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Jogos Eternos – Especial – “O Jogo da Morte” – 1942

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Data: 09 de agosto de 1942

O que estava em jogo: a honra e a revanche, para os alemães. A manutenção da invencibilidade de seis jogos e a vida, para os ucranianos.

Local: Zenit Stadium, Kiev, Ucrânia.

Juiz: Um oficial da Waffen-SS

Público: cerca de 2500 pessoas (algumas fontes dizem que havia 45 mil pessoas, mas este é um número pouco cabível para a época e para as circunstâncias).

Os Times:

FC Start, formado por ex-jogadores do Dinamo Kyiv e do Lokomotiv Kyiv, entre eles: Georgy Timofeyev, Nikolai Trusevich, Ivan Kuzmenko, Pavel Komarov, Alexei Klimenko, Nikolai Korotkykh, Vasily Sukharev, Feodor Tyutchev, Makar Goncharenko, Mikhail Putistin e Milkhail Melnik, além de Mikhail Svyridovskiy e Vladimir Balakin.

Flakelf, time composto por soldados nazistas da Wehrmacht, as forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich. Os nomes dos “jogadores” são desconhecidos.

Placar: FC Start 5×3 Flakelf (os alemães abriram o placar no primeiro tempo, mas o FC Start virou para 3 a 1. Na segunda etapa, os ucranianos consolidaram o placar em 5 a 3).

 

“A trágica lenda que resiste ao tempo”

Por Guilherme Diniz

Eles ousaram desafiar os nazistas. Não uma, mas duas vezes. Mesmo sabendo das possíveis e trágicas consequências que lhes acometeriam. Mas eles não estavam preocupados com repressões, afinal, era apenas um jogo de futebol e ele deveria ser tratado como tal. De virada, os ucranianos venceram os nazistas alemães por 5 a 3, fora o baile e mesmo com um árbitro da SS no comando, um time da mais alta artilharia da Alemanha do outro lado e a Gestapo à espreita. A vitória significou um alívio momentâneo ao clima combativo e de represálias vivido pelos ucranianos na época. Para os alemães, foi uma humilhação sem precedentes que deveria ser amenizada rapidamente. E foi. Tempo depois, alguns dos carrascos dos nazistas foram mortos, outros escaparam e a II Guerra Mundial quase liquidou a Ucrânia e seu povo. Porém, o feito do FC Start no dia 09 de agosto de 1942 permaneceu e resistiu ao tempo como resistiram os onze jogadores que entraram em campo naquela data e derrotaram os alemães. Tal façanha ganhou ares épicos graças as mais diversas histórias contadas pelos próprios protagonistas que escaparam com vida de um jogo que ficou conhecido como o “Jogo da Morte”. É hora de relembrar a partida mais sinistra da história do futebol.

 

Pré-jogo

Kiev destruída pela guerra: eram tempos (bem) difíceis aqueles anos 40 na Europa...
Kiev destruída pela guerra: eram tempos (bem) difíceis aqueles anos 40 na Europa…

 

Para entender melhor o que aconteceu naquele ano de 1942, é preciso voltar um pouco no tempo. Kiev, capital da Ucrânia, havia sido ocupada pelos nazistas em 19 de setembro de 1941, trazendo como consequência imediata a morte de 30 mil judeus e a interrupção total da liga nacional de futebol do país. Por causa dessa ocupação militar e a ausência de partidas, os jogadores dos times nacionais, em especial do Dynamo e do Lokomotiv, os mais fortes, tiveram que procurar emprego em diversas áreas e estabelecimentos. Alguns dos principais jogadores do Dynamo encontraram a solução na padaria estatal nº3, em Kiev, onde poderiam receber comida em troca do trabalho no local.

Foi no dia-a-dia que os jogadores foram encorajados pelo administrador da padaria, o alemão Joseph Kordik, a formarem um time amador para que eles pudessem manter a forma, ganhar alimento extra e não perder o gosto pelo futebol. Tal time ganhou o nome de FC Start e foi composto por ex-jogadores do Dynamo, em sua maioria, três ex-jogadores do Lokomotiv, além de três policiais ucranianos e um engenheiro alemão.

Alguns dos jogadores do FC Start.
Alguns dos jogadores do FC Start.

 

Em junho de 1942, o FC Start começou a disputar partidas amistosas em uma espécie de liga e mostrou que seria o time a ser batido. Os ucranianos venceram o Rukh, treinados por Georgi Shvetsov, ex-futebolista e articulador da liga, por 7 a 2, e decidiram entrar de vez na competição com uniformes vermelhos encontrados por Trusevych e Putsin em um depósito abandonado. O FC Start não encontrou dificuldades para derrotar os times formados por guarnições invasoras e bateu húngaros (6 a 2), romenos (11 a 0), operários de uma estrada de ferro (9 a 1), PGS, de alemães (6 a 0), MSG.Wal, alemães (5 a 1 e 3 a 2) e Flakelf, alemães (5 a 1).

