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FLN – Os Soldados de Chuteiras

Por Rafael Abduche

 

Que a história da Guerra de Independência da Argélia é amplamente divulgada pelo país africano, para manter viva a memória da liberdade conseguida com luta e sangue, é só pegar um livro de História para constatar. Mas o que poucos sabem é que o futebol virou uma arma poderosa nessa disputa. Para uma equipe formada clandestinamente, o gramado se transformou em um front de batalha e seus jogadores foram verdadeiros soldados, dando voz – através da visibilidade que o futebol já tinha em uma época midiaticamente embrionária – aos milhões de argelinos que clamavam pela independência do país. Trocando os capacetes e armaduras pelas chuteiras com travas de metal, esses jogadores carregavam no peito a sigla que já estava na boca de todo argelino: FLN.

As três letras se referem ao Front de Libération Nationale – Frente de Libertação Nacional, em português -, partido que foi parte do corpo revolucionário que tomou as rédeas da Guerra de Independência do país africano, que se iniciou em 1954. A mistura da guerra com o futebol ocorreu de maneira inusitada, com um engajamento por parte dos atletas que é difícil de se ver nos dias de hoje até mesmo nos jogadores mais politizados. De maneira surpreendente, eles trocaram seus clubes por um ideal, pela libertação de seu país. Mesmo que aquilo custasse a perda do emprego, dinheiro e estabilidade. Para eles, a Argélia vinha em primeiro lugar. É hora de relembrar.

 

O contexto

Alguns dos líderes do FLN: Mohamed Khider, Mostefa Lacheraf, Hocine Aït Ahmed, Mohamed Boudiaf e Ahmed Ben Bella.

 

Na noite de 13 de abril de 1958, uma fuga de dez jogadores argelinos que atuavam em clubes franceses chamou a atenção de dirigentes de clubes franceses. Não só pelo fato inusitado, mas por alguns desses jogadores, como o craque do Saint-Étienne Rachid Mekhloufi e o zagueiro do Monaco Mustapha Zitouni, atuarem também na seleção francesa – apesar de argelinos, eles não podiam jogar pelo seu país natal já que a FIFA não tinha a colônia francesa como um de seus filiados. Mekhloufi fez 25 gols na temporada 1956-1957 e foi o melhor jogador do campeonato francês do ano anterior, em que conquistou o primeiro dos 10 títulos do Saint-Étienne da Ligue 1. Zitouni, por outro lado, era o melhor zagueiro da França na época. Para poder dimensionar a qualidade do defensor, um mês antes de partir, anulou Di Stéfano em um amistoso entre França e Espanha.

Rachid Mekhloufi, o grande craque do FLN. Foto: Público.pt (POR).

 

Quando a mídia descobriu o real motivo da fuga, os atletas estavam reunidos indo em direção a Túnis, capital da Tunísia e do governo provisório da Argélia durante a guerra. Eles iriam se encontrar com outros jogadores argelinos para formar o que seria considerado mais tarde a primeira seleção da Argélia. A questão aí é que o time, formado clandestinamente e sem a anuência da FIFA, seria um símbolo poderoso do FLN ao ajudar a divulgar para o mundo a luta da Argélia pela independência.

Mustapha Zitouni, Kaddour Bekhloufi, Abdelaziz Bentifour,
Abderrahmane Boubekeur e Amar Rouaï. Foto: Université des Sciences et de la Technologie Houari Boumediene.

 

Após a Segunda Guerra Mundial e a independência da Indochina – no sudeste asiático – da França, o momento histórico era adequado para os rebeldes argelinos reivindicarem sua soberania. Além disso, países vizinhos da Argélia, como Marrocos e Tunísia, conquistaram a independência dos franceses em 1956. O FLN, liderado por Ahmed Ben Bella, tomou a frente do movimento, marcado pela luta de guerrilha por parte dos argelinos. No total, estima-se que 260 mil pessoas tenham morrido. Cada investida dos rebeldes era respondida desproporcionalmente pelos franceses. A guerra começou em 1954, e, em 1958 – coincidentemente a data que marcou a fundação do FLN -, a disputa bélica foi um dos principais motivos para o General Charles De Gaulle, veterano nos combates da Segunda Guerra, assumir o poder na França. Uma das principais ações de De Gaulle foi negociar a paz com a Argélia, por meio de um plebiscito. Nesse contexto, a guerra teve fim em 1962 e a Argélia pôde, enfim, soltar o grito de liberdade.

