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Jogos Eternos – Peñarol 4×2 River Plate 1966

Gonçalves, capitão do Peñarol, e Sarnari, do River. Foto: PasionFutbol.
Gonçalves, capitão do Peñarol, e Sarnari, do River. Foto: PasionFutbol.

 

Data: 20 de maio de 1966

O que estava em jogo: o título da Copa Libertadores da América de 1966

Local: Estádio Nacional, em Santiago, Chile

Juiz: Claudio Vicuña (CHI)

Público: 39 mil pessoas

Os Times:

Club Atlético Peñarol: Mazurkiewicz; Lezcano; Pablo Forlán e Omar Caetano; Nelson Díaz (T. González, aos 44’ do 1º T) e Néstor Gonçalves; Abbadie, Pedro Rocha, Alberto Spencer, Cortés e Joya. Técnico: Roque Máspoli.

Club Atlético River Plate: Carrizo; Sainz (Lallana, aos 44’ do 1º T), Matosas, Vieytes e Grispo; Solari, Sarnari e Ermindo Onega; Luis Cubilla, Daniel Onega e Más. Técnico: Renato Cesarini.

Placar: Peñarol 4×2 River Plate. Gols: (Daniel Onega-RIV, aos 28’, e Solari-RIV, aos 42’ do 1º T; Spencer-PEN, aos 23’, e Matosas (RIV, contra), aos 28’ do 2º T. Spencer, aos 13’ do 1º T da prorrogação; Pedro Rocha-PEN, aos 4’ do 2º T da prorrogação).

 

“Ganada a Lo Macho”

Por Guilherme Diniz

Faltavam poucos minutos para o fim do jogo em Santiago, no Chile. As arquibancadas viam em campo o exemplo claro da palavra contraste. De um lado, um time em frangalhos, dilacerado. Alguns mostravam já um semblante de quase-choro. Do outro, jogadores em êxtase profundo, contando os segundos para o fim do jogo. Havia choro, também. Inclusive do capitão do time. Mas era choro de alegria. De raiva. De volta por cima. Ao apito do árbitro, a Copa Libertadores da América de 1966 tinha um dono. Um velho dono. Mas um improvável dono: o Peñarol. Em uma das reviravoltas mais surpreendentes e dramáticas de toda a história do torneio, o clube uruguaio foi, em alusão ao título deste texto e lembrando o célebre locutor Carlos Solé, macho. Raçudo. Teve garra. Perdendo por 2 a 0 no primeiro tempo e sem expectativa alguma de uma virada, viu em um gesto supostamente de deboche do rival a faísca para explodir a famosa garra aurinegra. Foi quando o goleiro Carrizo, ao invés de defender uma bola como qualquer goleiro, resolveu matá-la no peito.

Ahh… Se o estádio Nacional não achou aquilo digno, que diriam os jogadores do Peñarol? Será que os do River Plate não sabiam com quem eles estavam lidando? Mazurkiewicz. Pablo Forlán. Lezcano. Gonçalves. Cortés. Joya. Abbadie. Pedro Rocha. Alberto Spencer. Era um misto de jovens e veteranos que compunham um dos maiores esquadrões do planeta naqueles anos 60. Que trataram de mostrar a força carbonera. Eles diminuíram. Minutos depois, empataram. Na prorrogação, fizeram um. E mais outro. Virou goleada. Categórica. Única. Histórica. Uma remontada para os livros, filmes e contos.

Em campo, como bem disse o capitão Gonçalves, eles deixaram cair as lágrimas da alegria e da euforia. Imagine no Uruguai? Os velhinhos que acompanhavam com os ouvidos grudados em seus radinhos? Os garotos pulando nas ruas? As famílias vibrando e fazendo ecoar o grito de “campeón” pelos bairros de Montevidéu? O Peñarol era o primeiro tricampeão da América. Foi talvez a maior história dos mais de 120 anos do clube. Uma das mais lendárias de toda essa mística e quase sexagenária Copa Libertadores. E uma das maiores “tragédias” do River Plate, com drásticas consequências para sua torcida. É hora de relembrar.