A lenda começou exatamente após o duelo contra o Flakelf, time formado por militares da artilharia alemã. Indignados com a derrota e a já famosa invencibilidade dos “padeiros” de Kiev, eles exigiram uma revanche para o dia 9 de agosto, três dias após o triunfo ucraniano por 5 a 1. O jogo seria realizado no Zenit Stadium e seria acompanhado por centenas de milhares de pessoas e vários militares nazistas que deram ao ambiente de jogo um clima de tensão e intimidação.

No cartaz do jogo do dia 06 de agosto, contra o Flakelf, ambos os jogadores foram listados. Na revanche, apenas os nomes do FC Start apareceram. Mistério...
No cartaz do jogo do dia 06 de agosto, contra o Flakelf, ambos os jogadores foram listados. Na revanche, apenas os nomes do FC Start apareceram. Mistério e tensão no ar…

 

Nos anúncios pré-jogo, os alemães faziam questão de destacar o time “fortíssimo” que eles mandariam a campo, mas também trabalharam nos bastidores para que nada desse errado. O juiz seria um oficial da Waffen-SS, da Schutzssaffel, a temida tropa de elite de Hitler, que teria ido ao vestiário do FC Start alertar para que eles jogassem conforme as regras e fizessem a saudação nazista antes do apito inicial. Mas o que o tal oficial e todos os alemães não sabiam é que o Start iria levar à risca os ditos “jogar conforme as regras”. Eles queriam vencer e convencer. Mesmo que tal vitória pudesse trazer graves consequências para eles.

 

O jogo

Saudação nazista de um lado, rebeldia do outro: ucranianos foram valentes ao extremo naquele dia.
Saudação nazista de um lado, rebeldia do outro: ucranianos foram valentes ao extremo naquele dia.

 

Após a visita do árbitro, os jogadores engoliram a seco as palavras do alemão e decidiram entrar em campo para vencer. Makar Goncharenko, habilidoso ponta do time, disse em depoimento décadas depois que “esporte é esporte. Nós não queríamos perder”. Com os times perfilados, os alemães do Flakelf fizeram a tradicional saudação nazista, mas os ucranianos permaneceram eretos, sem reação, no primeiro golpe aos soberbos nazistas. Quando a bola rolou, o juiz fez questão de tapar os olhos para o jogo duro dos alemães do Flakelf e deixou a partida seguir mesmo após o goleiro Trusevich ser chutado na cabeça e permitir que o Flakelf abrisse o placar. Mas o FC Start se enervou com o jogo viril dos rivais e partiu pra cima, empatando o jogo. O habilidoso Goncharenko entortou os alemães antes de marcar o segundo e, faltando pouco para o intervalo, os ucranianos fizeram o terceiro gol, fechando o placar em 3 a 1.

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Nos vestiários, oficiais da SS foram alertar os jogadores do FC Start sobre aquela vitória momentânea. Eles teriam dito que era preciso entregar o jogo para que possíveis problemas não acontecessem depois. Assim como antes do jogo, os ucranianos engoliram a seco e fingiram que concordaram. Na volta ao segundo tempo, os alemães marcaram dois gols, mas o Start fez mais dois e chegou aos 5 a 3. Reza a lenda que o zagueiro Klimenko, já no final do jogo, teria driblado toda a defesa alemã e, com a chance de marcar o sexto gol, chutou a bola para o meio de campo ou como forma de menosprezo ou para evitar um placar mais elástico.

Após essa ação, o juiz encerrou o jogo antes mesmo dos 90 minutos e mais uma vitória do FC Start foi consolidada. Era o triunfo na bola dos oprimidos diante dos opressores e invasores de sua casa. Impedidos de continuarem seu campeonato local, os ucranianos encontravam a oportunidade única e mágica para derrotar com classe aqueles que haviam acabado com a festa. Mas o que aconteceria dali para frente? Eles poderiam contar aquela façanha para seus amigos, filhos ou netos? Ou os alemães iriam sacar seus revólveres e matar um a um? Somente as horas e os dias posteriores teriam a resposta.

 

Pós-jogo: o que aconteceu depois?

Retratado em filmes e livros, o "Jogo da Morte" virou a partida de futebol mais lendária e sinistra de todos os tempos.
Retratado em filmes e livros, o “Jogo da Morte” virou a partida de futebol mais lendária e sinistra de todos os tempos.