 

O plano

 

Dessa forma, a fuga de jogadores argelinos não foi um movimento espontâneo. O plano começou a ser desenhado no fim de 1957, quando Mohamed Boumezrag, membro do FLN, teve a ideia de usar o futebol para catapultar o movimento. A fundação da equipe ocorreu em um imóvel em Bem Aknoun, uma província com cerca de 20.000 habitantes perto de Argel, capital da Argélia. Além de Boumezrag, outros dois jogadores foram fundamentais para que o projeto pudesse virar realidade: Mohamed Maouche, jogador do Stade de Reims, e Abdelaziz Ben Tifour, companheiro de Zitouni no Monaco e jogador da seleção francesa na Copa de 1954. Ter um nome de peso como Ben Tifour ajudou a convencer os outros jogadores a fazerem parte da execução do plano. Ele e Maouche expuseram o projeto para os jogadores argelinos que atuavam na França.

Zitouni, grande defensor dos anos 50. Foto: AS Monaco.

 

Brahimi, que viria a ser o centroavante do FLN no final dos anos 50.

 

O time do FLN na baía de Ha Long Bay, no Vietnã, em 1959. Foto: Embaixada da Argélia no Vietnã.

 

O curioso é que todos os jogadores foram avisados do projeto audacioso com antecedência, com a exceção de Mekhloufi. A razão do contato tardio ao que viria a ser o craque daquele time era seu pai, que era policial. Qualquer conversa entre o jogador e ele poderia arruinar um plano que havia sendo desenhado há alguns meses. Por isso, o aviso foi feito a Mekhloufi um dia antes de partir, como o próprio atleta contou, em um documentário produzido pelo periódico L’Équipe:

“Eles me falaram: nós vamos a Túnis amanhã. Eu era apolítico, mas o que me fez participar (do projeto) era a ideia dos franceses sobre Argélia, como eles nos consideravam, rejeitavam e maltratavam”.

 

O plano para atrair Mekhloufi era perfeito, mas o FLN não contava que o atleta ia se machucar na partida entre Saint-Étienne e Béziers, logo antes do embarque para Túnis. O jogador foi levado para o hospital com um machucado na cabeça, e, para resgatá-lo, membros do FLN entraram no local disfarçados de enfermeiros. Uma cena de filme, pouco crível se contada por um terceiro, mas confirmada pelo próprio Rachid Mekhloufi no mesmo documentário do L`Équipe.

 

A viagem e a concepção do time

O time no aeroporto da Tunísia, naquele final de anos 50. Foto: Université des Sciences et de la Technologie Houari Boumediene.

 

Os atletas viajaram em dois grupos, um pela Suíça e outro pela Itália. Nenhum jogador viajava no mesmo vagão do outro, a fim de que os fiscais dos trens não descobrissem que havia um plano em conjunto. A pedido do FLN, os jogadores viajavam com pouquíssimos pertences pessoais. Amar Rouaï, por exemplo, afirmou ter embarcado em um trem com apenas a roupa do corpo. Por outro lado, Mekhloufi, que saíra do hospital algumas horas antes, estava atrasado, e a notícia sobre uma fuga de jogadores argelinos já começava a se espalhar pela França. Ele conseguiu passar na fronteira para a Suíça por sorte, já que os guardas franceses do local ainda não estavam sabendo da notícia. Mas se esses jogadores conseguiram embarcar, Maouche, um dos cérebros do plano, acabou detido pela polícia francesa e ficou preso durante 11 meses. Somente após esse período ele conseguiu reunir o resto dos jogadores argelinos que atuavam na França e desejaram participar da rebelião.

A base do FLN no final dos anos 50: esquema ousado e ofensivo resultou em várias goleadas.

 

Além de Mekhloufi – o craque do time – Zitouni, Ben Tifour, Rouaï e Maouche, a equipe do FLN contava também com Brahimi, um centroavante com faro de gol nato que jogava no Toulouse e já havia jogado na seleção francesa. Ele havia sido campeão da Copa da França no ano anterior, quando o Toulouse – que ganhava o seu primeiro título à época – bateu o Angers por 6 a 3 com um gol de Brahimi. Os soldados-atletas recebiam um salário de 50000 mil francos, o que equivalia a uma quantia de três a cinco vezes menos o que recebiam em seus clubes. Uma vez formada, a equipe precisava encontrar adversários para que pudesse marcar seus jogos.

Essa foi outra dificuldade encontrada pelos argelinos: pressionada pelos clubes franceses que perderam seus jogadores, a FIFA ameaçou excluir do quadro de associadas as confederações que aceitassem disputar um amistoso contra o FLN. Mesmo assim, em tempos de Guerra Fria, o time conseguiu alianças com países do bloco socialista – principalmente países que apoiavam a causa argelina – para jogar algumas partidas no leste europeu, no Oriente Médio e na antiga Indochina. O time do FLN, inclusive, durante uma de suas partidas, encontrou Ho Chi Minh, líder do movimento para a independência do Vietnã, e, à época, presidente do país do sul da Ásia.