 

Pré-jogo

Cortés, do Peñarol, vence o goleiro Sosa, do Nacional: aurinegros eliminaram o rival na Liberta em 1966. Foto: Conmebol.

 

A Libertadores de 1966 foi a primeira desde sua edição inaugural, lá em 1960, a contar, também, com clubes vice-campeões nacionais de seus países, mudança que gerou descontentamento das confederações do Brasil e da Colômbia, que protestaram com a Conmebol e não participaram do torneio. Mesmo assim, a competição era fortíssima e contava, entre outros, com o Independiente, bicampeão em 1964 e 1965 (leia mais clicando aqui!), Boca Juniors, Universidad de Chile, Olimpia, Alianza Lima, Nacional e os protagonistas deste texto, River Plate e Peñarol.

O River avançou para a segunda fase após oito vitórias, um empate e apenas uma derrota em dez jogos no Grupo 1, na primeira posição, com o rival Boca, que também se classificou, logo em seguida. Depois, os Millonarios tiveram pela frente o Independiente, o Boca e Guaraní-PAR. Mesmo diante dos rivais domésticos, a equipe comandada por Renato Cesarini carimbou a vaga para a final com três vitórias, dois empates e uma derrota, com destaque para as duas vitórias sobre o campeão Independiente, por 4 a 2 e por 2 a 1 – esta para definir o primeiro colocado e classificado do grupo.

Daniel Onega, maior artilheiro em uma só edição da Libertadores na história, com 17 gols em 1966. Foto: El Gráfico.

 

O time argentino mostrava enorme poder de fogo com o atacante Daniel Onega, que viria a ser o maior artilheiro de uma só Libertadores na história com incríveis 17 gols. Além disso, o River tinha um elenco muito equilibrado e a força de sua torcida no Monumental, que empurrava o time disposta a acabar de vez com o incômodo jejum de nove anos sem títulos – o último caneco havia sido levantado em 1957. No gol, o River contava com Amadeo Carrizo, um dos mais lendários goleiros da Argentina e já consagrado como um dos maiores da história na época (leia mais sobre ele clicando aqui). Além dele, o esquadrão de Cesarini tinha os uruguaios Roberto Matosas e Luis Cubilla, o talentoso irmão de Daniel Onega, Ermindo, e o incansável Solari.

Do lado uruguaio, o Peñarol queria voltar a uma final e tentar o tricampeonato após a derrota para o Independiente na decisão de 1965. Naquele ano, a equipe aurinegra chegou embalada após eliminar o Santos de Pelé em três duelos eletrizantes, mas sucumbiu diante dos rojos. Em 1966, o time passou em primeiro no Grupo 3 após oito vitórias e duas derrotas em dez jogos, superando equipes bolivianas e equatorianas e à frente do rival Nacional. Na fase seguinte, três vitórias e uma derrota nos jogos contra Universidad Católica-CHI e de novo o Nacional, que levou sonoros 3 a 0 dos aurinegros, com três gols de Pedro Rocha, em um dos duelos. O Peñarol ainda tinha grandes nomes do bicampeonato continental de 1960 e 1961 (leia mais clicando aqui) como Spencer, Joya, Caetano, Lezcano e Pedro Rocha.

Além desses nomes, a equipe ainda tinha o novato goleiro Mazurkiewicz (leia mais sobre ele clicando aqui!) e o defensor Pablo Forlán, pai de Diego Forlán. Mesmo em sua quinta final – era a quinta em apenas sete edições! – o time uruguaio era tachado de “velho” e ultrapassado. Abbadie, por exemplo, tinha 35 anos. Joya, 31, e Gonçalves, 30. Spencer tinha 28 anos, Lezcano, 29, e Caetano, 27. Os mais jovens eram Mazurkiewicz, que completaria 21 anos naquele ano, e Pablo Forlán, com 20. Mas o time uruguaio mantinha um alto nível de futebol e preparação física graças a Alberto Langlade, referência no esporte e em educação física na época e notável pelos métodos de treinamento que impunha aos jogadores. Isso explicava a força e o fôlego daquele time em disputar jogos intensos e decisivos durante tanto tempo, além da força dos atletas em jogadas aéreas.