 

Como toda grande história envolvendo a II Guerra Mundial, muitas versões apareceram para explicar o que aconteceu após a vitória do Start sobre o Flakelf. A mais sangrenta delas foi que todos os jogadores do time ucraniano foram fuzilados com seus uniformes logo após a partida, algo exagerado que rapidamente caiu no esquecimento e entrou para o folclore. O fato é que os jogadores foram para os vestiários bastante nervosos pela tensão e frieza que tomou conta dos militares. Os “padeiros” tomaram seus banhos pensando apenas em sair com vida do Zenit Stadium e voltar ao cotidiano na padaria nº3. Eles conseguiram sair, pegaram suas coisas e foram embora.

No dia 16 de agosto, o Start entrou em campo mais uma vez para golear o Rukh por 8 a 0 e completar 10 jogos com 100% de aproveitamento. No entanto, aquela partida foi a última do time criado para manter os grandes craques da Ucrânia na ativa. Dois dias depois, seis jogadores foram presos pela Gestapo por supostamente estarem ajudando a NKVD, precursora da KGB, a polícia secreta soviética. Dois dias depois, mais dois foram presos. Em depoimentos, os jogadores creditaram suas prisões ao técnico do Rukh, Shvetsov, que ficou furioso após o revés de seu time por 8 a 0 e teria dito à Gestapo que os “padeiros” eram agentes da NKVD, que dava suporte ao Dynamo antes da ocupação nazista.

Semanas depois, Mykola Korotkikh foi morto sob tortura por supostamente compactuar com a NKVD e muito após ser encontrado um cartão de identidade da entidade soviética em sua roupa. Em 1943, mais três ex-jogadores do Start foram mortos: Trusevich, Klimenko e Kuzmenko, executados juntos com outros 24 prisioneiros no campo de concentração nos limites de Kiev, perto de Babi Yar. As alegações foram muitas, tais como sabotagem em equipamentos de guerra, desobediência, punição pela fuga de outros prisioneiros, entre outras. Eles se juntaram aos cerca de 10 milhões de ucranianos que morreram durante a II Guerra Mundial. E, quem sabe, tenham servido como “munição” para as máquinas criadas pelos nazistas para transformar ossos humanos em fertilizante (tal repugnante artefato é um dos itens do museu nacional da II Guerra Mundial na Ucrânia). Os outros presentes no fatídico jogo suportaram aquele período tenso e viveram para contar a quem pudessem a história do jogo contra o Flakelf.

Os maiores propagadores do duelo na cultura popular foram Tyutchev, Svyridovsky e Goncharenko, que contaram diferentes versões que foram dissecadas pelos historiadores com o passar do tempo e criaram verdadeiros desafios que até hoje não foram esclarecidos ou solucionados com precisão, muito pela falta de provas concretas e marcação cerrada dos nazistas aos soviéticos na época. Em 1974, um tribunal de Hamburgo (ALE) abriu um caso para analisar os fatos do “Jogo da Morte”, mas as autoridades soviéticas não colaboraram com os alemães e o arquivo foi fechado em março de 1976. Em 2002, foram as autoridades ucranianas que decidiram reabrir o processo, mas ninguém conseguiu ligar as mortes dos quatro ex-jogadores do Start à vitória do time sobre o Flakelf, mas sim às diversidades do regime nazista.

Monumentos sobre a proeza do FC Start mantém viva a lenda.
Monumentos sobre a proeza do FC Start mantém viva a lenda.

 

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O fato é que a vitória do Start sobre os nazistas entrou definitivamente para a história como uma dos mais polêmicos e sinistros acontecimentos do futebol mundial e que inspirou, inclusive, filmes (o mais famoso foi o estadunidense “Fuga para a vitória”, com Sylvester Stallone e estrelas do futebol como Pelé, Bobby Moore e Osvaldo Ardiles), livros, contos e teorias. Os sobreviventes do jogo nunca quiseram comentar muito sobre a partida muito por causa do medo e de contradizerem o regime soviético que dominou a Ucrânia no pós-guerra. E eles mesmos não acreditam que as mortes dos companheiros tenham ocorrido por causa da vitória sobre os alemães.

Mas, como toda lenda, essa suposição nunca foi descartada e ajudou a manter viva a imortalidade do “Jogo da Morte”, que segue nas raízes do futebol ucraniano, cravado no Zenit Stadium e lembrado em forma de monumento nos arredores do estádio. Em 09 de agosto de 1942, não houve tiros, suástica ou bombas. Houve a vitória do futebol sobre os repressores da ordem e da paz e o esquecimento momentâneo por parte dos ucranianos de um período trágico para a história da humanidade.

 

O velho Zenit Stadium no dias atuais.
O velho Zenit Stadium sempre guardará os resquícios daquele jogo eterno.

 

 

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