fazia sinal para o cara que estava do outro lado da cerca e ele não podia vir, o bandeirinha do meu lado e não entendia nada. E eu falava: [faz uma entonação com a voz para indicar que ele estava pedindo a bandeira de longe] “bandeira”, né, mas ninguém entendia nada.
Até que o bandeirinha olhou para mim, olhou pro cara e entendeu. Aí o bandeirinha foi lá, tomou a bandeira do torcedor que estava pendurado lá na cerca. Entendeu, isso é que é maravilhoso, né? O cara torcendo, né, e trouxe a bandeira para mim e eu dei a volta com a bandeira. Então foi um dia especial, né?”
Veja a chegada de Senna e o momento em que ele pega a bandeira (já está no momento certo, mas se por acaso não for automaticamente é a partir dos 2m08s):
Sim, o gesto mais marcante de Senna, a comemoração da vitória com uma volta segurando a bandeira brasileira, foi criada como uma forma de responder às provocações futebolísticas de colegas de trabalho franceses após uma derrota do Brasil em Copa do Mundo.
O curioso é que o Brasil não viu aquela corrida. Domingo à tarde, na segunda metade de junho, em um GP com o mesmo fuso horário da sede da Copa, era inevitável que houvesse uma partida do Mundial no mesmo horário da F-1. E havia. A Globo passou a corrida em compacto, preferindo transmitir ao vivo o futebol.
Não foi, porém, uma troca das piores. Os brasileiros deixavam de ver Senna reassumir a liderança do campeonato e criar uma tradição, mas tiveram a oportunidade de ver outro mito sul-americano entrar na história. Ao invés do GP dos Estados Unidos, o Brasil ficou com Argentina 2×1 Inglaterra, e viu Maradona mostrar como era a Mano de Dios e driblar toda a Inglaterra, do goleiro Shilton à Rainha Elizabeth, para marcar o gol mais espetacular da história das Copas do Mundo.
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Na década de 1980 era sensação de que o futebol brasileiro não era mais lá essas coisas. Hoje em dia isso é fato.
Será? A gente tinha ainda muito craque aqui, e onde a Seleção falhou, teve o Flamengo do Zico e o Grêmio do Renato pra compensar.
Um dia que o Imortais quiser um off-topic, “Esquadrão Imortal Mclaren 1988-1993” não seria uma má ideia, hein!
Hahaha seria espetacular!
85-91 seria mais apropriado. A Williams roubou os holofotes em 92, e em 93 a McLaren já estava uma porcaria, apesar das performances do Senna.