Pedro Rocha, ao centro, no primeiro duelo.

 

Abbadie vence Carrizo…

 

… E deixa sua marca no primeiro duelo da final. Fotos: Site Campeón del Siglo

 

Tudo levava a crer que seria uma final muito disputada e equilibrada. E realmente foi. No primeiro jogo, em Montevidéu, o Peñarol venceu por 2 a 0 e foi com a vantagem do empate para a partida de volta, em Buenos Aires. Na época, não havia critério de gols marcados, e, por isso, em caso de vitória do River, haveria um terceiro jogo em campo neutro. No dia do duelo no Monumental, o Peñarol sofreu com o clima criado pelos argentinos. Antes do jogo, o ônibus que iria levar jogadores e comissão técnica até o estádio não apareceu. Com isso, os uruguaios tiveram que se dividir em táxis e carros particulares para ir até o Monumental.

Porém, o trânsito estava caótico e as intervenções fecharam cerca de oito quadras antes do estádio. Adivinhe? Sim, eles tiveram que ir a pé até lá, em meio aos torcedores do River. Milagrosamente, eles conseguiram chegar “inteiros”. Chega de sofrimento? Que nada! Em campo, a diretoria colocou cadeiras improvisadas em volta do gramado para acomodar tanta gente que havia no Monumental naquele dia. Isso sem qualquer divisão entre os atletas – vale lembrar que o estádio ainda não tinha a estrutura de hoje nem passado pela reforma pré-Copa de 1978.

Ou seja, o Peñarol teve que jogar com o inimigo literalmente “no seu pescoço” durante os 90 minutos. Sem contar os policiais que torciam para o River e acertaram Mazurkiewicz e Lezcano com cassetetes. Mesmo em um ambiente tão hostil, o time aurinegro ficou na frente do placar por duas vezes, mas permitiu a virada por 3 a 2 e a realização de um terceiro duelo. Na volta ao hotel, os torcedores do River provocaram e atacaram os uruguaios.

Festa de Ermindo Onega e os policiais no Monumental. Foto: Tenfield.

 

Com sangue nos olhos, os aurinegros queriam a revanche o mais rápido possível. A princípio, o jogo seria realizado 72 horas após o duelo de Buenos Aires, mas, na reunião da Conmebol entre os dirigentes, os argentinos propuseram jogar apenas 48 horas depois, em Santiago, no Chile. A ideia era impossibilitar o descanso dos “viejos” do Peñarol. Mas os uruguaios foram diretos: “juguemos ya”. Esse curto espaço de tempo fez muita gente acreditar que o River iria levar vantagem. Mas quem tinha vantagem, na prática, era o Peñarol. Primeiro: ele estava irado, queria a desforra. Segundo: o clube estava com melhor média de gols na soma dos dois jogos e poderia empatar no tempo normal e na prorrogação que ficaria com o título.

 

Primeiro Tempo – River campeón

Em Santiago, o estádio Nacional recebia um ótimo público, quase 40 mil pessoas. A grande maioria era local, pois a locomoção entre países na América, sem a enorme quantidade de voos que temos nos dias de hoje, era bem difícil. Prova disso foi o número de torcedores “autênticos” de cada equipe: cerca de cem do Peñarol e 500 do River. Nas tribunas, vários dirigentes e até o presidente chileno da época, Eduardo Frei Montalva. Havia muita tensão no ar pelo fato de o Peñarol querer revidar os acontecimentos do segundo jogo, mas, felizmente, o jogo seria limpo, sem faltas duras nem desentendimentos. Os times queriam jogar futebol, nada além disso. Quando o jogo começou, o Peñarol foi quem levou o primeiro perigo, aos três minutos, após falta levantada na área que resultou em uma cabeçada de Pedro Rocha que bateu na trave do goleiro Carrizo.