O Primeiro-Ministro Vietnamita Phan Van Dong cumprimenta os jogadores do FLN em Novembro de 1959. Foto: Embaixada da Argélia no Vietnã.

 

Com a bola nos pés, a equipe do FLN entrava em campo para se divertir durante as excursões. O objetivo era jogar um futebol solto, envolvente e alegre, justamente o DNA do jogo de Mekhloufi. Por isso, rapidamente se transformaram nos Globetrotters do futebol e conseguiram resultados expressivos. De 91 jogos disputados, foram 65 vitórias, 13 empates e 13 derrotas. Um aproveitamento de 76%, igual a de grandes times europeus que dominam seus campeonatos locais atualmente. Além disso, foram 385 gols marcados – uma média absurda de 4,23 gols por jogo – e 127 sofridos.

Os dois primeiros jogos foram contra coirmãos na causa da independência: Marrocos e Tunísia. E duas vitórias para o FLN, por 2 a 0 e 6 a 1, respectivamente. Dos triunfos, a vitória mais marcante foi um 6 a 1 sobre a Iugoslávia, que viria a ser quarta colocada na Copa de 1962, e um 6 a 0 sobre a URSS. Além disso, eles bateram a Hungria por 6 a 2 – que, por mais que já não contasse com vários jogadores, ainda tinha um resquício da grande geração que foi vice-campeã do mundo em 1954 -, num outro ponto alto desse time dentro de campo. Amar Rouaï, jogador importante daquele esquadrão, resumiu o sentimento de vestir a camisa da independência, em entrevista para o jornal L`Équipe:

 

“Pagamos um preço pela independência: nós perdemos nossas carreiras, perdemos dinheiro. Mas o dinheiro não é tudo, né?”

 

A causa foi recompensada

Em 1965, a Argélia disputou um amistoso contra o Brasil, então bicampeão mundial.

 

Pelé, claro, foi uma das estrelas.

 

Ahmed Ben Bella (centro), presidente da Argélia, entre Pelé e Garrincha.

 

Pelé e Garrincha na chegada à Argel. Fotos: So Foot, Wikimand, Chouf-Chouf e Acervo IF.

 

Após a independência, a FIFA reconheceu a seleção da Argélia como um de seus filiados. Nas duas primeiras partidas como seleção argelina, duas grandes vitórias: 4 a 0 contra a Tchecoslováquia – então vice-campeã mundial –, em 1963, e 2 a 0 sobre a Alemanha Ocidental, em 1964. Em junho de 1965, a equipe ainda enfrentou o Brasil bicampeão mundial, mas acabou derrotada por 3 a 0, gols de Pelé, Dudu e Gérson.

Os jogadores, ameaçados durante o período que vestiram a camisa do FLN, ou decidiram voltar para a Argélia e abandonar a carreira de atleta profissional, como o caso do veterano Ben Tifour, ou voltaram para seus clubes na França, sem punições. Mekhloufi voltou para o Saint-Étienne, onde ainda ganhou o título da Copa da França de 1968 e disputou mais de 200 jogos pelo clube. Ferhat Abbas, primeiro presidente do governo provisório da Argélia em 1961, chegou a declarar: “O time do FLN fez a causa da independência ganhar 10 anos”.

 

 

O FLN reunido novamente em 1974. Em pé: A.Sellami, Doudou, Zouba, Rouai, Amara, Zitouni, Mohamed Soukane, Bouricha, Oudjani e Boubekeur. Agachados: Mazouz, Kerroum, Benfadah, Bouchouk, Abderrahmane, Soukane. Kermali. Mekhloufi e Oualiken.

 

 

Essa era só a semente plantada para uma relação entre França, Argélia e o futebol que é viva – e muitas vezes turbulenta – até hoje. Zinédine Zidane (leia mais clicando aqui) é o maior exemplo disso. O maior jogador francês de todos os tempos ao lado de Platini tem pais argelinos e uma nacionalidade árabe escondida no seu nome do meio: Yazid. Por outro lado, do time argelino na Copa de 2014, dois terços nasceram na França, por exemplo. Há até um dito que diz: “se você é um ótimo jogador e descendente de argelinos, você joga pela França. Se você é apenas bom, você joga pela Argélia”. 

Essa polêmica frase foi abordada em uma reportagem do Washington Post que você pode ler neste link. Por tudo isso, a relação França / Argélia foi construída na base da disputa, de jogadores rebeldes que viraram porta-vozes de um movimento de independência. Foi quando a bola virou arma, e cada gol do FLN era um passo para a liberdade. Diante de todo significado que o time do FLN trouxe para o futebol, dá para afirmar que esses jogadores não são outra coisa a não ser imortais.

 

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