O River viu que o rival não estava para brincadeira e tratou de manter a bola sob seu domínio, a grande especialidade daquela equipe. Com passes rápidos e inteligência, os argentinos começaram a levar mais perigo à área uruguaia e Mazurkiewicz teve que trabalhar para evitar o primeiro gol do jogo. Sempre bem colocado, o camisa 1 mostrava porque era uma das grandes promessas do futebol no país. Primeiro, voou para mandar para escanteio um chute perigoso de Ermindo Onega. Depois, Daniel Onega cabeceou para o desvio de Mazurka. Após um intenso domínio, o River viu o Peñarol tentar chegar pela esquerda com Cortés, a partir dos 20’, mas a zaga argentina conseguia afastar o perigo com boas intervenções, principalmente de Matosas.

Foi então que, aos 28’, o River fez o primeiro. Cubilla, pela direita, foi para a linha de fundo e deixou com Solari. Este ganhou da marcação e cruzou forte para Daniel Onega, que emendou um chute preciso de primeira sem chance alguma para Mazurkiewicz: 1 a 0. O Peñarol sentiu. Nos minutos seguintes, só deu River, que quase fez o segundo com Más. Aos 30’, Díaz fez a primeira e única falta mais dura no jogo ao derrubar Solari pouco depois da grande área do River. Os médicos do time argentino entraram em campo para cuidar do jogador e, junto com eles, uma imensidão de fotógrafos, que paralizaram a partida por alguns minutos. Não foi nada grave, mas o tanto de gente que entrou em campo fez parecer um testemunho de cena de crime! Logo em seguida, o Peñarol quase empatou em lances de Spencer e Joya, mas Carrizo, duas vezes, evitou o gol.

Aos 42’, o River fez o segundo. Após bola alçada por Carrizo, Díaz perdeu a disputa com Solari, que avançou, se desvencilhou do uruguaio e mandou um petardo que foi no ângulo de Mazurka: 2 a 0. E que golaço! Foi um duro golpe nas pretensões aurinegras na partida. O estádio Nacional aplaudiu a atuação do River. Sólida e concentrada, a equipe era a clara favorita ao título. Na sequência, o Peñarol tentou responder de prontidão, mas uma cabeçada de Spencer pegou no travessão do goleiro Carrizo.

Aos 44’, os times fizeram as substituições que tinham direito: do lado uruguaio, Díaz, que estava errando muito e falhado no segundo gol, deu lugar a Tabaré González. Pelo River, Sainz saiu para a entrada de Lallana. Com isso, Cesarini mandou Solari para a defesa e colocou Lallana no meio. Ao apito do árbitro, o filme de 1965 voltou a assombrar a memória do torcedor aurinegro. Um time argentino vencia o Peñarol no mesmo estádio Nacional em uma final de Libertadores. Será que o clube uruguaio nunca mais iria vencer a competição? Vice outra vez? Parecia que sim. Bem, só parecia…

 

Segundo tempo – A esnobada da faísca

Antes de a bola começar a rolar na segunda etapa, o Peñarol trabalhou o lado psicológico nos vestiários. Os jogadores conversaram entre si para que jamais fosse esquecido o que eles haviam passado em Buenos Aires. O técnico Máspoli frisou aos jogadores que, se eles fizessem um gol, o River morreria. Bastava um gol. Quando a bola rolou, porém, o River seguiu controlando as ações ofensivas. O Peñarol ficava cada vez mais tenso. Os jogadores buscavam alternativas, mas nada surgia. Carrizo era soberano em sua meta e não deixava o time rival balançar suas redes. Mas foi o mesmo Carrizo quem acordou o Peñarol. Aos 15’, um levantamento para Spencer resultou em uma cabeçada do equatoriano sem grandes pretensões. A bola foi em direção ao camisa 1 do River, que matou no peito e depois a segurou.

O estádio ficou boquiaberto. Rumores foram ouvidos, inclusive na gravação da partida que você pode ver no final deste texto. Como um goleiro, em plena final de campeonato, tinha coragem e audácia de fazer aquilo? Para Carrizo, o lance não passou de corriqueiro, um recurso banal para dominar a bola que ele mesmo utilizava várias vezes. Mas, na época, foi visto como desrespeito. Uma compadrada. Foi a esnobada que causou faísca no barril de pólvora aurinegro. O estopim para surgir a garra uruguaia. A esperança da virada. Carrizo mexeu com o bicampeão da América. Com jogadores especialistas em finais que iriam transformar até então uma partida infeliz e sem sorte em algo grandioso, para a história.

Os times em campo: Peñarol sofreu no primeiro tempo com a posse de bola do River. No segundo, com as mudanças do técnico Cesarini, clube uruguaio deu o troco.

 

Quem mais se enervou foi Spencer, ainda mais após Gonçalves e companhia dizerem a ele que aquilo era uma afronta, uma zombaria, para despertar o equatoriano. Deu certo. E foi exatamente ele o autor do gol da reviravolta. Aos 23’, após colocar a mão na bola, Daniel Onega causou falta para o Peñarol. O capitão Gonçalves cobrou para a área e Spencer apareceu de sopetão para mandar a bola pro fundo do gol. Carrizo só olhou: 2 a 1. O goleiro argentino ficou assustado. A partir dali, ataques e mais ataques vinham em sua direção. Ele ficava cada vez mais pálido. O seguro e soberbo de antes dava lugar a uma figura de pânico. Cinco minutos depois, Abbadie surgiu na entrada da área, chutou forte, a bola bateu em Matosas e enganou Carrizo: 2 a 2.

Era o empate. O lado aurinegro atrás do gol argentino pulou de alegria. O estádio Nacional, com torcida voltada para o River, começava a mudar de lado. Uma nova multidão de fotógrafos entrou em campo, bem como os reservas e a comissão técnica do Peñarol. Foi um gol gritado, extravasado. Se antes era apenas Carrizo quem mostrava um semblante de medo, agora eram os jogadores do River que também empalideciam.

Carrizo e a bola no fundo do gol: lendário goleiro argentino foi buscar a redonda quatro vezes…

 

Os argentinos tinham menos de 20 minutos para buscar o gol de sua Copa. Mas ela já escorria por entre os dedos. Deslizava e ia de encontro às mãos calejadas dos uruguaios, acostumados a levantá-la. Os Millonarios tentaram com Lallana e Onega, mas a zaga e Mazurka estavam impecáveis. Nada mais iria passar pela meta aurinegra. Do outro lado, Spencer quase virou ainda no tempo regulamentar ao cabecear e Carrizo soltar, mas a zaga conseguiu tirar. O atacante ainda teve uma oportunidade num chute por cobertura, mas a bola subiu demais. Ao apito do árbitro chileno, a final teria mais meia hora. Era tudo o que o River não queria. E o suficiente para o Peñarol virar e vencer aquela partida. Eles estavam ligados, alucinados. A fibra charrúa transbordava pelo gramado. Era nítida. Como era cada vez mais nítida a Libertadores com passagem só de ida para Montevidéu.

 

Prorrogação – iLa Épica Tercera!

O River bem que tentou alguma ação nos primeiros minutos da prorrogação, já sob iluminação artificial, mas Mazurkiewicz e a zaga uruguaia tiravam todas. Quando tomava a bola para si, o Peñarol era irresistível, rápido, principalmente pelas pontas, com Joya de um lado e Pedro Rocha do outro. Pelo meio, Spencer gelava a espinha da zaga com suas aparições e presença de área nas jogadas aéreas. E foi em uma delas que saiu o terceiro gol. Aos 13’, uma cobrança de falta ensaiada foi ao encontro do lateral Pablo Forlán.

O jovem correu e olhou para a área, repleta de camisas brancas do River, mas uma única amarela e negra: era a de Spencer. Forlán não hesitou e cruzou. Ele sabia que a bola iria procurar um dos maiores cabeceadores da história do futebol. E encontrou. Spencer testou perfeito, no canto oposto de Carrizo: 3 a 2. Frenesi uruguaia! Novas invasões, corrida de alegria de Forlán na pista lateral, gritos e mais gritos nas arquibancadas. Os chilenos estavam contagiados pela garra e técnica daquele Peñarol.

Dois minutos depois, o árbitro encerrou o primeiro tempo extra e iniciou a segunda etapa, que continuou com avanços aurinegros e incredulidade argentina. Logo aos 4’, o Peñarol tocava a bola no campo de ataque quando Cortés viu Rocha avançar pelo meio da área millonaria. Ele levantou e o Verdugo cabeceou, a bola foi no cantinho e Carrizo aceitou um gol de maneira constrangedora, sem nem pular: 4 a 2. Era uma soberania impressionante. Uma mudança total no protagonismo. O Peñarol era campeão. Nos minutos que ainda corriam, o esquadrão uruguaio manteve a bola no ataque e, claro, ganhou tempo, agora seu aliado. Era hora de jogar na experiência. Apenas esperar o tricampeonato. O capitão Gonçalves, o eterno capitán, não conseguia segurar as lágrimas. Nem ele nem centenas de milhares de torcedores em todo Uruguai.

 

“Joguei os últimos minutos da final de Santiago chorando, pensando naquele velhinho escutando o jogo na rádio e na alegria das crianças. Naquele momento, vinha todo o Uruguai na cabeça.” Néstor “Tito” Gonçalves, capitão do Peñarol em 1966, no livro “Peñarol Campeón del Mundo”, de Silvia Pérez e Luis Prats, Editora Banda Oriental, 2016.

 

Emocionados, os jogadores do Uruguai dão a volta olímpica em Santiago. Foto: Padre y Decano.

 

O técnico Roque Máspoli (centro) celebra o título histórico. Foto: Conmebol.

 

Festa aurinegra na volta pra casa, em Montevidéu. Foto: Arquivo / Site do Peñarol.

 

Ao apito do árbitro Vicuña, as lágrimas de Gonçalves se juntaram às dos companheiros de campo, dos dirigentes, da comissão técnica. Os chamados “viejos” do Peñarol eram tricampeões da América. Os primeiros a levantar a mais cobiçada taça do continente por três vezes. Viraram um 0 a 2 para 4 a 2 em 120 minutos. Foi a vitória da garra. Do espírito de luta. A vitória que veio da alma, contra tudo o que eles haviam sofrido em Buenos Aires. E um desastre consumado do River, que começou a perder a decisão com as mudanças equivocadas do técnico Cesarini antes do intervalo, ao tirar Solari do meio de campo e recuar Ermindo Onega, abrindo a defesa e desarticulando o ataque. Que viu Carrizo usar uma jogada equivocada em um momento crucial do jogo. E uma total falta de liderança no time. Mas o pior ainda estava por vir: a volta pra casa e o surgimento de um estigmatizante apelido para o clube argentino…

 

Pós-jogo: O que aconteceu depois?

Peñarol: a festa em Montevidéu foi simplesmente épica. Não se via tanta gente e carros nas ruas da cidade desde o Maracanazo de 1950. Até caminhões levavam pessoas até o centro da capital. Uns juraram que bandeiras do rival Nacional foram vistas no meio das comemorações, que foi, sobretudo, uma vitória uruguaia sobre a Argentina (eram outros tempos, de fato…). No dia seguinte, as delegações de River e Peñarol se cruzaram no aeroporto de Santiago. Em meio a calmaria, uma voz (que até hoje não se sabe de onde surgiu) bradou nos auto-falantes do saguão: “quem é o papai do River? Peñarol!”. As risadas tomaram conta do local e os jogadores do Peñarol não sabiam onde se esconder, enquanto os do River mantinham as facetas de tristeza e apatia.

O capitão Gonçalves disse que, se fosse o contrário, os aurinegros não teriam deixado barato… Meses depois, o Peñarol sacramentou um ano mágico com a conquista do Mundial Interclubes sobre o Real Madrid, mas só voltaria a erguer um troféu da Libertadores em 1982, quando derrotou mais uma vez o River Plate pelo caminho – com um 4 a 2 em plena Buenos Aires – e venceu a final contra o Cobreloa-CHI, no mesmo estádio Nacional, em Santiago (leia mais clicando aqui). Em 1987, eis que o time voltou a uma decisão de Libertadores. De novo, a finalíssima foi em Santiago. De novo, no estádio Nacional. E, de novo, deu Peñarol, com drama, sofrimento e um gol espírita de Diego Aguirre no último minuto da prorrogação contra o América de Cali-COL.

Realmente o estádio chileno foi um notável talismã aurinegro. Desde então, o clube não conseguiu mais levantar a mais nobre taça continental, mas levantou seu próprio estádio: o Campeón del Siglo. E sabe quem foi o time convidado para a inauguração? O River Plate. Resultado? Vitória do Peñarol por 4 a 1, com o primeiro gol do estádio marcado por Diego Forlán, filho de Pablo, presente naquela final de 1966.

Diego Forlán, filho de Pablo Forlán, marcou o primeiro gol da história do estádio Campeón del Siglo justamente contra o River Plate. Foto: Tenfield.

 

O time para a história – Em pé: Caetano, Mazurkiewicz, Gonçalves, Díaz, Lezcano, Forlán e o técnico Máspoli. Agachados: Abbadie, Pedro Rocha, Spencer, Cortés e Joya.

 

River Plate: além de perder a final, o título e a chance de acabar com a seca de conquistas – que só acabaria em 1975 -, o River teve que conviver com o surgimento do apelido de “gallinas”, uma alcunha lembrada até hoje pelos rivais. A brincadeira começou em uma partida contra o Banfield, nove dias depois da decisão continental. Os torcedores mandaram a campo uma galinha branca com uma tarja vermelha simbolizando o River. Tiraram uma foto, ela ganhou as manchetes do país e a mania pegou.

A brincadeira do Banfield que marcou aquele River… Torcida é fogo!

 

Além desse estigma, começou uma outra era no clube: a era do final 6. Nas três décadas seguintes, o River esteve nas finais da Libertadores de 1976, 1986 e 1996. Em 1976, despachou o Peñarol no triangular semifinal, mas perdeu a decisão para o Cruzeiro de Jairzinho e companhia (leia mais clicando aqui). Em 1986, levantou sua primeira Liberta (leia mais clicando aqui). E, em 1996, faturou o bicampeonato (leia mais clicando aqui), quem diria, sob a batuta de um uruguaio: Enzo Francescoli. Em 1999, em sua partida de despedida, o craque fez dois gols no amistoso contra (adivinhe) o Peñarol, no Monumental. Para alívio da torcida, deu River: 4 a 0.

Francescoli, único do River em meio a imensidão aurinegra, em 1999: uruguaio deixou a torcida feliz naquela goleada sobre o rival de outrora. Foto: Arquivo / Site do Peñarol.

 

Leia mais sobre o Peñarol de 1966 clicando aqui.

 

Extras:

Veja os gols daquele jogo eterno.

Veja abaixo a partida completa. A matada no peito de Carrizo é a partir de 53’23”.


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